24 de fev. de 2011

Este Corpo Não Te Pertence: A Mulher Fascista


Organizar Para Controlar

Benito Mussolini tinha fama de mulherengo, de homem macho. É parte do folclore dizer que muitas mulheres deixavam suas calcinhas nas praças, depois dos discursos dele - seria Berlusconi, o atual Primeiro Ministro/mulherengo italiano, a reencarnação de Benito? Entretanto, a conversa mudava quando o assunto eram os direitos das mulheres italianas enquanto cidadãs. No início do governo de Mussolini houve uma contribuição feminista. Entretanto, em 1922, a participação feminina não passava de 2%, e não havia mulheres na liderança (1) - embora isso ocorresse também noutros partidos políticos, já que as italianas não tinham direito a voto. O fascismo recrutou muitas descontentes com o feminismo, e organizações de mulheres fascistas rivalizavam com as similares católicas. De acordo com Michael Mann, o fascismo precisava organizar as mulheres para controlá-las. O controle se deu de forma não-coercitiva, através de atividades sociais e ritualizadas. O fascismo às homenageava como “reprodutoras da nação”, os “anjos do coração”. Embora discursassem com textos escritos basicamente pelos homens, pela primeira vez as mulheres foram projetadas no cenário nacional. O que o poder queria das mulheres do povo, era o bom e velho apoio passivo.



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Em Um Dia
Muito Especial,
Scola  mostrou  que
tipo   de   função   era
reservada à mulher/
mãe italiana na

  era fascista




Em 26 de maio de 1927, naquele que ficou conhecido como Discurso da Ascensão, Benito Mussolini mostra sua obsessão em relação às taxas de natalidade. Naquela época a política imperialista de Mussolini (e de muitos outros), mas também a política industrial em geral, era muito dependente de uma alta taxa de natalidade – uma preocupação nacionalista desde 1923. O casamento, dizia o nacionalista Alfredo Rocco, não se dá em benefício dos cônjuges, mas como ato de dedicação e sacrifício, pois a família é o núcleo de fundação da sociedade. O Futurismo de Marinetti também deu sua contribuição com a introdução do conceito de mulher-raiz. Em 1926, nasce uma discussão entre cientistas e assistentes sociais sobre a necessidade de exames pré-matrimoniais visando garantir a compatibilidade genética dos cônjuges e a “saúde da raiz itálica” (2). Seja para dispor de gente para colonizar áreas conquistadas, ou dispor dos soldados que conquistarão novas áreas, o contingente populacional era um fator crucial. Portanto, naquele dia de maio, o famoso discurso de Mussolini selou o futuro da condição feminina no regime fascista.





Em     Amarcord,
Fellini   nos   mostrou
a  mentalidade  do  povo
italiano durante o fascismo
.
Gradisca
,   por   exemplo,
adorava os homens em
 
uniformes militares





A demografia e a raça eram as duas preocupações principais do governo. Considerada questão de saúde pública, o aumento da taxa de natalidade fez da demografia o maior inimigo dos donos de bar - assim como das camisinhas, do aborto e do trabalho feminino fora de casa. Sob a bandeira da luta contra o alcoolismo, Mussolini chegou a fechar 25 mil bares. A lógica machista por trás foi fazer com que os homens largassem o vinho e o carteado, indo procurar outro passatempo debaixo dos lençóis. Mussolini também questionava o que considerava incompetência do governo liberal por não dar devida importância à questão demográfica como base da força econômica de uma nação. Todos os métodos contraceptivos foram condenados, o que agradou ao Vaticano. Mas como fazer com que as mulheres largarem os empregos, voltarem para casa e assumirem os velhos papeis de mãe-esposa-arrumadeira? Em Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare, direção Ettore Scola, 1977), acompanhamos o dia de uma dessas criaturas. O fetiche de Gradisca por uniformes militares em Amarcord (direção Federico Fellini, 1973) deveria facilitar bastante o trabalho dos fascistas. (no vídeo abaixo, Amarcord. A seqüência mostra a visita de um oficial fascista, Gradisca é a morena de roupa e boné vermelhos. Pode-se notar que eles estão trotando ao invés de marchar. Aqui Fellini fez alusão ao costume do fascista Achille Starace, que achava que assim seria identificado como um homem enérgico. A certa altura, um deles faz alusão ao fato de que Mussolini tem “colhões”)


Todo o peso da política demográfica recairá sobre os ombros das mulheres, fascistas ou não. Em 1929, o programa demográfico fascista é lançado: 1) desestímulo às migrações para o exterior e as cidades; 2) estímulo à natalidade; 3) proteção da maternidade e da infância. Mussolini propagou a idéia de que a baixa taxa de natalidade colocaria em risco a civilização italiana. Os médicos foram induzidos a “demonstrar” que as mulheres que tinham filhos eram mais belas e saudáveis. A Universidade de Roma realizou uma pesquisou e concluiu que a elegância no vestir tem reflexos negativos na fecundidade. Além do mais, como a maioria dos frutos da natalidade deveria tornar-se soldado, era melhor que elas tivessem filhos homens. A mulher passa a ser considerada a depositária da pureza racial italiana, função articulada à de “mãe responsável”. Quer dizer, ela deve estar em casa criando marmanjos saudáveis para entregar ao Duce. A eugenia está por traz dessa busca de “incremento qualitativo e quantitativo da raça”. Apesar disso, ressaltou Bosworth, o racismo fascista tinha um sentido mais espiritual e subjetivo do que no caso dos nazistas. As medidas legislativas que se apresentaram como protetoras, na verdade ajudaram a construir a gaiola que isolou a mulher, subordinando-a ao homem.

O Dia das Mães Italianas




A ditadura fascista
se proclamava um Estad
o
do bem-estar social

R. J. B.
Bosworth (3)





Instituída em 1925, a Agência Nacional para Mães e Crianças (Opera Nazionale Maternità e Infanzia, ONMI) (4), pensada pelos liberais e Católicos, era ligada ao Partido Fascista e seu objetivo era prestar assistência às mães necessitadas e à infância abandonada. Fornecia-se auxílio também as mães de filhos ilegítimos. Entretanto, sustenta Vicini, o objetivo seria mais ligado às idéias eugênicas do que a qualquer outra coisa: acreditava-se que o aleitamento no seio materno (impossível num orfanato) reforça a saúde do filho. Portanto, mesmo as mães com filhos ilegítimos devem fornecer à pátria homens fortes. As mulheres desempenhavam também o papel de propagandistas da ONMI, pois entravam nas casas para difundir as idéias de Mussolini sobre os deveres da maternidade, sobre a eugenia, sobre a hierarquia entre os sexos. Pelo menos durante a época de Mussolini, a instituição jamais chegou a ser efetiva fora do papel.




A política

de Mussolini para
as mulheres não passava 
de uma tentativa de melhor administrar a dominação dos
homens sobre elas. Nisso ele
não   fez   diferente   de
nenhum Estado no
Ocidente





Em 1933 foi instituída a Giornata della Madre e del Fanciullo. Em 1934 a revista Almanacco Della Donna Italiana relembrou o evento como um momento de festejo e glorificação das mães e a maternidade. Uma exaltação do que constitui o maior “mérito da ração”: a fecundidade. A revista lembrou ainda a distribuição de presentes às famílias numerosas e as informações sobre aleitamento e higiene. Contou-se ainda com exibição de filmes de educação demográfica e recreação, para a mãe e o filho. Mussolini em pessoa daria um prêmio em dinheiro para os 92 casais mais férteis! A Giornata aconteceu durante o Natal, o objetivo era aproximar-se da festa cristã e capturar sua aura sacra. De acordo com Bosworth, apesar de realizações como a Agência Nacional para Mães e Crianças, o que poderia parecer um Estado do bem-estar social fascista não passava de uma preocupação indireta da liderança patriarcal. No discurso do Dia da Ascensão, Mussolini explicitou o papel crucial da demografia em seu projeto político. Os italianos bebem demais, ele dizia – embora tenha feito o mesmo na juventude (5). Mussolini chegou a dizer que a industrialização e rápida urbanização estavam esterilizando os italianos. Apesar de haver criticado a vida no campo, ele passou a defender a ruralização como fonte da vida demograficamente produtiva (6).




Nem só de fundamentalismo
islâmico é feita a misoginia







Augusto Turati, secretário do Partido Fascista e racista de carteirinha, dizia que a raiz da raça tinha de ser protegida. A família, a educação da mulher e o “problema da raça” eram as questões fundamentais de litígio dos Fascistas. Em relação à crítica de Mussolini à metrópole, talvez seus projetos de cidade espalhados pela Itália fossem uma resposta. A reurbanização de Roma levada a cabo por ele, abrindo avenidas e botando abaixo bairros medievais para permitir seus desfiles militares, seria uma solução? Mães Italianíssimas, assim foram chamadas as italianas residentes no exterior - que o Partido chamou para terem seus filhos na Itália. Mas a estrutura do projeto era precária, italianas pobres em outros continentes dificilmente encontravam ajuda. Outro problema foram as trabalhadoras. Como trazê-las de volta para dentro de casa? O problema de mandá-las de volta para os afazeres domésticos é que os industriais precisavam delas. De qualquer forma, elas eram mais maleáveis porque menos sindicalizadas. Elaboraram-se dois princípios para a política fascista do trabalho: 1) o Estado deve tutelar as mulheres enquanto mães ou futuras mães; 2) as mulheres devem trabalhar, mas seria melhor se o fizessem em casa.




Leia também: 

Fellini: Infantilismo e Fascismo na Sociedade Italiana
As Mulheres de Federico Fellini (I), (II), (III), (IV), (V), (VI), (VII), (VIII)
Fellini e a Orquestra Itália
Mussolini e a Sombra de Auschwitz

Notas:

1. MANN, Michael. Fascistas. Tradução de Clóvis Marques. RJ/SP: Record, 2008. Pp. 141-2.
2. VICINI, Sergio. Fasciste. La Vita Delle Donne nel Ventennio Mussoliniano. Milano: Hobby & Work, 2009. Pp. 23-4, 27-8, 29, 31, 35.
3. BOSWORTH, R. J. B. Mussolini's Italy. Life Under the Fascist Dictatorship, 1915-1945. New York: Penguim Books, 2006.  P. 442.
4. VICINI, Sergio. Op. Cit., pp. 36, 40-1.
5. BOSWORTH, R. J. B. Op. Cit., pp. 245.
6. VICINI, Sergio. Op. Cit., pp. 25, 42, 44.