29 de jul. de 2009

O Rosto que Temos e Aquele que Vemos (final)


O Rosto do Meu Corpo



Por paradoxal que possa soar, atualmente estamos todos um pouco como aqueles que, padecendo de prosopagnosia, não conseguem reconhecer rostos. Parece que os rostos não apontam mais para um “eu”, mas para um “isto”. Assim como naquela doença, para quem não existe uma persona por trás dos rostos, para nós a identidade do Outro, nosso reconhecimento dele, nos é interdito. Seja porque o ser sempre foi um mistério, ou porque a sociedade contemporânea construiu um muro em torno de cada um de nós, o “eu” torna-se um “isto” quando a existência se materializa: entretanto, a fragilidade da materialidade do eu surge quando se procura percebê-la. Portanto, talvez mais complexo e problemático do que o encontro do eu com outrem seja o encontro do eu consigo mesmo – especialmente quando procuramos nosso eu no não-eu que é nosso reflexo nos espelhos. (imagem ao lado, Auto-Retrato, Zoran Music, 2000)


Escravos   da   busca   de   sentindo,
não sabemos se isso é bom ou ruim



Como seria um mundo sem espelhos? Como seria um mundo onde não víssemos nossos rostos, mas apenas nossas mãos? Na verdade, esse é exatamente o mundo em que vivemos. Entretanto, curiosamente não percebemos isso, tão naturalizado está o uso do espelho. Em Auto-Retrato sem Espelho (imagem ao lado), Ernst Mach criou um auto-retrato sem rosto, mostrando nossa experiência mais cotidiana. Podemos ver apenas um pouco de nós, e o espelho nos devolve uma imagem invertida (poucos se dão conta disso). Esse eu que reconheço em mim (fora do espelho) é um estranho.

Um intruso em minha imagem, assim como não reconheço minha própria voz numa gravação, deveria estranhar também meu reflexo no espelho, mas isso não acontece. Por quê? No fundo, a imagem que o espelho "me reflete" é tão incapaz de me apresentar minha identidade quanto qualquer outra imagem de mim que o mundo me devolva. A melhor parte de nós está mesmo no espelho (do lado de fora de nós)?

“Um retrato é uma discórdia”
Henry Matisse

Em O Retrato de Dorian Gray (1891), Oscar Wilde chega ao extremo do retrato que vampiriza. Dorian faz um “pacto com sua imagem no espelho”, gostaria de conservar sua juventude e beleza para sempre. Enquanto isso, ganha de presente uma pintura, um retrato seu de corpo inteiro. Enquanto o tempo passa, a figura no retrato vai se transformando num monstro (imagem ao lado), e Dorian continua a exibir sua juventude e beleza. Um retrato vivo que mostra o eu degenerado que aquele homem não conseguia enxergar m si mesmo. O livro trabalha o tema do duplo, esse outro de nós que parece dominar nossas vidas quando se separa de nossa materialidade (nosso corpo físico). (imagem abaixo, Sonho, Roberto Magalhães)

O discurso das essências, supondo que tenhamos uma essência, aqui se encontra também: a imagem monstruosa de Dorian no retrato sugere nossa punição quando tentamos dominar os desígnios de nossa alma em função de vontades egoístas. O texto de Wilde também remete a nosso medo arcaico das imagens e retratos, através dos quais poderíamos agir sobre os outros com um feitiço. “Enfeitiçar”, em francês (envoûter) está ligado ao latim vultus, que em italiano se torna volto, que se opõe a viso, que é o rosto descoberto que se oferece à visão. Volto remete ao invisível, ao secreto no rosto, àquilo que determina poderes ocultos – próximo da máscara. Se um retrato pintado pode ser um vampiro, um espelho também poderia nos vampirizar? Mas ele não é nosso aliado?

De acordo com Jean Clair, encontramos mais vultus (ou volto) do que visus na expressão latina aut vulva aut vultus, onde se descreve a impossibilidade da representação simultânea das partes espiritual (o rosto) e animal (o sexo) do humano nas estátuas pré-históricas e algumas mais recentes - se o rosto aparece, ele exclui a natureza (a vulva). Clair não aprofunda essa observação, mas talvez isso explique a aparição, no universo da pornografia, dessa posição sexual que permite ao homem a visualização da vagina e do rosto da mulher ao mesmo tempo. No auto-retrato de Mach, sugere Clair, o divã onde ele está deitado lembra um pênis. Mach teria mostrado um falo neste auto-retrato sem rosto? Seria uma interrogação a respeito da “natureza” da mulher e ao mesmo tempo sobre o interdito da representação de si? (1)

Foi o filósofo existencialista Jean-Paul Satre quem confessou que a infelicidade é não conseguir ver o próprio rosto. Nosso rosto vem na nossa frente, confidencia para os rostos dos outros as informações sobre nós que ignoramos. Meu eu neste caso, em princípio, está fora de meu corpo assim como minha imagem refletida no espelho. Meu eu está... nos outros. E os outros? Numa frase célebre de Sartre, “o inferno são os outros”. Vivencio meu rosto como um orifício, uma cavidade, um buraco, uma falta através da qual devoro as aparências que o mundo me apresenta. Uma oralidade que grita, urra. Da qual encontramos representações nos rostos pintados por Edvard Munch (O Grito, 1893) (imagem abaixo) e Francis Bacon (Tríptico para Uma Crucificação, 1944) (imagem acima) (2). O primeiro é um é o rosto que não olha, e o outro foi reduzido a uma boca primitiva. Não existe mais o rosto voltado para outrem, no face a face do olhar.

Munch criou um rosto sem traços humanos, já o tríptico de Bacon representa os horrores da Segunda Guerra Mundial. E como lembrou Jean Clair, talvez os campos de concentração nazistas fossem os lugares onde se pôde fazer um homem perder os traços, perder o rosto. Arrancar deles a capacidade de seu rosto como se retira a pele de um coelho, chegando à humilhação total desses seres de rostos esfolados. Seja no espelho, na fotografia ou na pintura, os rostos se tornaram um problema quase insolúvel ou, no mínimo, povoado de labirintos – que são nossos próprios labirintos. Jean Clair conclui:

“(...) O grande debate da arte de nosso tempo não teria sido o debate da figuração e da abstração, teria sido o debate da representação do rosto e de sua impossibilidade. Assim como o século XVIII foi o século de ouro do retrato individual, nesta admirável galeria de rostos agarrados em sua singularidade e sua individualidade, de Lyotard a Houdon, de La Tour a Chardin,(...) nosso século terá sido habitado por sua impotência em retomar a identidade do eu no retrato” (3)

Em sua simultânea e paradoxal falta e multiplicidade de sentido, resta o corpo, e um rosto que, nele, se esconde dele, e talvez ainda mais de si mesmo. Como uma ausência na presença. Algo que existe na e pela sua invisibilidade em relação a seus próprios donos. Que ainda se afirmem donos de si mesmos, seus donos vivem na ausência de seus próprios rostos, ou só os podem encontrar através de um espelho, um reflexo – um vultus? Um viso? Um duplo invertido do rosto que sentem que lhes pertence, mas que somente é parte de um eu na medida em que é invisível para ele e para si mesmo.

Notas:

1. CLAIR, Jean. Autoportrait au Visage Absent. Écrits sur L’art 1981-2007. Paris: Gallimard, 2008. P. 414.
2. Idem, pp.410-1.
3. Ibidem, p. 416.