11 de mar. de 2010

Yasujiro Ozu e a Nora dos Sogros





Às vezes
, um
ser humano é só um
 ser humano




 



O Melhor dos Mundos

Em Viagem a Tóquio (também conhecido com os títulos Era Uma Vez em Tóquio e Contos de Tóquio, Tokio Monogatari, 1953), um casal de anciãos vai a Tóquio visitar seus filhos. Lá chegando, na confusão da metrópole eles são acompanhados pela nora – na verdade viúva, de um de seus filhos que havia morrido na guerra. A moça é muito educada e prestativa, como uma filha dedicada. De fato, ela está mais presente do que os próprios filhos dos velhos – que os haviam convidado para a visita, mas tendem a ignorá-los. Depois de acompanhar os sogros num passeio turístico pela cidade grande, a nora os leva para seu apartamento. De frente para o retrato do marido morto, começa a conversar com os velhinhos. Mas tudo vira uma comédia quando ela fica indo e voltando da vizinha, primeiro para buscar a garrafa de saquê, depois para buscar as taças para beber o saquê. Os velhos se preocupam com a situação da nora, que ainda não decidira casar-se novamente. Mas a singela cena é interrompida pela chegada de um entregador de refeições.




As  imagens  e
as palavras devem  se
curvar  à  imaginação
,
e não o contrário






É o cinema de Ozu a indicar que nada neste mundo caótico funciona como pretendemos. Além disso, o cineasta não gostava de transmitir sentimentos de forma verbal, por esse motivo não mostrava de forma explícita as atenções entre os velhos e a nora. O que não quer dizer que para ele a imagem cinematográfica seria um melhor veículo para a mensagem. No fundo, Yasujiro Ozu desconfiava tanto da linguagem quanto da imagem - que estão aí para nos levar há algum lugar, mas a partir daí devem necessariamente ser ultrapassadas pela imaginação (1). (Todas as imagens deste artigo são de Viagem a Tóquio)

A Vida Como Ela É 

O velho marido encontra os amigos e vai beber com eles, enquanto a esposa vai passar a noite com a nora – respectivamente, o profano e o sagrado vão se apossando da vida em Viagem a Tóquio. Preocupada com o fato de a nora estar sozinha, a velha sugere e incentiva um novo casamento. A jovem viúva recusa sorrindo. “Você é mesmo uma boa pessoa...”, retruca a velha com lágrimas nos olhos. Depois de uma noite de sono, na manhã seguinte a sogra se despede oferecendo algum dinheiro para a ex-nora. Um presente que concretizaria uma relação entre mãe e filha (pelo menos naquele Japão). Entretanto, elas não são nem mãe e filha e (pelo menos naquele Japão) nem mesmo parentes.


A velha morre e seu enterro acontece em Onomichi, a cidadezinha dos velhos. Depois que os filhos voltaram para Tóquio, o velho se despede da nora. Ele agradece por ela ter sido muito prestativa com a sogra e volta a insistir para que ela se case novamente. Neste momento ela faz uma confissão. “... Eu não sou uma pessoa tão boa como o senhor está pensando... Eu engano muito. Não fico pensando a toda hora em Shôji, como todos acham”. Revela haver dias em que nem sequer lembra-se do falecido marido. Contra todas as expectativas, a imaculada nora, que remetia a uma existência sagrada, ocultava sua verdadeira natureza profana. “Graças à ambigüidade de sua posição, sendo um membro da família e ao mesmo tempo uma estranha, ela podia comportar-se de modo extremamente terno e atraente, mas, pelo contrário, ela nega tal comportamento e autoproclama-se um ser humano” (2). Num cinema de múltiplos olhares (de objetos, de ausência, olhares invisíveis, olhares de homens bêbados caóticos, olhares sagrados do além, os olhares da falecida), agora mais um: o olhar que afirma a limitação do ser humano e sua existência egoísta (3).


É o mesmo olhar que encontramos na seqüência da confissão que a nora faz ao sogro. Tudo se entrecruza no caos desse olhar mudo (imagem ao lado). Entretanto, Yoshida ressalta, Ozu foge novamente de suas próprias regras. Pois, quando a nora confessa, muda repentinamente seu olhar. Se antes ele era vago e ambíguo, agora o olhar passa a se fixar no espectador. Sem saber mais o que dizer, o sogro insiste nos elogios: “Mas você é uma boa pessoa, é honesta...”, “mais ainda que os filhos que criamos, você, que é de outra família, fez tanto por nós... Puxa, obrigado”. Palavras frágeis porque soam como elogios estereotipados, frases feitas – o tipo de comentário que Ozu considerava característico do que ele chamava de cinema-engodo.


O Que Vemos e o Que Nos Olha

Por outro lado Yoshida chama atenção para uma seqüência logo a seguir, que ele considerou gerar um efeito de estranhamento equivalente ao do (em princípio) enigmático vaso em Pai e Filha (Banshun, 1949). Já no trem de volta para Tóquio, a nora olha para o relógio de bolso da falecida - que o sogro lhe dera de presente. Concluiríamos então que o olhar da falecida está ali, observando e protegendo a jovem mulher? Entretanto... “(...) nós, que já ouvimos a confissão da nora afirmando-se uma pessoa enganadora, não podemos mais ver no relógio de bolso o olhar da morta, nem as reminiscências da falecida sogra. Se o homem não passa de um ser egocêntrico, também o relógio de bolso envelhecido não passa de um relógio de bolso” (4).


Mas justamente, afirma Yoshida, o relógio não é um veículo do olhar da falecida. É ele mesmo, o relógio, que com seu olhar de objeto olha a nora. Nós havíamos esquecido disso: que não somos onipotentes, que não somos apenas nós que olhamos para o mundo e os objetos, mas eles nos olham também. Por outro lado, ainda que não seja o olhar da falecida, a memória da velha impregna o relógio. Assim, o olhar mudo de objeto carrega em si a velha. O olhar dos falecidos, sua sogra e seu marido, dirigem para ela um olhar de objeto.


“Assim, Era Uma vez em Tóquio vai concretizando até o fim e com perfeição o drama dos olhares, que se converte em uma revelação renovadora e gratificante. Mesmo os olhares egoístas do ser humano, que pela confissão da nora passaram à qualidade de núcleo central deste mundo, são relativizados pelo olhar objetal do relógio de bolso. Este é apenas um dos incontáveis olhares que vão desaparecendo no entrecruzamento de miríades de outros. Ozu continuava realizando brilhantemente seus jogos de imagens, aprazendo-se frequentemente em transgredir as regras que ele próprio inventara. Ainda assim, o reconhecimento de que o ser humano é uma existência desonesta e cheia de falsidade é certamente sua transgressão mais grave, redundando em sátira excessiva. Mas, ao explicitar o ponto de vista de que o ser humano jamais deixa de sê-lo por meio de um drama belamente tecido por inúmeros olhares, o diretor recupera o olhar como objeto e nos convida ao prazer de nos deixarmos envolver e observar por olhares ainda mais infinitos” (5)

Notas:

1. YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução do Centro de Estudos Japoneses da universidade de São Paulo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. Pp. 180, 181 e 190.
2. Idem, p. 225.
3. Ibidem, p. 226.
4. Ibidem, p. 229.
5. Ibidem, p. 230.