13 de jul. de 2008

Arte e Cultura (I)



A cultura constitui e é constituída por sistemas de símbolos que estruturam o comportamento social. Qual é o papel da arte na cultura? Se existem diferenças entre as culturas, existe diferença entre a arte ocidental e não-ocidental? Então, quem produz arte? A partir de qual ponto de vista podemos decidir os significados de “cultura” e “arte”?

Na década de quarenta do século XX, Claude Lévi-Strauss, pai da antropologia estruturalista, procurou articulações entre cultura e arte comparando manifestações artísticas de varias partes do mundo, incluindo os Kaduwéu no Brasil. Antes dele, Franz Boas havia começado a coletar elementos da cultura material indígena, sendo famosos seus estudos das sociedades do noroeste do Canadá. Seu livro, Arte Primitiva (1927), ainda é considerado um clássico e um dos poucos a tratar do assunto. Lévi-Strauss cita M. F. Guédon…

“Todo problema de design é uma tentativa de fazer coincidir duas entidades: a forma e seu contexto. O contexto delimita o problema, enquanto a forma é a solução para o problema” (1)


Lux Vidal e Aracy Lopes, resgatando um trecho de Tristes Trópicos (1955), livro onde Lévi-Strauss descreve a pintura facial dos Kadiwéu (imagens ao lado, acima e abaixo), recortam um trecho em que ele afirma a importância de contextualizar o elemento artístico…

”A arte caduvéu tem um sentido e uma função. As pinturas do rosto não podem ser dissociadas do próprio rosto. Não são obras de cavalete. Não tem nada de gratuito. É uma arte feita com um certo objetivo, com uma certa função dentro da sociedade.” (2)

Para o antropólogo Clifford Geertz, a cultura é uma teia de significados tecida pelo homem. Ela orienta sua existência, interagindo com os sistemas de símbolos de cada indivíduo. Geertz, que procura aplicar elementos da semiótica à antropologia, afirma que compreender o homem e a cultura é interpretar essa teia de significados. Arte faz parte dessa teia…

“A participação no sistema particular que chamamos de arte só se torna possível através da participação no sistema geral de formas simbólicas que chamamos de cultura, pois o primeiro sistema nada mais é que um setor do segundo. Uma teoria da arte, portanto, é ao mesmo tempo uma teoria da cultura. E, sobretudo, se nos referimos a uma teoria semiótica da arte, esta deverá recobrar a existência desses sinais na própria sociedade, e não em um mundo fictício de dualidades, transformações, paralelos e equivalências.” (3)

Ou seja, para compreender a arte, temos que compreender a cultura da qual faz parte: teoria da arte = teoria da cultura. Uma teoria semiótica da arte buscará seus sinais na sociedade e não em abstrações lógicas: os elementos artísticos dialogam com sensibilidades e não com conceitos (4) (ao lado, acima, Estudo Para Mercure, 1924, Pablo Picasso, coloração invertida; abaixo, A Tarde, 1941-2, litogravura, Henri Matisse). Geertz lembra uma frase de Picasso…

“Todos querem entender a arte,
por
que não tentam entender
a canção de um pássaro…?
Quem tenta entender quadros,
acaba se esforçando em vão”
(5)


Entretanto, continua Geertz, apesar desse sentimento de que “quando não somos capazes de falar, devemos ficar em silêncio”, somente quem é indiferente à arte consegue manter silêncio – incluindo os próprios artistas. Nas palavras de Matisse temos a chave para continuar…

“Não consigo distinguir entre
o sentimento que tenho pela vida
e minha forma de expressá-lo”
(6)

O discurso sobre a arte não pode ser meramente técnico. O objeto estético é mais do que um encadeamento de formas puras, deve ser contextualizado a partir das demais expressões e modelos de vida cotidianos que em última análise o sustentam.

A definição da Arte é sempre local, social, mesmo que fruto de um sentimento universal. Isto implica que “arte” não significa a mesma coisa na China, no Islã, em alguma tribo da Nova Guiné… ainda que as qualidades intrínsecas que transformam a força emocional em coisas concretas possam ser universais.

A incompreensão deste ponto de vista particular por parte de alguns estudiosos da arte não-ocidental é que acabou produzindo a percepção preconceituosa de que os povos “primitivos” não falam sobre arte. Na verdade, a questão é que eles não falam de arte como esses estudiosos falam… Na opinião de Geertz, é exatamente essa incapacidade de considerar que as informações de povos não-ocidentais e/ou “primitivos” constituem um discurso sobre a arte que nos impede a construção de um discurso comparativo.

Vejamos como exemplo o significado da linha (tema aparentemente abstrato) na escultura deste povo africano, os Ioruba. Há uma preocupação muito grande na clareza e precisão do traço que apenas reflete a importância que dão às qualidades lineares. Além de potes e esculturas, os Ioruba marcam seus próprios rostos com cortes que apontam (têm valor de sinal, de índice) sua posição social. Associam a linha com a idéia de civilização, como a imposição de um padrão humano à desordem da natureza. “Este país tornou-se civilizado”, em idioma Ioruba, significa literalmente: “esta terra tem linhas em sua face” (7). A “linha” na sociedade Ioruba, muito longe de um tema abstrato e universal, surge de uma “sensibilidade específica” em relação à vida. Geertz não vê nisso nada de lúdico, desinteressado, técnico ou estético. Estudar arte é explorar uma sensibilidade coletiva, a força estética não seria fruto de um “prazer do artesanato”.

Geertz também discorda da visão funcionalista segundo a qual a arte teria uma função instrumental, sendo elaborada com o objetivo de fortalecer laços sociais. Ao contrário, a articulação entre arte e vida coletiva se dá num plano semiótico. As manifestações artísticas não celebram uma estrutura social, elas materializam uma forma de viver, tornam visível um modelo. É a diferença entre uma conexão mecânica e uma conexão ideacional. No segundo caso, defendido por Geertz, os sinais ou elementos simbólicos (o talho Ioruba e o amarelo de Matisse, tomandos como ações) que compõem o sistema semiótico não são ilustrações de conceitos já existentes (função instrumental), mas elementos de primeira mão que buscam um lugar entre outros elementos de primeira mão (mitos, ritos, organização familiar, divisão do trabalho, tomandos como ações). (acima, máscara Mbangu, Congo, África; ao lado, etnia Elema, Papua Nova Guiné, pacifico sul, fotografada em 1929).

Na proposta semiótica da antropologia de Clifford Geertz, elementos simbólicos devem ser lidos, interpretados (em seus ícones, índices e símbolos), como algo que produz significação a partir de uma relação dialética entre eles e o meio social. Para tal, uma semiótica da arte deveria abrir mão do discurso estético (enquanto ele estiver direcionado a descrições conceituais do plano instrumental), pois os elementos artísticos dialogam com sensibilidades e não com conceitos. A unidade forma-conteúdo é um fenômeno cultural. Em sua opinião, é um equívoco afirmar que essa característica globalizante do discurso artístico “primitivo” é fruto de uma incapacidade para captar a unidade forma-conteúdo por si mesma - capacidade que a cultura ocidental teria desenvolvido. Geertz acredita que tal atitude marca tanto uma subestimação da dinâmica da arte nas “sociedades primitivas”, quanto uma sobrestimação da sua autonomia nas sociedades letradas.

Notas:

Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto

1. VIDAL, Lux; SILVA, Aracy Lopes da. Antropologia Estética: Enfoques Teóricos e Contribuições Metodológicas In Grafismo Indígena. Estudos de Antropologia Estética. São Paulo: Edusp, 1992. P. 282.
2. Idem.
3. GEERTZ, Clifford. A Arte Como Um Sistema Cultural In Saber Local. Petrópolis: Vozes, 6ªed., 2003. P. 165.
4. Idem, p. 153.
5. Ibidem, p. 143.
6. Ibidem, p. 145.
7. Ibidem, p.149.