Jean Cocteau
O Sangue de um Poeta
O Sangue de um Poeta
Me Dêem Um Corpo
Asas do Desejo (Himmel Über Berlin, direção de Win Wenders, 1987) (imagem abaixo) conta a história de um anjo que caminha entre as pessoas, ouvindo seus pensamentos eternamente. Seu mundo é preto e branco, o mundo dos humanos é colorido. Acompanha crises em família, dúvidas existenciais, avalia o que os humanos fazem de sua materialidade, seus corpos. Em certo ponto, ele se apaixona por uma trapezista de circo. O anjo começa então a perceber a distância que os separa: ele não tem corpo e é invisível. A única maneira de efetivar seu amor é tornar-se humano. Só que isso implica abdicar de sua imortalidade. Tornar-se corpo vivo, significa tornar-se mortal. Portanto, só poderá assumir seu amor por ela se admitir a idéia de que isso faz dele um ser finito. Para amar, ele vai ter que morrer um dia, como qualquer mortal. (imagem acima, Auto-Retrato no Futuro, 1975. Roberto Magalhães)
Mas essa é sua decisão, não há sentido em sua vida infinita se não existe a possibilidade de amar. E o corpo físico é uma necessidade para efetivar esse amor: fazer parte do mundo físico é saber que se vai abandoná-lo em breve. Vale dizer, um corpo físico finito, que envelhece e que acaba. Mas será um corpo que vive e que tem coragem de viver sua finitude. Um corpo cuja finitude torna o amor mais urgente – a vida é tão curta... Um corpo cuja finitude se traduz em amor, em afeto por alguém. Tornar-se verdadeiro, orgulhar-se de seu corpo, passa por orgulhar-se de suas marcas de finitude. As marcas do envelhecimento do corpo que vão fazer lembrar a cada momento os instantes de amor, por si, pelos outros, pela vida – como um diário afetivo. Uma poética da finitude.(imagem abaixo, Escritório em Nova York. Edward Hopper, 1962)
“[Edward] Hopper
descreve, aqui, o que o
sociólogo norte-americano,
Richard Sennett, chama o ‘paradoxo do isolamento na transparência’. Apesar de transparente, o vidro
do escritório estabelece
uma barreira” (1)
Trapezista… Sim, essa é uma boa metáfora para começarmos a compreender a questão. Como uma trapezista que está no céu (dos produtos de beleza e do corpo belo), mas não olha para baixo, somente para cima. Caso olhasse para baixo poderia perceber que o trapézio (a indústria do rejuvenescimento) não é o chão. Suspensa no ar por algumas cordas, a mulher parece não perceber os perigos físicos e emocionais que corre. Porém, sejamos otimistas, quando (ou se) ela “cair na real”, espero que não tenha sido trocada por “duas de vinte anos”. Oscilando entre a cruz e a espada, a mulher ocidental contemporânea parece seguir alegremente para a fogueira (a mesa do cirurgião plástico, o cabeleireiro, a aplicação de botox, etc).
Quando seu corpo será suficiente?
Corpos em Exibição, Vitrines da Alma?
É perfeito, porque as vítimas não percebem que o remédio escolhido para reconstruir o interior é justamente o veneno que desvia o foco de atenção para longe dos parâmetros de julgamento necessários para cuidar desta mesma beleza interior. Com relação a este ponto, podemos apenas especular quanto ao destino das adolescentes brasileiras. Segundo pesquisa recente (2), elas gastam em produtos de maquiagem mais que uma mulher adulta – a indústria agradece. O que é mais assustador, não podemos nem elogiar a maquiagem, elas querem que acreditemos que já se levantaram da cama daquele jeito! Querem que acreditemos que o rosto delas é assim! Quanto tempo levará para se tornarem inseguras quanto à própria beleza exterior? – sim, porque a mesma pergunta, que poderia ser direcionada para a beleza interior, já não faz mais sentido!
“A felicidade
é um anjo com
um rosto sério”
Amadeo Modigliani
Ou então, vamos acreditar que a precocidade com que essas meninas se preocupam em não envelhecer fará delas pessoas mais tolerantes com os mais velhos e com os velhos mesmo… Vamos acreditar? Bem, uma das soluções implementadas pela indústria é, com o aumento da população de velhos no mundo todo, reinserí-los... na vida? No mercado de consumo? Os tratamentos de rejuvenescimento (aqui incluindo, além da mulher, também o homem idoso) e os cosméticos para a Terceira Idade talvez acabem mesmo reunindo jovens e velhos - já que ambos não param de se reunir nas salas de espera das clínicas estéticas. Unidos pelo mesmo lema, vão todos seguindo o flautista até o precipício: mude apenas por fora, pode não ser mais barato, mas é mais fácil, mais rápido e, principalmente, mais visível!
Sempre
foi um grande
problema para
foi um grande
problema para
a arte tornar
sentimentos
visíveis
sentimentos
visíveis
Esse corpo perfeito, e sem gozo afetivo, que só serve para mostrar para os outros, mostra também a falta que faz um ego. Este personagem, o ego, é que deveria ser o verdadeiro juiz das necessidades de mudança externa. Sem uma vida interna (sem uma substância emocional) que interaja com o mundo exterior, nos tornamos escravos desse mesmo mundo exterior - e de processos que não visam necessariamente nosso crescimento interno. Pelo contrário, nutrem nossa fraqueza com o veneno da descrença em si mesmo. (imagem acima, à direita, Nu Reclinado com Braço Esquerdo Sobre a Fronte, 1917; à esquerda, Nu Reclinado, 19??. Imagem abaixo, à direita, Nu Sentado, 1917; à esquerda, Nu Reclinado, 1917. Os quatro de Amedeo Modigliani, 1884-1920)
Quando seu corpo será suficiente?
Introduza Uma Moeda!
Essa mercantilização da felicidade (e de certo conceito de beleza) naturalmente exclui o mais fraco – o mais pobre. Exclui também, procurando estigmatizar e segregar socialmente, aqueles (as) que conseguem encontrar formas de comunicação interna com seu próprio caos – o que os torna imunes ao excesso de estímulos externos; não porque eles evitem esses estímulos, mas porque conseguem interagir com eles, e, portanto, julgá-los. Sempre que passo por uma farmácia me lembro disso. Especialmente quando tem alguém querendo se pesar. Refiro-me àquela balança eletrônica (?) que invadiu as farmácias. Subimos nessas coisas para obter um diagnóstico sobre nós (que influenciará muito nossas vidas e auto-estima), e o que escutamos? A voz de uma mulher robótica ordenando: “Introduza uma moeda!”
Quando seu corpo será suficiente?
Notas:
1. KRANZFELDER, Ivo. Edward Hopper. Visão da Realidade. Kohl: Taschen, 2003. P. 159.
2. Reportagem veiculada no Jornal Hoje, Rede Globo, 30/03/2006.