3 de dez. de 2010

O Mundo Infantil de Picasso (II)





Guernica
marcará a primeira vez
na obra de Pablo Pica
sso onde
ele mostra uma
mãe que chora,
tendo seu filho morto
nos braços




 

Cubismo: a Busca por Um Mundo Sem Infância

Entre o Período Rosa e o cubismo, a obra de Picasso passou por uma fase de transição na qual ele executou alguns retratos de crianças. Na opinião de Werner Spies, dentre os melhores exemplos dessa mudança estão as duas versões de Os Dois Irmãos (1906). As roupas dos quadros de acrobatas foram abandonadas. O nu, um gênero raro no trabalho inicial de Picasso, agora o fascina cada vez mais. Mas a nudez não constitui apenas isso, ela foi o presságio de toda uma nova orientação. As poses tornam-se mais naturais e as figuras estão livres do lastro psicológico e literário. Essa mudança de paradigma será retomada 15 anos depois, quando Picasso abandonar o idioma cubista, servindo de base para sua mudança para o classicismo. Por hora, a presença simples das figuras que o artista agora pinta estabelecem o quadro para a emergência do Cubismo. Os quadros se parecem cada vez menos com retratos tradicionais, as expressões faciais dos períodos Azul e Rosa (máscaras convencionais de sofrimento, proteção ou melancolia) desapareceram. De fato, ressalta Spies, Picasso parece eliminar mesmo a menor referência às emoções refletidas na face humana (1).(imagem acima, Mãe com Criança Morta, estudo para Guernica, 1937)

Nessa altura, as crianças desapareceram do trabalho de Picasso por muitos anos. Ao mesmo tempo, sua busca por uma imagem pura, livre de todo acidente, chegou a um estágio crucial. Fascinado pelo exemplo de Cézanne, Picasso procurava um “agora que está ainda” (Nunc stans), algo no que ele possa se agarrar num mundo de vertiginosas mudanças. A meta do Cubismo era encontrar uma forma de agarrar a realidade, o mundo dos objetos, em termos intemporais. Não havia mais lugar para formas “jovens”, para o estágio de transição simbolizado pela infância. Nas palavras de Spies, a idéia de crescimento biológico e psicológico deixou de interessar. Entretanto, se Picasso abandonou a infância como tema, ela passou a ser um norte para a busca de sua arte: a atitude profundamente infantil conhecida como “primitivismo”. Acontece também uma virada na direção da arte não-européia. Mas o desinteresse em relação à criança corresponde à fase do inicial do Cubismo, os temas começaram a se multiplicar novamente. Então a criança volta a ser um motivo de pintura (2). (o vídeo acima é uma animação, não corresponde ao painel original)

As Crianças Mortas


Picasso teve 2
mulher
es "ofic iais",
mais 7 clandestinas
, além de muitas amantes
e 4 filhos


Pode-se procurar por toda a obra de Picasso sem encontrar um auto-retrato dele junto com seus filhos. A única exceção são desenhos com nanquim feitos na década de 50 do século passado. Mesmo assim, eles mostram silhuetas de Picasso, Françoise (uma de suas esposas), Paloma, e Claude como se fossem fantasmas. Paolo desapareceu da arte do pai pouco depois do desenho ter sido feito. Por algum tempo, crianças só apareciam em grupos mitológicos no contexto de cenas de praia, retratos não reapareceram até o final dos anos 30. Maya aparece em vários desenhos e pinturas, representada através de um estilo bem distinto daquele com o qual Picasso pintou Paolo. O pintor não deixou traços da vida em família. Certa vez, uma crise entre o artista e Olga (uma de suas esposas) explodiu. Picasso deixou escritos comentários que fazem alusão à segurança pré-natal, um desejo de retornar ao útero. E desta forma ele se identificava com Maya, sua próxima filha, que Marie-Thérèse Walter (amante com quem Picasso teve dois filhos; ignorada pelo mestre, suicidou-se) ainda estava carregando na barriga. Como disse Spies, “os textos que [Picasso] escreveu na época indicam que a infância aparecia como um paraíso tentador, do qual ele próprio sempre fora excluído (3). (imagem abaixo, à direita, Garoto com Lagosta, 1941)

As crianças que Picasso pintou e desenhou em Royan estão entre corpos e rostos mais distorcidos (4)


No final da década de 30, Picasso continuava a empregar o idioma que havia desenvolvido em Guernica (1937). A presença de uma criança neste painel sublinha o fato de que a infância em sua obra não estava restrita a fases idílicas e retratos tradicionais. Guernica transmite uma impressão global de ameaça e pânico, embora tenha sido realizada como uma mensagem contra a guerra. Um dos elementos dessa mensagem é a mãe chorando com a criança morta, uma imagem que aparece pela primeira vez na obra de Picasso (5). Spies observou que, desse ponto em diante, crianças aparecerão em cada uma de suas pinturas “históricas”. Além de Guernica, The Charnel House (1945), Massacre na Coréia (1951) (imagem acima, à esquerda), Guerra e Paz (1952) e Estupro da Sabina (1963), todas incluem crianças mortas ou em perigo iminente.


Apesar de sua função nessas telas históricas, Spies insiste que algumas crianças parecem fechadas em seu próprio mundo seguro. Isso seria válido inclusive para o tempo que Picasso ficou em Paris durante a ocupação nazista. Em 1939, quando a guerra estourou, ele escapou para Royan, na costa francesa do atlântico. Uma serie de cabeças mortas e naturezas mortas, com crânios de animais mostrando um grau de deformação física sem precedentes, datam de sua estada ali. Entretanto, Spies sustenta que os rostos deformados não carregam uma mensagem psicológica negativa. A opinião muito comum (na época como agora) de que a obra de Picasso nada mais é do que um monte de máscaras distorcidas demonstra apenas como as pessoas são tentadas a confundir o estilo com o conteúdo (6).



Notas:

Leia também:

Os Auto-Retratos de Francis Bacon
Retrato e Auto-Retrato
Arte do Corpo: Carolee Schneemann e o Olho/Corpo
A Face do Mal (I), (II), (final)
Purgatorium: a História de Uma Palavra (I), (II), (final)
A Fabricação do Herói (I), (final)
As Mulheres de Andrzej Wajda (I)
, (II), (III), (IV)
Fellini e a Psicanálise (I), (final)

1. SPIES, Werner. Picasso’s World of Children. New York/Munich: Prestel-Verlag, 1994. P. 41.
2. Idem, pp. 43, 44 e 46.
3. Ibidem, pp. 64-5.
4. Ibidem, p. 73.
5. Ibidem, p. 65.
6. Ibidem, p. 66 e 74.