20 de abr. de 2010

Yasujiro Ozu e Seus Labirintos





De que adianta dar
Ibope   se   for   pelos
motivos  errados  ?







O Anti-Filme de Si Mesmo

O filme Viagem a Tóquio (também conhecido por Era Uma Vez em Tóquio e Contos de Tóquio, Tokyo Monogatari, 1953), dirigido pelo cineasta japonês Yasujiro foi muito bem recebido, tanto pelo público quanto pela crítica. Ozu e sua estética do cotidiano pareciam ter alcançado o ponto em que “os filmes de um cineasta difícil se tornam compreensíveis”. De acordo com Kiju Yoshida, como o título se refere às “narrativas de Tóquio” (o sentido do título original em japonês), deve ter levado as pessoas a acreditar que se tratava de um filme com enredo. Entretanto, continua Yoshida, o que Ozu nos legou foi uma pura continuidade de imagens caóticas e sem significado, além da inexorável marcha do tempo. Se havia um enredo, tinha justamente o objetivo de impedir os espectadores descobrissem significados fáceis. (imagem acima, Pai e Filha; abaixo, à direita, Viagem a Tóquio)


“O fato de
considerarem-na
como ‘a obra de arte
máxima de Ozu’
, embora
revele admiração por
mim
, não parece 
valorizar-me”


Na verdade, o resultado dessa aceitação unânime em torno do filme, em vez de agradar Ozu, deixou-o muito confuso e chateado. O cineasta não podia compreender como o público pode confundir este filme com um melodrama. “A história que se desenrola resume-se, de fato, à repetição de fatos cotidianos, e como estes se mostram conectados de modo excessivamente coordenado, diferem muito de uma catarse dramática. Também a atuação dos atores era delineada de maneira ambígua, como se eles rejeitassem nosso envolvimento emocional” (1). A respeito do ocorrido, Ozu declarou:

“Nem eu nem (Kôgo) Noda, que escreveu o roteiro, tínhamos previsto que alguém pudesse chorar ao assistir à obra. Pensávamos estar escrevendo de forma imparcial, sem negar ou afirmar a relação entre pais e filhos, e sem dizer se era bom ou ruim. Se isso fizesse os espectadores penarem nos pais para tratá-los com mais consideração seria uma satisfação para o autor. (...) Como tinha a intenção de emocionar as pessoas justamente com as partes mais simples, mesmo sob o risco de sacrificar a obra como um todo, cuidei para que a interpretação dos atores não parecesse exagerada e os instei a reprimir sentimentos. O fato de considerarem-na como ‘a obra de arte máxima de Ozu’, embora revele admiração por mim, não parece valorizar-me” (2)

A partir desta declaração de Ozu em 1953, sobre o “problema de ser elogiado pelos motivos errados”, Yoshida esclarece: A frase, “estar escrevendo de forma imparcial, sem negar ou afirmar a relação entre pais e filhos”, explica Yoshida, sugere a aversão de Ozu a que o filme fosse interpretado como uma narrativa – para ele a própria vida era antinarrativa. Frases como, “sem dizer se [a relação] era boa ou ruim” e “se isso fizesse os espectadores pensarem nos pais para tratá-los com mais consideração”, procuram alertar, pelo contrário, que é melodramática a apropriação do filme pelo espectador em busca de mais significados do que os contidos – já que o filme não passa da descrição de fatos cotidianos e banais. Quando o cineasta afirma que, “o fato de considerarem-na ‘a obra de arte máxima de Ozu’, embora revele admiração por mim, não parece valorizar-me”, ele está confessando se desgosto pelo fato de Viagem a Tóquio ter sido equivocadamente interpretado como um melodrama.



Um melodrama na
superfície  
de  Viagem a 
Tóquio   fez   do   filme   um
sucesso, mas mascarou a
real intenção de Ozu




Tudo isso deixou Ozu tão aborrecido que mesmo sete anos depois, quando tentou explicar o sucesso do filme, ele fez uma ironia que parece estar em contradição com o que havia dito antes. Afirmou que desejava descrever o desmoronamento do sistema familiar japonês, e que o filme está entre suas realizações mais melodramáticas (3). No fundo, sugere Yoshida, trata-se de uma autocrítica de Ozu. Entretanto, observa Yoshida, é preciso ter em mente que para Ozu “autocrítica” significava o seu modo de divertir-se ironizando, sabedor de que o cinema era um engodo irrefutável. (imagem acima, Viagem a Tóquio; abaixo, à direita, Começo da Primavera)






Repetição com pequenas variações =  Caos =  Vida






O atordoamento de Ozu, disse Yoshida, fica patente em sua parada de dois anos após Viagem a Tóquio. A “acusação” de que o filme fosse um melodrama fez com que o cineasta japonês elege-se como tarefa realizar, até o fim de seus dias, filmes o mais anti-melodrama ou mais anti-Viagem a Tóquio possível. Tarefa que, na verdade, já se podia entrever nas várias refilmagens que Ozu fazia de seus próprios filmes – mais sempre introduzindo pequenos deslocamentos em relação ao anterior. Da mesma forma que Também Fomos Felizes (Bakushû, 1951) (imagem abaixo, à direita) é uma refilmagem e ao mesmo tempo um filme anti-Pai e Filha (Banshun, 1949), Começo de Primavera (Sôshun, 1956) (imagem abaixo, à esquerda) é uma refilmagem e ao mesmo tempo um filme anti-Viagem a Tóquio.

Quando se Repetir é Uma Virtude 

Uma repetição que
amplia  a  imaginação, e
passamos a ver os filmes
de Yasujiro Ozu como obras
misteriosas,   exatamente
em função da clareza e
 da simplicidade



Nas refilmagens de si mesmo, Ozu costumava inverter os papéis dos atores e atrizes. Dessa forma, aquele que atuou como pai num filme, atuará como filho ou irmão da personagem da atriz que no filme anterior era filha dele – mas que agora pode ser sua mãe ou irmã. Além disso, aqueles atores que atuaram em papéis sagrados num filme, em sua refilmagem poderão ser colocados em papeis profanos. A recriação de argumentos anteriores através de repetições que introduziam pelos deslocamentos em relação ao “original”, servia para negar e trair a imagem que os espectadores tivessem das obras.


(...) [É surpreende]
o ímpeto irracional [de Ozu]
, 
 que, embora (...) ciente desse fato, 
arquitetava    inversões  de  suas
próprias     obras,     causando
enorme estranhamento” (4)




Essa insistência na repetição, Yoshida enfatiza, não possui outra razão senão a auto desconfiança. Todas as obras de Ozu são revisitadas por ele, tornando-se elos numa cadeia, complementando uma a outra e dando forma a um grande e único universo. O caos ilimitado do mundo, de acordo com Ozu, impossibilita sua representação. Qualquer tentativa de representação não passaria de repetição de contornos efêmeros – e foi este o metido que o cineasta escolheu para mostrar o caos do mundo.

Isso fazia de Ozu um anti-historicista, pois questionava as mudanças e acreditava apenas em pequenas defasagens que brotavam das repetições. Um minimalismo que fazia com que fosse considerado um conservador com olhos voltados para o passado. Entretanto, Yoshida sugere, Ozu via a história do homem tendendo para um fim e que o mundo também tem um limite. Tudo que podemos fazer seria preservar ao máximo a existência, sem nos exaurirmos inutilmente. O cinema de Ozu se restringe aos acontecimentos do cotidiano com a intenção de preservar a preciosa existência humana, enxugando ao máximo e controlando essa existência.

“Ozu parece tornar patente (...) o desejo de que seu universo cinematográfico se constituísse de uma cadeia circular de [refilmagens], pois, apesar dos limites que percebia neste mundo, alternava repetições e deslocamentos, porém sem exauri-los inutilmente. Quando falamos de suas obras, somos obrigados a afirmar, tautologicamente, que são típicas de Ozu, porém dizer isso expressa nosso temor de nos perdermos num labirinto sem saída, presos em seu círculo de [refilmagens], ao mesmo tempo em que define o intenso prazer que sentimos ao assistir a seus filmes. Assim, Ozu vai acumulando ousadamente [refilmagens] de suas próprias obras, até alcançar os últimos anos de sua tão breve existência” (5)

Notas:

Leia também:

Yasujiro Ozu e Suas Famílias

1. YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução do Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. P. 236.
2. Idem, 237.
3. Ibidem, pp. 239.
4. Ibidem, pp. 242-3.
5. Ibidem, p. 247.