27 de mar. de 2009

A Face do Mal (I)




“Em geral
podemos saber a data
de uma representação de Jesus devido a certas características
iconográficas”(...)O Diabo, porém,
é um capetinha impotente ou
um demônio perverso com
aparências variadas em
qualquer época” (1)




Eu e o Outro

Não são poucas as vezes que escutamos frases do tipo, “com essa carinha de santo/a, quem poderia imaginar que poderia ser tão má/mau!”. Muitas são as variações da hipótese platônica de que se alguém é bela/o, só pode fazer o bem. Não que isso seja incomum nas sociedades humanas, mas nós ocidentais somos uma cultura muito dependente da visão. Especialmente em relação a personagens heróicos de nossa história. Mas também, e principalmente, quando se trata de dar uma imagem a personagens que representam conceitos tão abstratos quanto o Bem e o Mal. (imagem acima, detalhe de Os Condenados, parte da série O Juízo Final, 1503, de Luca Sigmorelli)

Do ponto de vista dos exércitos aliados durante a Segunda Guerra Mundial, os inimigos nazistas alemães, fascistas italianos e japoneses, tinham a face do demônio. E assim eram retratados em revistas, jornais, livros e desenhos animados. O mesmo acontecia com esses inimigos quando representavam os aliados para seu próprio povo. Quem estava com a razão? Do ponto de vista dos Estados Unidos, os comunistas de todo mundo eram vistos como a semente do mal, comedores de criancinhas. Por outro lado, os norte-americanos foram os únicos capazes de lançar bombas atômicas, escolhendo populações civis como alvo.

Quem sabe como realmente foi a face de Jesus Cristo? Muitas são as representações dele, a maioria de longos cabelos e barbas quase louras e olhos azuis. Ninguém parece se importar com o fato de que era judeu e pobre, vagando pela terra desértica da Palestina sem condições higiênicas ideais. Invertendo a questão, por que as personagens más geralmente são representadas com imagens praticamente ou, às vezes, totalmente animalesca? Por exemplo, a figura do diabo de chifres e rabo pontudo. De onde veio isso?

A Máscara do Mal


“Alguns dos diabos de Fra
Angelico têm chifres
, outros,
não
; uns têm rabo, outros, não;
há os alados e os não-alados
, os
peludos e os glabros
, uns com
cara de cachorro
, outros de
gato
. E o grande Satã negro
de Fra Angélico mais parece Godzilla do que qualquer
outra coisa”
(2)



Talvez Cristo e o demônio sejam realmente assim, mas isso não quer dizer que não existiu uma fantasia em torno da reprodução de suas imagens. No sentido de que ou eles não estão mais presentes ou são invisíveis. Portanto, sem provas físicas, a recriação de sua suposta imagem fica a mercê de pessoas e/ou tendências artísticas cuja real preocupação com alguma veracidade documental é infinitamente inferior à própria fé. As representações do Juízo Final só se tornaram populares depois do século XII. Se o Diabo não tinha asas de morcego antes do ano 1300, temos de nos perguntar por que (3). (imagem acima, O Juízo Final, 1431-35, de Fra Angelico; a citação à direita da imagem refere-se a ela)

Em muitas ilustrações e estórias em quadrinhos, o Diabo geralmente segura um garfo ou forcado. A quem sugira que essa peça deriva do tridente de Posêidon, o deus grego do mar, que por sua vez deriva de Adad, antigo deus babilônico do tempo. Mas esses deuses pertenciam a uma tradição que a nascente Igreja Católica chamava de infiéis, bárbaros, hereges e pagãos. Daí que se deu um arpéu (ou gancho aforquilhado) para ele. Mas por quê? Talvez porque, em função da Inquisição, o arpéu se tornou um instrumento de tortura para purificar os infiéis. Portanto, o arpéu do Diabo servia para a tortura dos condenados.

Entretanto, por longo tempo os atributos e concepções gráficas do Diabo não estavam tão definidos quanto àqueles de Maria, Judas ou Sansão. Luther Link sugere que, pelo fato “dele” não ser uma pessoa, pode ter muitas máscaras, mas sua essência é uma máscara sem rosto. Por esse motivo o rosto do Diabo era mais difícil de representar do que o de Jesus. Conhecemos muitas representações do diabo monstruoso, mas antes do século XVI encontra-las não era tão fácil assim. Do século IX ao XVI as pinturas que retratavam satã eram ruins. Ou porque se tratava de um ser mal, ou, na verdade, porque não se sabia como retratá-lo.

Mas não podemos nos enganar, para as pessoas daquela época, o Diabo era uma presença real. Portanto, o que parece ruim aos nossos olhos atuais demonstra como é difícil por as mãos na verdade dos fatos. Ao diabo são entregues os hereges, portanto ele é uma espécie de colaborador usado por Deus, ele trabalha para Deus! “Assim, não surpreende que a Igreja não tenha dado contornos nítidos à iconografia do Diabo. O mal do Diabo requer evasivas” (...) “O Diabo constitui um problema teológico e moral: ele é o intruso que a Igreja tem o dever de não definir exatamente” (4).

Notas:

1. LINK, Luther. O Diabo. A Máscara sem Rosto. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. P. 46.
2. Idem, p. 47.
3. Ibidem, p.18.
4. Ibidem, p. 21.