1 de dez. de 2010

O Mundo Infantil de Picasso (I)






“Apenas na ob
ra de Paul Klee
o interesse nas qualidades da cr
iança
tem um significado comparável”

Werner Spies (1)





Um Tema Anacrônico?


A representação de crianças como indivíduos dotados de personalidade é recente na arte. Nos séculos passados, elas não passavam de motivos decorativos ou eram vistas como adultos em miniatura. Mesmo na arte do século XX, imagens de crianças estavam longe de serem freqüentes. Podemos encontrá-las em artistas como Henry Matisse (1869-1954), Käthe Kollwitz (1867-1945), Otto Dix (1891-1969), Hans Bellmer (1902-1975), Max Beckmann (1884-1950) ou Balthus (1908-2001). Entretanto, como sugeriu Werner Spies, não se pode afirmar que o conteúdo das imagens aqui implique nenhum progresso antropológico. Nesse particular, conclui Spies, quadros com crianças compartilham o mesmo destino do retrato e da pintura de figuras em geral. Sendo considerada apenas diversão anacrônica, no máximo apenas interessante. Em Pablo Picasso (1881-1973) este tema possui maiores ramificações. Se a arte do século 20 fez mais do que refletir passivamente o universo da criança, foi porque passou a adotar o ponto de vista dela como forma de quebrar as grandes da tradição e da convenção acadêmica. E Picasso abriu caminho, com seus papiers collés e esculturas feitas com objetos aleatórios. De fato, desde o Romantismo existe uma tendência a ver as coisas desse modo, como no caso de Crianças de Hülsenbeck (1805-6), de Philipp Otto Runge (1777-1810), onde um jardim é feito do ponto de vista da criança. Na opinião de Spies, a partir daqui existe um fio que leva direto a Alice no País das Maravilhas, às histórias de Hans Christian Andersen (1805-1875) e pinturas, desenhos e esculturas de Picasso (2).



O ponto
de vista
da percepção
infantil estaria na base
da revolução da arte
no século 20




Logo de cara, é preciso distinguir entre os retratos que Picasso fez de seus próprios filhos e os que apenas tinham crianças como um motivo genérico. De acordo com Spies, os exemplos mais admiráveis de crianças na obra de Picasso ocorrem entre as décadas de 30 e 40 do século passado. Em particular, a garotinha que aparece numa série de cenas surreais e mitológicas. Em Guernica (1937) (imagem no princípio do artigo, detalhe do lado esquerdo do painel), em alguns estudos que acompanham esta obra sobre os horrores da guerra, e em The Charnel House (1944) (imagem acima, à direita). A maioria dos retratos de criança pintados por Picasso foi realizada enquanto ele não tinha filhos, com a chegada da paternidade, seus retratos de crianças se restringiam aos próprios filhos. Depois de 1920, mais de três quartos das pinturas sobre o tema mostravam seus filhos – Paolo (nascido em 1921), Maya (1935), Claude (1947) e Paloma (1949). Mas quase todas elas seriam destinadas ao álbum de família, muito poucas saíram do estúdio. Para além do caráter biográfico das pinturas de seus filhos, Picasso também empreendia algumas pesquisas sobre o tema. Como, por exemplo, entre as décadas de 40 e 50, quando esteve fascinado pela hipótese da animalidade e espontaneidade de uma existência infantil pré-civilizada. É interessante notar que as crianças na obra de Picasso são muito novas, e desaparecem ao alcançar a puberdade (3).

Picasso Também Foi Criança



Picasso não teve tempo
de ser criança
, o artista lamentou não
ter podido experimentar a ingenuidade
infantil na hora certa






O traço do jovem Picasso tinha pouco de infantil, ele rapidamente alcançou um toque profissional. Essa virada na direção da maioridade foi encorajada por uma ambiciosa família. Se tudo isso faz algum sentido, para alguém a quem nunca fora permitido ser criança, é compreensível sua atitude posterior em relação à infância. A precocidade de Picasso continuou presente em seu trabalho até o Período Rosa. Nessa altura, encontramos a seguinte declaração do próprio artista: “Ao contrário da música, não existe criança maravilha na pintura. O que você pode considerar um gênio precoce é, na realidade, o gênio da infância. Isso desaparece numa certa idade, sem deixar traços. Possivelmente, tal criança irá algum dia tornar-se um pintor de verdade, até mesmo um dos grandes. Mas então ela terá de começar novamente do início. Eu, por exemplo, não possuo esse gênio. Nem mesmo meus primeiros desenhos poderiam ser pendurados numa exibição de arte de crianças. Elas quase completamente não possuem o embaraço infantil, a qualidade ingênua... Eu passei do nível dessas maravilhosas visões muito rapidamente. Naquela idade jovem eu estava desenhando de forma muito acadêmica, tão meticulosamente e precisamente que me horroriza pensar sobre isso agora... Meu pai era um instrutor de desenho, e provavelmente me direcionou prematuramente nessa direção” (4)

Com exceção de um retrato de sua irmã (Primeira Comunhão, 1896) (acima, à esquerda), não são encontrados retratos de crianças no trabalho desses anos. As cenas do Período Azul apresentando crianças (sozinhas ou em grupo, com os parentes ou irmãos) são intemporais se com paradas as do período Rosa. De acordo com Spies, com a possível exceção de Le Gourmand (1901) (que poderia estar a evocar uma fome de viver), as crianças representadas nessa fase parecem existir num estado etéreo, flutuante. O estado de espírito básico é fixado por um quadro muito familiar e, a primeira vista, alegre. Criança com Pomba (1901) (acima, à direita), que Picasso pintou na fase de transição para o Período Azul. A garotinha, sua cabeça ligeiramente inclinada, pressiona a pomba sobre seu peito. Ou, antes, ela parece agarrar o pássaro como se fosse a única ancora emocional que ela tivesse no mundo. Ao contrário da maioria das crianças nos quadros dos meses subseqüentes, ela ainda deseja estabelecer contato visual com o espectador. Spies afirma que já se pode perceber o gesto introvertido, a recusa do contato físico, que irá dominar a arte de Picasso pelos próximos anos. A criança, Spies sugere, parece se recolher em si mesma, como se estivesse numa concha protetora.

Esta imagem, Spies insistiu, está longe do modo com as crianças eram retratadas na França, Inglaterra e Alemanha, do final do século 18 em diante. A passagem da família de uma vida pública para outra privada (excluindo os outros, como diria Philippe Ariès) é um aspecto completamente ausente da parte inicial da obra de Picasso. A paz do lar vitoriano, ou a aristocrática auto-suficiência que garante segurança as crianças e adolescentes, não será encontrada em parte alguma de Picasso. Também não se vai encontrar qualquer traço daquilo que se poderia chamar fenomenologia da infância, a emergência da infância como um estado de direito próprio. O trabalho inicial de Picasso não mostrará sinais da otimista fé no progresso que a sociedade burguesa projeta em sua descendência, como a fundação de seu próprio futuro. Cenas onde espaços públicos e acontecimentos do dia-a-dia desempenham um papel, como em Café in Montmartre (1901), são apenas apartes pitorescos. Quando uma mãe ou criança numa de suas pinturas estende as mãos para o céu, o gesto parece mais uma evocação religiosa do que um ato de revolta. É exatamente isto, afirma Spies, que distingue as mães e crianças de Picasso em relação às representações revolucionárias de um Jean-François Millet (1814-1875), Constantin Meunier (1831-1905) ou Honoré Daumier (1808-1879). A presença de vagabundos e crianças mendicantes no trabalho inicial de Picasso sugere mais uma mensagem religiosa do que social. A padronização da expressão facial remete aos modelos romanescos ou góticos. Existe um estado de espírito sagrado, embora os traços da arte eclesiástica tenham sido eliminados ou bastante reduzidos. Os movimentos das crianças de Picasso são cerimoniosos, suas cabeças arqueadas, suas expressões introvertidas. Fazem poses de adultos, é como se a vida fosse hostil a eles: nunca riem, nem mostram um traço de sorriso. Essa frieza nunca desapareceu das representações de crianças em Picasso (5).

Notas:

Leia também:

O Olho e o Corpo: Erotismo em Pablo Picasso
Picasso e as Cabeças das Mulheres
Arte Degenerada
O Inferno é Para as Crianças (I), (II), (final)
Sergio Leone e a Trilogia do Homem sem Nome

1. SPIES, Werner. Picasso’s World of Children. New York/Munich: Prestel-Verlag, 1994. P. 12.
2. Idem, pp. 10-1.
3. Ibidem, pp. 8-9.
4. Ibidem, p. 21.
5. Ibidem, pp. 22-3.