Fogo e Gelo
O cristianismo medieval se apoiou nesta citação das Escrituras para construir o Purgatório. Quente e frio são dois elementos muito presentes no Purgatório. O fogo, em particular, desempenha um papel central. No Purgatório medieval, e mesmo antes, o fogo surge de muitas formas: círculos de fogo, lagos e mares de fogo, anéis de chamas, muralhas e fossos de fogo, monstros cuspidores de fogo, carvão em brasa, almas em forma de labareda, rios, vales e montanhas de fogo. O papel do “fogo sagrado” é apagar o período da existência já vivida e tornar o próximo possível (1).
O cristianismo medieval se apoiou nesta citação das Escrituras para construir o Purgatório. Quente e frio são dois elementos muito presentes no Purgatório. O fogo, em particular, desempenha um papel central. No Purgatório medieval, e mesmo antes, o fogo surge de muitas formas: círculos de fogo, lagos e mares de fogo, anéis de chamas, muralhas e fossos de fogo, monstros cuspidores de fogo, carvão em brasa, almas em forma de labareda, rios, vales e montanhas de fogo. O papel do “fogo sagrado” é apagar o período da existência já vivida e tornar o próximo possível (1).
O Purgatório se manifesta no ressurgimento da base indo-européia da qual a cristandade dos séculos XII e XIII parece ter sido palco. Neste sentido, a presença de um fogo divino (Ignis Divinus) já pode ser notada bem antes, em contos, lendas e espetáculos populares desde a Antiguidade, entre os Romanos, os Gregos, os Iranianos e os Indianos. Ao lado do fogo do forno, do fogo da forja e do fogo da pira, agora também deve ser colocado o fogo do Purgatório. Este fogo rejuvenesce e imortaliza. O cristianismo se apropriou da lenda da Fênix, que se tornou um símbolo da humanidade chamada para a ressurreição.
De acordo com Jacques Le Goff, essa herança esclarece características importantes do “fogo expurgador”, que tiveram um papel primordial na construção do Purgatório na Idade Média. Devemos passar por um fogo que rejuvenesce. Compreende-se porque os vulcões atraíram a atenção quando se procurou localizar o Purgatório na terra. O fogo fazia par com a água fria ou gelo. Os corpos dos ascetas se deixavam expor igualmente ao gelo e ao fogo. O “batismo de fogo”, evidentemente metafórico, tinha como objetivo batizar pela água e pelo espírito, para que quando o crente chegasse ao rio de fogo, mostre que conservou os recipientes de água e espírito e que merece receber o batismo de fogo em Jesus Cristo (Lucas, III, 16, Lucam, homilia XXIV) (2). (imagem acima, detalhe do tríptico Os Bem Aventurados e os Condenados [?], Hieronymus Bosch, 1500) Le Goff acredita que o fato de a concepção do Purgatório ser construída a partir de elementos herdados de tradições mais antigas facilitou o êxito dessa rearticulação do espaço divino cristão. O cristianismo...
“(...) Recolheu o fogo divino que rejuvenesce e imortaliza, mas fez dele não uma crença ligada a um ritual, mas um atributo de Deus, cujo uso é determinado por uma dupla responsabilidade humana: a dos mortos, que devem, segundo o seu comportamento na terra, ser-lhe ou não submetido; a dos vivos, cujo maior ou menor zelo pode alterar-lhe a duração de atividade. O fogo do Purgatório, continuando a ser um símbolo portador de sentido, o da salvação pela purificação, tornou-se um instrumento ao serviço de um sistema de justiça complexo, ligado a uma sociedade completamente diferente daquelas que acreditavam no fogo regenerador” (3)
Santo Dinheirinho
Aparentemente, teria sido pela crença dos primeiros cristãos na eficácia de suas preces pelos mortos que se chegou à concepção do Purgatório (pois o caminho do morto, pois o caminho ainda não estava completo). Mas levou tempo até que essa crença se articulasse à outra, a crença na existência de uma purificação depois da morte. Além disso, pelo menos para os vivos havia claramente o estabelecimento de um grande leque de vantagens terrenas (incluindo as financeiras, como mostra a questão da cobrança de indulgências, e dá o que pensar se suas atitudes sugerem não se importar que isso os leve para o Inferno – supondo que realmente acreditem nessa possibilidade). (imagem ao lado, A Gula, detalhe de Os Sete Pecados Capitais e as Quatro Últimas Coisas, de Hieronymus Bosch, c. 1490; abaixo, à direita, o Orgulho, outro detalhe da mesma obra; não foi possível determinar o título e a autoria da imagem acima, à direita)
“Que acréscimo de poder para os vivos, este domínio sobre a morte! Mas também, aqui em baixo, que reforço da coerência das comunidades – famílias carnais, famílias artificiais, religiosas ou confraternais – que extensão, após a morte, que solidariedades eficazes! E para a Igreja, que instrumento de poder! Ela afirma o seu direito (parcial) sobre as almas do Purgatório como membros da Igreja militante, pondo à frente o foro eclesiástico em detrimento do foro de Deus, o detentor da justiça no além. Poder espiritual, mas também, muito simplesmente, [...] lucro financeiro de que se beneficiarão, mais do que os outros, os irmãos das ordens mendicantes, propagandistas ardentes da nova crença. O ‘infernal’ sistema das indulgências encontrará nelas finalmente um alimento revigorante” (4)
Um Lugar nas Palavras
Para a teologia católica moderna, o Purgatório não é um lugar, mas um estado. Le Goff defende, entretanto, que a concepção do Purgatório como lugar e as imagens ligadas a ele desempenharam um papel importante no fortalecimento desse novo espaço divino.
A cultura folclórica, afirma Le Goff, também foi importante para o nascimento do Purgatório. Muitos elementos são provenientes dos contos populares ou aparentados. Além disso, nessa fase a Igreja está mais aberta às tradições populares que ela mesma havia tentado destruir anteriormente (5).
Buscando explicar a falta de interesse dos historiadores, Le Goff afirma que o problema é que eles não dão a devida atenção às palavras. O aparecimento da palavra purgatorium em textos perdidos no tempo exprime a tomada de consciência do Purgatório.
De acordo com Jacques Le Goff, essa herança esclarece características importantes do “fogo expurgador”, que tiveram um papel primordial na construção do Purgatório na Idade Média. Devemos passar por um fogo que rejuvenesce. Compreende-se porque os vulcões atraíram a atenção quando se procurou localizar o Purgatório na terra. O fogo fazia par com a água fria ou gelo. Os corpos dos ascetas se deixavam expor igualmente ao gelo e ao fogo. O “batismo de fogo”, evidentemente metafórico, tinha como objetivo batizar pela água e pelo espírito, para que quando o crente chegasse ao rio de fogo, mostre que conservou os recipientes de água e espírito e que merece receber o batismo de fogo em Jesus Cristo (Lucas, III, 16, Lucam, homilia XXIV) (2). (imagem acima, detalhe do tríptico Os Bem Aventurados e os Condenados [?], Hieronymus Bosch, 1500) Le Goff acredita que o fato de a concepção do Purgatório ser construída a partir de elementos herdados de tradições mais antigas facilitou o êxito dessa rearticulação do espaço divino cristão. O cristianismo...
“(...) Recolheu o fogo divino que rejuvenesce e imortaliza, mas fez dele não uma crença ligada a um ritual, mas um atributo de Deus, cujo uso é determinado por uma dupla responsabilidade humana: a dos mortos, que devem, segundo o seu comportamento na terra, ser-lhe ou não submetido; a dos vivos, cujo maior ou menor zelo pode alterar-lhe a duração de atividade. O fogo do Purgatório, continuando a ser um símbolo portador de sentido, o da salvação pela purificação, tornou-se um instrumento ao serviço de um sistema de justiça complexo, ligado a uma sociedade completamente diferente daquelas que acreditavam no fogo regenerador” (3)
Santo Dinheirinho
Aparentemente, teria sido pela crença dos primeiros cristãos na eficácia de suas preces pelos mortos que se chegou à concepção do Purgatório (pois o caminho do morto, pois o caminho ainda não estava completo). Mas levou tempo até que essa crença se articulasse à outra, a crença na existência de uma purificação depois da morte. Além disso, pelo menos para os vivos havia claramente o estabelecimento de um grande leque de vantagens terrenas (incluindo as financeiras, como mostra a questão da cobrança de indulgências, e dá o que pensar se suas atitudes sugerem não se importar que isso os leve para o Inferno – supondo que realmente acreditem nessa possibilidade). (imagem ao lado, A Gula, detalhe de Os Sete Pecados Capitais e as Quatro Últimas Coisas, de Hieronymus Bosch, c. 1490; abaixo, à direita, o Orgulho, outro detalhe da mesma obra; não foi possível determinar o título e a autoria da imagem acima, à direita)
“Que acréscimo de poder para os vivos, este domínio sobre a morte! Mas também, aqui em baixo, que reforço da coerência das comunidades – famílias carnais, famílias artificiais, religiosas ou confraternais – que extensão, após a morte, que solidariedades eficazes! E para a Igreja, que instrumento de poder! Ela afirma o seu direito (parcial) sobre as almas do Purgatório como membros da Igreja militante, pondo à frente o foro eclesiástico em detrimento do foro de Deus, o detentor da justiça no além. Poder espiritual, mas também, muito simplesmente, [...] lucro financeiro de que se beneficiarão, mais do que os outros, os irmãos das ordens mendicantes, propagandistas ardentes da nova crença. O ‘infernal’ sistema das indulgências encontrará nelas finalmente um alimento revigorante” (4)
Um Lugar nas Palavras
Para a teologia católica moderna, o Purgatório não é um lugar, mas um estado. Le Goff defende, entretanto, que a concepção do Purgatório como lugar e as imagens ligadas a ele desempenharam um papel importante no fortalecimento desse novo espaço divino.
A cultura folclórica, afirma Le Goff, também foi importante para o nascimento do Purgatório. Muitos elementos são provenientes dos contos populares ou aparentados. Além disso, nessa fase a Igreja está mais aberta às tradições populares que ela mesma havia tentado destruir anteriormente (5).
Buscando explicar a falta de interesse dos historiadores, Le Goff afirma que o problema é que eles não dão a devida atenção às palavras. O aparecimento da palavra purgatorium em textos perdidos no tempo exprime a tomada de consciência do Purgatório.
“(...) Fossem realistas ou nominalistas, os clérigos da Idade Média sabiam bem que entre as palavras e as coisas existe uma união tão estreita como entre corpo e alma. Para os historiadores das idéias e das mentalidades, as palavras – certas palavras -, fenômenos a longo prazo vindos lentamente das profundezas, tem a vantagem de aparecer, de nascer e de trazer assim elementos cronológicos sem os quais não há verdadeira história. É verdade que não se data uma crença como um acontecimento, mas devemos afastar a idéia de que a história a longo prazo é uma história sem datas. Um fenômeno lento como a crença no Purgatório estagna, palpita durante séculos, repousa nos ângulos motos da corrente da história e depois, repentinamente ou quase, é arrastado na massa da onda não para nela se perder, mas, ao contrário, para emergir e dar testemunho. Quem fala do purgatório – nem que seja de forma erudita – desde o Império Romano até à cristandade do século XIII, de Santo Agostinho a São Tomás de Aquino, e assim situa o aparecimento do substantivo entre 1150 e 1200, deixa escapar aspectos capitais dessa história, se não o essencial. Deixa escapar, ao mesmo tempo que a possibilidade de esclarecer uma época decisiva e uma profunda mutação da sociedade, a oportunidade de descobrir, a propósito de crença no Purgatório, um fenômeno de grande importância na história das idéias e das mentalidades: o processo de espacialização do pensamento” (6)
Notas:
1. LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Lisboa: Editorial Estampa, 2ªed., 1995. P. 22-3.
2. Idem, p. 24.
3. Ibidem, p. 25.
4. Ibidem, p. 26.
5. Ibidem, p. 27.
6. Ibidem, pp. 17-8.