23 de mai. de 2010

Do Samurai ao Kamikaze





“O ato característico dos homens na guerra
não é mo
rrer, é matar”

Joana
Bourke (1)





Tudo Começa Com Honra (2)

O Hagakure, uma obra didática destinada aos samurais do século XVIII, diz que não se pode encontrar um homem belo cuja aparência não esteja respirando serenidade, dignidade calma. Para obter tal controle de si, é necessário ser reservado, austero mesmo, sério, mas sempre devotado, justo e respeitoso com os outros. Tais virtudes marciais de simplicidade e lealdade foram formuladas, posteriormente, no que chamamos de Bushido, o “caminho dos guerreiros”. Este famoso código de honra dos samurais japoneses, forjado pelo budismo zen e pelo confucionismo, determina deveres recíprocos entre senhores e servos. Ensina não apenas como desenvolver a coragem e as qualidades físicas, mas também como comportar-se diante de seus superiores. Recomenda a honestidade, a magnanimidade, o desinteresse e o desprezo em relação à morte.


Para uma
sociedade que vende

armas de brinquedo para
crianças, condenamos o
espírito Kamikaze
rápido demais




O espírito do Bushido sobrevive hoje de forma atenuada na prática de artes marciais. Mas foi ele que acompanhou os jovens pilotos Kamikazes no final da Segunda Guerra Mundial contra as forças norte-americanas. De acordo com Dominique Buisson, quando o homem de hoje se identifica com o mito do samurai, o faz, sobretudo, a nível social: a força e a superioridade do guerreiro que reivindica como um patrimônio antigo, pés firmemente colados no chão, confiança, barriga para frente, coluna reta e cabeça erguida. Uma grande concisão verbal está a serviço da entonação grave de sua voz.(primeira imagem, seguindo a tradição: piloto japonês leva consigo uma espada samurai; acima, à direita, e abaixo, Kamikazes momentos antes de decolar para sua única missão)


“Se colocamos tão alto a dignidade da vida, como
não colocar igualmente
alta a dignidade da morte?
A morte não pode jamais
ser qualificada de fútil”


Yukio
Mishima


Cristãos Deveriam Saber Morrer

“Falamos muito
de lutar até o último
homem e
até o último
cartucho
, mas o soldado
japonês
é o único
que faz isso”

Marechal Slim, Comandante do 14º
Exército Britânico na Birmânia (3)


De acordo com Barbara Ehrenreich, durante a Segunda Guerra o Japão era alicerçado num nacionalismo leigo. A escola pública incluía treinamento militar para os meninos e para ambos os sexos uma doutrinação militarista e adoração ao imperador. As aulas de ciências e matemática eram repletas de exemplos tirados do campo de batalha. O imperialismo japonês abraçou o xintoísmo tradicional. Até o período Meiji, no final do século XIX, o xintoísmo tendia a ser apolítico e não muito “religioso”. Ocupava-se mais dos festivais religiosos e pregar a obediência aos rituais domésticos e de casamentos. Por esta razão, os samurais preferiam o budismo, sua austeridade e indiferença em relação à morte. Mas os samurais eram uma elite reduzida, e seu zen-budismo nunca atraiu muitos adeptos (4). (imagem acima, à esquerda, Kamikaze prestes a errar o alvo; abaixo, Kamikaze prestes a certar o alvo)


Não adianta taxar
guerreiros suicidas de
dementes. A fronteira entre
o heroísmo e o fanatismo
é sempre determinada
pelo vencedor




Ehrenreich esclarece que, com a militarização da sociedade japonesa a partir da virada do século XX, o xintoísmo ligou-se ao nacionalismo. Os sacerdotes recebiam dinheiro público para preparar outros sacerdotes e cuidar dos santuários. Também gozavam de apoio do Estado em relação à rivalidade com o budismo. No início da Segunda Guerra, afirmou Ehrenreich, o xintoísmo havia se tornado a religião do Estado. Para não serem acusadas de fundamentalismo religioso, as autoridades assumiram que o xintoísmo não era uma “religião”, mas algo leigo e arraigado na vida japonesa: um “espírito nacional”. No centro disso tudo estava a idéia do Kokutai, o corpo-nação – correspondendo ao que os intelectuais ocidentais chamavam de “nação com organismo”. Era a noção de que os cidadãos formavam uma “massa”. Representado pelo imperador e pelos sacerdotes xintoístas, o Kokutai exigia fidelidade absoluta, inclusive a aceitação de morrer por ele – essa coisa toda, Ehrenreich sugeriu, não diferia muito do ideal de sacrifício presente no nacionalismo europeu. Sendo assim, o estereótipo do déspota oriental, é construído um pouco em função de nossa cegueira em relação a nós mesmos. (imagem abaixo, à direita, mais um Kamikaze prestes a atingir o alvo; no final do artigo, mais um grupo deles em sua cerimônia final antes da última missão)

“Como os
nacionalismos
europeus
, o Estado
xintoísta via na guerra
uma empreitada
sagrada”

Barbara
Ehrenreich (5)


Embora tivesse ecos no passado, o “culto Kokutai”, surge apenas na década de 30 do século passado. A idéia de nação como um corpo ou organismo místico centrado no corpo de um líder era um fenômeno da era moderna: a era dos grandes exércitos. No antigo Japão dos samurais, o Bushido representava uma ética de elite de guerra – semelhante ao dos cavaleiros europeus medievais das cruzadas. Na era dos grandes exércitos, o Bushido deveria incluir as massas, que agora poderiam morrer gloriosamente na guerra – direito que antes, lembra Ehrenreich, somente seus superiores tinham. Ainda de acordo com Ehrenreich, o nacionalismo religioso japonês suplantou seu correspondente europeu no que diz respeito à glorificação dos mortos na guerra. Se os europeus homenageiam seus mortos, os japoneses os tratam como deuses. Seis mil jovens se apresentaram para as missões suicidas na Segunda Guerra... Um escrito no bolso de um soldado japonês mortos dizia: “Vou me transformar numa divindade e sorrirei em meio à neblina espessa. Estou apenas aguardando o dia da morte”. No fundo, não se pode dizer de Ohnishi, o mentor dos Kamikazes, que agiu diferentemente da maioria dos líderes ocidentais (políticos e militares) quando se trata de dispor da vida alheia...

(...) Se formos resolutos
e estivermos preparados

para sacrificar 20 milhões
(...) num esforço Kamikaze,
a vitória será nossa”


Almirante Takajiro Ohnishi,
num último esforço delirante
de convencer seus pares (6)




Notas:

Leia também:

Suicídio é Pecado Mesmo?
Pênis Guerreiro
Yasujiro Ozu e Seu Japão
Estética da Destruição
Pênis e Racismo
A Fabricação do Herói (I), (final)

1. BOURKE, Joana. An Intimate History of Killing. Face to Face Killing in 20th Century Warfare. London (?): Basic Books, 1999. P. xiii.
2. BUISSON, Dominique. Le Corps Japonais. Paris (?): Hazan, 2001. P. 118.
3. BARKER, A. J. Kamikazes. Rio de Janeiro: Renes, 1975. P. 22.
4. EHRENREICH, Barbara. Ritos de Sangue. Um Estudo Sobre as Origens da Guerra. Tradução de Beatriz Horta. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2000. P. 220.
5. Idem, p. 222.
6. BARKER, A. J. Op. Cit., p. 9.