28 de mar. de 2009

A Face do Mal (II)


“Satan é uma palavra hebraica que
significa adversário, nada mais”(...) Satã
é um título, não é nome de ninguém”(...)
O adversário de Deus (o Diabo) é chamado
diabolos
nos Evangelhos de Lucas e Mateus.
Essa palavra grega significa acusador ou
difamador; foi traduzida para o latim como
diabolus
”(...)”Porém, mais de trezentos
anos antes de Cristo, um fator de resultados
imprevisíveis fora introduzido pelos judeus
alexandrinos: ao verterem o Antigo
Testamento para o grego, traduziram
o satan hebraico para o grego
diabolos. É por isso que o Diabo do
Antigo e do Novo Testamentos
têm o mesmo nome, embora não
signifiquem a mesma coisa”(1)


Queima de Arquivo

A etimologia de Diabo vai muito longe, ainda teríamos que ver vários textos sagrados antigos, na literatura, traduções e re-traduções, as influências de outras culturas, etc. Lúcifer também não é o nome de ninguém, significa apenas “o que leva a luz” (2). Foram os padres da Igreja do século V os responsáveis pela primeira e decisiva re-interpretação do motivo por que o anjo Lúcifer foi expulso do céu. O Abismo de Fogo, um reino infernal governado por Satã e os anjos rebeldes, aparece primeiro em Enoque. Apesar da importância desse texto, alguns teólogos não aceitaram certas definições contidas no texto e o “eliminaram”. A origem dos anjos caídos e do pecado de Satã encontra-se nos versículos iniciais do Gênesis, capítulo 6.

O problema era o sexo, “os filhos de Deus” mantinham relações sexuais com as filhas dos homens! Entre os dois grupos fora rompida por desejo sexual. Enoque falava justamente dos filhos da união entre anjos e mulheres – chamados “espíritos maus sobre a terra”. Deus instruiu Rafael para amarrar o líder dos anjos e atirá-lo num buraco no deserto e lançá-lo ao fogo no dia do Juízo. Miguel deveria levar os outros anjos pecadores e sua prole para o Abismo do Fogo, onde seriam atormentados por toda a eternidade. Portanto, o pecado do Diabo foi luxúria e não orgulho. Mas os tais primeiros padres da Igreja excluíram Enoque e escreveram que Justino, martirizado em Roma no ano de 165 d. C., falou de anjos que violaram a ordem, cedendo aos impulsos sexuais e fizeram sexo com mulheres, cujos filhos agora são os demônios, os escravos da carne! (3) (imagem acima, Dia do Julgamento, século. XIII, cúpula, Florença, Itália; ao lado, A Queda dos Anjos, Apocalipse de Trier, França, ano 800; imagem abaixo, Apocalipse de Agers, de Nicolas Bataille, 1373-87)

Por Que o Diabo Anda Nu?

Embora grande parte das pinturas medievais mostre diferentes santos com os mesmos rostos, as representações das figuras mudaram entre os séculos V e XV – inclusive Jesus e o Diabo. O problema é que, se para a figura de Jesus as alterações são registradas graficamente, no caso do Diabo não o que acontece. Na Idade Média, os agentes do Diabo eram imaginados como imaginamos hoje os micróbios – sempre presentes e malignos. Enquanto a arte cristã, patrocinada pela Igreja, perder seu poder a partir do século XV, ela passa a ser apenas mais uma forma de arte entre outras. Até esse momento, a arte cristã era o grande veículo da mensagem da Igreja para as massas iletradas (4).

Pintar Jesus era fácil, mas na hora de pintar o Diabo dificuldade dos artistas era grande. Como desde sempre a Igreja havia dificultado a caracterização do Diabo, não havia nem fonte literária e nem fonte pictórica onde os pintores e escultores pudessem se basear. Os artistas criaram uma grande confusão entre o Diabo, Lúcifer, Satã e os demônios. Foi assim que os artistas foram buscar inspiração em Pã, divindade grega das florestas. Ele tinha chifres, orelhas pontudas, rabo e pés de cabra. Só que sua índole original era totalmente diferente da conotação maléfica cristã. Link também não vê Pã como o protótipo do Diabo, foram os monges que viram nele um demônio (5).

O Diabo está sempre nu, assim como Adão e Eva no paraíso. As vestimentas significam a sociedade humana. A diferença é que aquele casal foi criado nu, enquanto o Diabo foi desnudado. Apesar disso, embora tudo pareça ter começado por causa da sexualidade de Lúcifer, onde podemos encontrar em obras da Idade Média ou da Renascença os órgãos genitais do Diabo? Como os deuses tornados pagãos andavam nus, os eclesiásticos cristãos acreditavam que eles eram diabos. Nudez na arte cristã tornou-se sinônimo de degradação e humilhação para diabos, pagãos e hereges. Os criminosos eram empurrados sem roupa pelas ruas da Europa medieval e renascentista (6). Como Hipácia, primeira mulher matemática e mestra em platonismo, morta a mando de Cirilo, o bispo de Alexandria. Doze anos após a morte dela, aparece em cena o Papa Leão I.(ao lado, os muçulmanos representados como demônios, iluminura, séc. XIV)


“Leão I descreve os quatro componentes da molécula do Diabo: magia negra, judeus, hereges e pagãos. Todos eles vêm do Diabo e a ele pertencem. Leão I talvez cresse no que pregava. Mas estaria falando do adversário de Deus? Ou do adversário de Leão I? Em 1975, líderes iranianos seguiram os passos de Leão I, entoando junto com manifestantes 'América é Satã'. E em 1982, falando sobre a União Soviética, o presidente dos Estados Unidos alertou o mundo acerca do 'império do mal'. Do papa Leão I a Ronald Reagan, o Diabo é um modo de macular qualquer um que discorde dos que estão no poder. Não sei se Cirilo realmente acreditava que Hipácia era um diabo porque ela era pagã. A meu ver, isso não tem importância. Mas se o Diabo às vezes é meramente um expediente retórico, isto não significa que o mal o seja. No mesmo nível em que o Diabo não se refere ao verdadeiro mal e é um expediente retórico, o Diabo torna-se uma justificativa para o verdadeiro mal por parte de quem emprega esse expediente” (7)

Notas:

1. LINK, Luther. O Diabo. A Máscara sem Rosto. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. P. 24.
2. Idem, p. 28.
3. Ibidem, pp. 34-5.
4. Ibidem, p. 49.
5. Ibidem, p. 53.
6. Ibidem, p. 67.
7. Ibidem, p. 70.