23 de set. de 2008

Entre o Rosto e o Corpo



“Nossas feridas do corpo,
eventualmente, fecham e cicatrizam.
Mas há sempre feridas escondidas, aquelas do
coração, e se você sabe c
omo aceitar e suportá-las,
você descobrirá a dor e a alegria que é impossível
expressar com palavras. Você conquistará
o d
omínio da poesia que só
o corpo pode expressar".

Kazuo Ono


O frenesi em torno do rosto se justifica por sua indefinição radical. Por sua exposição excessiva e incrível desvalorização do restante do corpo em relação a ele, o rosto lança constitui um enigma. Como o famoso enigma da esfinge, “decifra-me ou devoro-te”, o rosto cria mais problemas que soluções.


Nosferatu, o vampiro, não é só um rosto. Suas mãos são partes indissociáveis do personagem, especialmente nas cenas onde o foco está em sua sombra (imagem abaixo). Frankenstein é fruto da soma de vários corpos, trata-se de parte crucial do próprio enredo da história (acima). Curioso ter que falar de monstros para falar de corpo!

Não se trata de criticar gratuitamente a relevância que o rosto alcançou como ponto central da comunicação não-verbal na cultura ocidental contemporânea. Olhamos o rosto esquecendo que às vezes uma mensagem tem um campo de significação mais amplo nas posturas assumidas pelo restante do corpo. A dependência em relação ao rosto é tão grande que pouco entendemos das posturas das partes “restantes” do corpo.

Não há como negar, as telenovelas brasileiras investem pesado nos corpos. Porém os rostos estão sempre em destaque. Galã ou estrela, não apenas uma qualidade ligada ao estilo, mas ao rosto, ao olhar. Nas “telasnovelas”, mesmo um corpo escultural não resiste muito tempo a um rosto que não corresponda à máscara da beleza.

Reconheço o poder comunicacional do rosto. Apenas acredito que, reduzindo o corpo ao rosto, simplificamos por demais qualquer análise de comunicação não-verbal. Como sugerem Gilles Deleuze e Felix Guattari, talvez estejamos fazendo do rosto uma ficção (1).

Da pintura ao cinema, da fotografia à televisão e à computação gráfica, a sedução do rosto não cessa de nos provocar. Mas, “quem vê cara não vê coração?” A questão é o olhar viciado de uma sociedade mergulhada em imagens. Olhamos tudo, não vemos mais nada! Uma perda de sensibilidade do olhar, viciado por velocidade/quantidade. É necessário não perder o elo entre a sensação e o olhar. Agenciando olhar e intensificação das sensações, o rosto poderia atualizar alteridades, abdicando de representar universais: clichês, estereótipos. “O rosto não é um universal” (2).


Os comentários de Nelson Brissac sobre o trabalho de Evgen Bavcar (3) nos apontam pistas para buscar um desvio e escapar dos clichês que aprisionam as representações do rosto. Fotografar a sensação, desafio que se lança à cegueira da visão.

Bavcar é um fotógrafo cego, o que talvez o salve da “cegueira da visão”. Apela para outros sentidos que nós os não-cegos não mais enxergamos, escravos que nos tornamos da visão. Ele descreve seu trabalho dizendo: “eu fotografo contra o vento”. Desta forma, o vento recorta a posição daquilo a fotografar. O vento traz o perfil, o cheiro e o ruído das coisas. Essa visão feita pelo vento cria um deslocamento em relação à ótica. O Renascimento instituiu a perspectiva óptica como forma privilegiada de organização do espaço. “A perspectiva é um ordenamento do mundo a partir da visão óptica” (4), mas Bavcar aguça outros sentidos e multiplica seus pontos de vista. (imagem abaixo, La Vista Táctil, Evgen Bavcar)

Bavcar procede a um deslocamento lateral que rompe a relação entre primeiro-plano e profundidade, fruto da visão em perspectiva “Aí está o primeiro elemento extremamente contemporâneo de Bavcar: introduzir uma lateralidade na abordagem do mundo” (5).

Ele introduz o elemento tátil ao apalpar aquilo que fotografa. Apalpando, coloca-se em meios às coisas. Bavcar se insere no mundo que fotografa, não se comportando como um espectador para quem o mundo se descortina à distância. A luz é tratada como inscrição do espaço e não como sua ordenação. Procedendo desta forma, ele que não pode ver, paradoxalmente cria uma polifonia do olhar, multiplicando as formas de ver ao substituir o olho pela mão.


“Existe um belíssimo texto de Gilles Deleuze que mostra como Francis Bacon (1909-1992), na pintura, procedia da mesma maneira. Na verdade, não há novidade em si no trabalho de Bavcar; o que existe é essa afinidade extraordinária dele com pintores tão reconhecidos como, por exemplo, Bacon. Qual é o trabalho de Bacon? É fazer do quadro, da organização do quadro, uma irradiação ou uma justaposição de superfícies, onde as coisas funcionam por composição matérica, onde os diversos planos da cena funcionam todos em um mesmo plano como composições, onde o cromatismo ganha força material. Podemos pensar na enorme semelhança que existe entre as fotos de Bavcar e os quadros de Bacon. É curioso que tenha sido necessário um cego para aproximar a fotografia da pintura”. (6)

Notas:

Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto

1. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mille Plateaux. Paris: Les Édition de Minuit, 1980. Cap. 7. Na edição brasileira ver Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrênia. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34, vol. 3, capítulo 7 Ano Zero - Rosticidade. 1996.
2. Idem, p. 216.
3. BRISSAC, Nelson. Fotografando contra o vento In O ponto zero da fotografia. Rio de Janeiro: VSArts do Brasil. 2000.
4. Idem, p. 41.
5. Ibidem, p. 42.
6. Ibidem, p. 43. O grifo é meu.