Mitos e Lendas
Ozu começou a trabalhar na época dos filmes mudos e foi um daqueles cineastas que resistiu até o último momento para aderir ao cinema falado. No início de sua carreira, seu trabalho procurava imitar o cinema norte-americano. Ao contrário do que possa parecer, Yasujiro Ozu não fazia nenhuma questão de retratar o Japão. Chegou mesmo a dizer que seu país não era cinematográfico. Como o próprio Ozu afirmou em 1933:
“A vida dos japoneses é absolutamente não-cinematográfica. Por exemplo, ainda que seja para simplesmente adentrar uma casa, é preciso abrir a porta corrediça, sentar-se no vestíbulo, desamarrar os sapatos, e assim por diante. Não há como evitar estagnações. Por isso, o cinema japonês não tem outra saída senão retratar essa vida propensa à estagnação por meio de mudanças que a adaptem à linguagem cinematográfica. A vida no Japão precisa tornar-se muitíssimo mais cinematográfica” (1)
Ozu foi bastante criticado. Mas Kiju Yoshida o defende afirmando que são palavras de alguém que ama o cinema, que acredita que ele pode desprender-se da realidade e isolar-se na tela. Não há fundamento, salienta Yoshida, na crença de que Ozu havia construído um mundo totalmente nipônico na tela. O fato de que ele passou a retratar a família japonesa, mostrando seu dia-a-dia, não aconteceu porque tenha aderido à estética japonesa. Pelo contrário, enfatiza Yoshida, desvinculou-se totalmente dela.
Nevoeiro, Chuva, Sol
Pensemos na trilogia dos grandes cineastas japoneses, Yasujiro Ozu, Akira Kurosawa ou Kenji Mizoguchi. Assim como não se pode pensar no último sem as imagens de nevoeiro, ou pensar em filmes de Kurosawa sem chuva, em todos os filmes de Ozu faz tempo bom. Este detalhe, Shiguéhiko Hasumi nos ensina, afasta completamente Ozu de uma estética japonesa. Nada é mais anti-japonês do que uma natureza onde a chuva e o frio estejam ausentes (2). É raro que os personagens de Ozu estejam de casaco, a maior parte está de camisa e colarinho aberto. Hasumi jamais viu alguém com cachecol. Mas é verdade, admitiu que em Bom Dia (Ohayô, 1959) os personagens estão de pulôver e casaco.
Por outro lado, é o filme onde talvez mais se comente sobre o tempo bom. Também é verdade que em Viajem a Tóquio (também conhecido como Era uma Vez em Tóquio, Tokyo Monogatari, 1953) Chishu Ryû leve seu guarda-chuva, mesmo que o tempo jamais justifique seu uso. Aliás, Ervas Flutuantes (Ukigusa, 1959) é um dos raros filmes onde chove.
Hasumi reprova totalmente comparações entre a obra de Ozu e o Haiku, ou noções japonesas como sabi, wabi, yûgen ou mono no awaré. A iluminação em seus filmes não convida a este tipo de consciência estética. Não há mundo insondável, ilusório e sutil nas imagens de Ozu, tudo é revelado pela luz de dias ensolarados. Embora Hasumi afirme também que a ambigüidade que se pode encontrar em Ozu não diz respeito ao contorno dos objetos (3), lembramos imediatamente do vaso em Pai e Filha (Banshun, 1949).
Hasumi reprova a abordagem de Donald Richie, crítico norte-americano radicado no Japão, uma tentativa de encontrar em Ozu uma representação da ética cotidiana própria ao Japão - Mono no awaré: expressão de origem clássica, designando a complexidade de uma emoção comprovada numa situação poética ou psicológica (4).
A Dificuldade de Ver
Embora o próprio Hasumi tenha dito que nada é mais anti-japonês do que os filmes de Ozu onde uma natureza em que frio e chuva estejam ausentes, o cineasta é japonês. Ele não é anti-japonês, apenas não é tipicamente japonês! O que Ozu fez foi libertar seus personagens, sem dúvida tipicamente japoneses, no plano sociológico – ao afastá-los da chuva, da sombra, da umidade, da névoa, colocando-os sob luz clara. Agindo assim, esclarece Hasumi, Ozu não se tornou menos japonês.
Esta confusão sobre Ozu ser tipicamente japonês seria fruto do que Hasumi chamou de uma crueldade do cineasta. Tudo nas imagens de Ozu é muito claro e compreensível, esta é paradoxalmente a grande dificuldade imposta por seus filmes. Tudo está na superfície da tela. Impedido de gozar da ilusão de ir além da tela, conclui Hasumi, o olhar se sente obstruído pelas imagens. “Esta é a crueldade de Ozu. Podemos imaginar uma experiência mais penosa do que olhar um filme onde só encontramos imagens?” O resultado, ainda de acordo com Hasumi, é que o olho renunciará a seu direito à imagem – abandonando a própria visão (5). (todas as imagens destes artigo pertencem a Pai e Filha)
Leia também:
Yasujiro Ozu, o Tempo e o Vazio
Yasujiro Ozu e Suas Ironias
Isto é Hollywood!
Notas:
1. YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução do Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. P. 43.
2. HASUMI, Shiguéhiko. Yasujirô Ozu. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1998. P. 187.
3. Idem, p. 188.
4. Ibidem, p. 28.
5. Ibidem, p. 205-6 e 216.