“Os homens podem utilizar mulheres maravilhosas e sexy como objetos neutros ou superfícies, mas quando as mulheres utilizam seus próprios rostos e corpos, são imediatamente acusadas de narcisismo”
Lucy Lippard
Expoente da Body Art (Arte do Corpo), a norte-americana Carolee Schneemann despertou tanto repulsa quanto admiração com seu trabalho. A insistência na autenticidade da experiência física caracterizava a Arte do Corpo norte-americana em geral, que era influenciada pela fenomenologia do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1).
Schneemann chegou à Nova York em 1961 se envolvendo imediatamente com happenings performativos. Entretanto, foi antes disso que ela desenvolveu um gosto que levaria por toda sua carreira: tornar concreto x tornar abstrato, tornar literal x tornar simbólico. Ainda como pintora recém formada, imaginou uma mistura entre Antonin Artaud, Virginia Woolf, Wilheim Reich, Simone de Beauvoir e Cézanne, que apontava para um impulso de “envolvimento sensorial” com seu trabalho – tanto de parte do artista quanto do público. Inicialmente sua ênfase na tatilidade estava diretamente relacionada à esperança modernista no poder redentor das coisas por elas mesmas (a vingança de um objeto em função de sua articulação arbitrária ao signo que o representa) (2).
Em 1961 ela se incorpora ao movimento Fluxus, participando de três performances até começar a perceber como mesmo dentro de um grupo artístico que pretendia ultrapassar os limites da arte estabelecida não abandonava o comportamento machista, misógino e falocêntrico. Schneemann começa a se interessar pela carne enquanto elemento de um corpo que não pode ser dissociado de sua significação sócio-cultural. Essa preocupação com uma tatilidade específica (a materialidade da carne e o status de objeto do corpo feminino relativamente a suas delimitações sócio-culturais) levou a uma virada em seu trabalho, um ponto de politização que ela não tinha antes, um objetivo feminista em seu trabalho.
Em Eye/Body (Thirty-Six Transformative Actions for Camera) (Olho Corpo [Trinta e Seis Ações de Transformação para a Câmera]), de 1963, (as 4 imagens do artigo) produzido em seu próprio apartamento, ela ultrapassa seu próprio limiar. Caminhou diretamente para dentro de seu ambiente, tornando-se seu próprio trabalho. Até então, na história da arte performática, que pode ser traçada até o início do século 20 com os dadaístas de Zurique, os construtivistas russos e os futuristas italianos, as mulheres (mesmo as influentes) sempre haviam sido relegadas ao status de “esposa” ou “amante” ou “musa” ou “esforçada” (3).
Eye/Body está entre as primeiras instalações norte-americanas a incorporar o corpo da própria artista como terreno primário visceral e visual. Schneemann inseriu seu corpo na moldura ambiental de sua arte, executando uma série de ações que antecipam a explosão da Body Art nos anos 60 e 70 do século 20.
O ambiente foi montado com de painéis de 4x9, vidro quebrado, cacos de espelho, fotografias, luzes e guarda-chuvas motorizados. O corpo da artista era apenas mais um dos materiais. Schneemann entrou em seu trabalho e, naquilo que ela chamou de uma “espécie de ritual xamânico”, incorporou seu corpo nu através de pintura, brilhantina e escrituras em sua pele.
Embora historiadores da arte tenham sugerido que Eye/Body, assim como seu trabalho subseqüente Meat Joy (Alegria da Carne, 1964), mapearam uma nova direção e até anteciparam tanto a revolução sexual dos anos 60 quanto o feminismo, a artista acreditava que naquela época seu trabalho era rejeitado como algo auto-indulgente, exibicionista, cuja única intenção seria estimular os homens. Muito do impulso para incluir seu corpo nu em Eye/Body deriva do fato de que a artista ficou de saco cheio ao constatar que o fato de ser mulher impedia que ela fosse um contribuinte sério para o mundo da arte (4).
Sua resposta a esse sentimento foi cobrir seu corpo nu em Eye/Body com tinta, brilhantina, cacos de espelho, cordões e plástico. Sua idéia era confrontar diretamente a sensação de que ela havia sido incluída no movimento Fluxus apenas como uma mascote com vagina. Eye/Body sugere uma “visão incorporada”, um “olho corporal” (olhos vistos, olhos do artista), não apenas naquele que olha, mas também no corpo daquele que é visto.
O que marca essa performance de Schneemann como historicamente significante para uma arte performática feminista é o fato de que a artista não é mais apenas a imagem, mas uma produtora da imagem. Confirmando as suspeitas de Schneemann com relação ao machismo entranhado no movimento Fluxus, George Maciunas, o pai do movimento, achou Eye/Body muito “bagunçado” para ser considerado parte do grupo. Referindo-se a Schneemann como uma “mulher aterrorizante”, ele baniu a artista do grupo, ainda que tenha admitido os igualmente “bagunçados” Wolf Vostell e Claus Oldenburg no Fluxus (5).
Notas:
Leia também:
As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
1. LÖFFLER, Petra. Carolee Schneemann. IN GROSENICK, Uta (ed.). Mulheres Artistas, nos Séculos XX e XXI. Köln: Taschen, 2002. P. 487.
2. SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 1997. P. 32.3. Idem, p. 188n20.
3. Idem, p. 188n20.
4. Ibidem, p. 34.
5. Ibidem, p.189n24.