19 de jan. de 2009

A Fabricação do Herói (final)





Obras Encomendadas

A glorificação de Tiradentes encontra muita receptividade no governo, mais do que qualquer outro protagonista de nossa história. Em 1890, um único decreto estabelece as comemorações do 15 de novembro (Proclamação da República) e do 21 de Abril (Inconfidência Mineira). Com muitas obras encomendadas aos artistas de plantão, a imagem do herói-mártir se cristaliza definitivamente na memória nacional. O fato de pouco se saber da vida real de Joaquim José da Silva Xavier até facilitou o trabalho dos artistas, que ficaram livres para recriá-lo. “A vida de Joaquim é parasitada pelo mito”, agora a figura heróica preenche de tal maneira o vazio da biografia dele que, de ilustração, acaba se transformando na verdadeira vida de Joaquim.

É segundo esta perspectiva, afirma Maria Alice Milliet, que a litografia de Décio Rodrigues Villares deve ser compreendida. Com efígies do Tiradentes distribuídas ao povo pelo governo durante o desfile comemorativo da data em 21 de abril de 1890, o pseudo-retrato criado por Villares é considerado a imagem fundante: Tiradentes, para os brasileiros, é uma espécie de Jesus Cristo. Assim ele apareceu na litografia de Villares editada pela Igreja Positivista do Rio de Janeiro e assim permanece até hoje (imagem ao lado)

“O rosto visto de três quartos é o de um homem de tez clara, traços regulares, com pouco mais de 40 anos. A longa barba e os cabelos até os ombros emprestam-lhe um ar de estudada negligência. Seu olhar evasivo não fixa o observador, perde-se na distância. Como único adereço, traz uma corda enlaçada ao pescoço sem, contudo, ameaçar enforcá-lo. Abaixo do busto, vê-se a palma e a coroa de ramos de café enfeixados por uma fita onde se lê: 1792–Libertas Quae Sera Tamen e Ordem e Progresso–1889. No topo da prancha, ao centro, a legenda Tiradentes 1792-21-abril-1890. No canto inferior esquerdo vem: Edição do Apostolado Positivista do Brasil-1890, e na mesma altura, à direita, o autor D. Villares” (1)

Um Rosto Para a República

Na litografia de Villares, o texto controla a recepção da imagem, direciona o sentido, fixa uma interpretação. “Na conjugação palavra/imagem se arma a conotação ideológica do ícone concebido para o grande público”. Como nos lembra Milliet, uma imagem desprovida de pathos, onde o drama é apenas evocado: a corda delicada e frouxa em volta do pescoço pouco lembra o laço da forca. Ocorre também uma contaminação entre a mensagem política e a religiosa.

“A barba crescida sugere as duras condições da prisão, e os olhos mansos voltados para o além indicam desprendimento do mundo. O semblante aproxima-se do arquétipo da santidade: o santo, antes de mais nada, é alguém alheio às contingências da vida mundana. O ícone do herói confunde-se com certa iconografia do Cristo que consagra ‘um tipo fino e aristocrático, um tanto insípido’, cuja fixação ocorre no século XVIII, segundo [Germain] Bazin, na famosa pintura do Sagrado Coração de Jesus, de Pompeu Batoni (1708-87) para a igreja do Gesú de Roma” [imagem ao lado] (...)”Dessa tradição vem a fácil aceitação de figura cristianizada do Tiradentes” (2)

Em seu rosto não se vê tensão, não é o rosto impetuoso de um subversivo (como era visto no tempo do Império) ou o olhar passional do revolucionário. O que sobra é uma efígie olímpica, adocicada, próxima da medalha de devoção ou do santinho do catecismo. Nada, nenhum relato preciso da aparência de Joaquim, remete a essa imagem. Como resumiu Roland Barthes:

“Passando da história à natureza, o mito faz uma economia: abole a complexidade dos atos humanos, confere-lhe a simplicidade das essências, suprime toda e qualquer dialética, qualquer elevação para lá do visível imediato, organiza um mundo sem contradições, porque sem profundeza, um mundo plano que se ostenta em sua evidência, cria uma clareza feliz: as coisas parecem significar sozinhas, por elas próprias” (3)

Imagem da República, Imagem Positivista

A litografia de Villares foi encomendada pelos Positivistas do Rio de Janeiro. Seu patrono, Augusto Comte, havia criado em 1847 uma Igreja Positivista (a Religião da Humanidade) cujo objetivo era substituir os personagens religiosos pelos pais da Razão. Assim, seus templos, ao invés de imagens de santos tinham imagens de filósofos como Platão, Aristóteles, Rousseau, Hobbes etc. Homens da Razão e da Ciência. Apesar de se propor como uma opção à religião teológica, o catecismo positivista se apropria de símbolos do catolicismo. Em seu país de origem, a França, ela já estava extinta, mas no Brasil ela está viva até hoje (na Igreja Positivista do Rio de Janeiro). E foi essa Igreja que encomendou a imagem de Tiradentes que se cristalizou nos olhos e na imaginação do brasileiro.

A identidade entre Tiradentes e Cristo está no lema Positivista: Viver para Outrem. Tanto para o cristianismo quanto para o Positivismo, a idéia do mártir está ligada à figura do herói altruísta: a renuncia individual em benefício do interesse social. Uma dedicação dos fortes aos fracos e a veneração dos primeiros pelos últimos. Isso leva a reconhecer os homens ilustres como guias da humanidade e a reverenciá-los como se faz com os santos. O culto aos homens notáveis ou mortos ilustres é integrado então como elemento disciplinador das forças sociais. Segundo a diretiva do próprio Augusto Comte, o Gran-Ser “não incorpora a si senão os mortos verdadeiramente dignos”, “afasta de cada um deles as imperfeições que sempre lhe maculam a vida objetiva”. Era o que faltava para a idealização dos mortos, cuida-se de “melhorar a realidade” (4). Isso acontece também quando só encontramos elogios para alguém que acabou de morrer!

A França da Revolução, entre 1789 e 1799, também havia desenvolvido esse fenômeno. Com a desvinculação entre Estado e Igreja (instituída aqui pela Constituição de 1891), era necessário preencher o vazio. A necessidade do sagrado teria buscado satisfação no culto aos mártires da Liberdade, espécie de santos patriotas (5). (ao lado, o sacrifício do mártir, Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo, 1893)

Com tudo isso acontecendo numa época sem a imprensa e a máquina da propaganda de que dispomos atualmente, podemos imaginar (para aqueles que se arriscam a produzir pensamentos) o que pode estar em jogo na construção da imagem dos homens notáveis que a televisão vomita sobre nós diariamente. Quem são essas pessoas afinal? Nós as vemos e ouvimos, mas como distinguir entre aquilo que elas são e aquilo que elas apenas parecem que são? Sem falar nas imagens cuja legenda nos diz: "esse é bandido". O que exatamente distingue um homem notável de um bandido na sociedade brasileira? Quem define "bandido" e quem define "homem notável"? De repente, “ler” as imagens torna-se uma tarefa muito mais complicada do que fomos acostumados a acreditar...

Notas:

1. MILLIET, Maria Alice. Tiradentes: O Corpo do Herói. São Paulo: Martins fontes, 2001. P. 140.
2. Idem, p. 142.
3. BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1988. Pp. 163-4. In MILLIET, Maria Alice. Op. Cit., p. 144.
4. COMTE, Augusto. Curso de Filosofia positiva, Discurso Preliminar Sobre o conjunto do Positivismo, Catecismo Positivista. São Paulo: Nova Cultural, 1988. P. 74 In MILLIET, Maria Alice. Op. Cit., p. 148. A ênfase é minha.
5. MILLIET, Maria Alice. Op. Cit., p. 152.