A frase de O Silêncio dos Inocentes (Silent of the Lambs, 1991) dá o tom de nossa busca. Uma agente do FBI insistentemente pergunta a um famoso ex-psiquiatra comedor de carne humana sobre o paradeiro de um assassino de mulheres que teria sido seu cliente. Procurando mostrar em forma de enigma qual é o objetivo desse assassino, o canibal enuncia esta frase. Pois bem, o assassino não matava por ódio. Na verdade, gostava tanto das mulheres que queria ser uma delas. Entretanto, para alcançar seu objetivo, ele raptava mulheres meio gordas. Mantendo-as em cativeiro, as engordava mais e mais. Então as matava e retirava partes de suas peles. Então as costurava. Pretendia fazer uma roupa com a pele das mulheres.
Paul Valery tem uma frase, “o mais profundo é a pele”. Seja como for, o assassino de mulheres parecia fixar a identidade delas no elemento mais material e mais visível. Ser mulher passava por parecer com uma mulher. Desta forma, para ele ser mulher não teria nenhuma relação com a busca de uma possível alma feminina. Travestido com pele humana morta, o assassino parece curto-circutar a lógica da linguagem não-verbal da aparência. Platão já havia chamado atenção para a inutilidade do mundo sensível. Ou melhor, sua única utilidade seria servir de degrau para ultrapassá-lo.
A fisiognomonia sempre baseou seus estudos na articulação entre a afirmação da necessidade de um mundo sensível articulada à crença na existência de outro, desta vez inteligível. Sendo que é deste que podemos inferir a verdade última. Trata-se, na verdade, da velha questão da engenharia dos métodos de previsão.

Eco nos conta que, com Charles Darwin e Cesare Lombroso, o século XIX confere a ela um status científico. Procurava-se desta forma distinguir entre uma fisiognomonia natural (associações frágeis e ambíguas) e outra fisiognomonia, dita científica (baseada em estudos anatômicos) (2). A frenologia postula que tudo encontra representação na superfície do cérebro: faculdades mentais, tendências, instintos, sentimentos. Por exemplo, aqueles com acentuadas qualidades mnemônicas tem o crânio redondo, olhos salientes e distantes um do outro. Combatida por todos, pretendia que, mesmo que um indivíduo seja honesto, sua honestidade é mentirosa porque sua conformação craniana mostra quem ele de fato é.
Aberrações
Em seu livro, Aberrações (4), Jurgis Baltrusaitis mostra como o pensamento fisiognomônico atravessou a Antiguidade, Idade Média, Renascimento e Modernidade. De pensadores como Aristóteles e Descartes, passando por artistas como Miguel Ângelo, Leonardo Da Vinci, Rubens, e escritores como Goethe, Zola, Marivaux e Balzac, a fisiognomonia foi motivo de intensa pesquisa.
Em 1776 Rubens publica um tratado que corrobora as tradições esotéricas do século XVI. Segundo Baltrusaitis, Rubens representa a última eclosão das cosmogonias fantásticas na história da ciência das formas humanas (5).
Uma revisão da fisiognomonia, que já se anunciava desde a Antiguidade, eclode no século XV. Lomazzo deu o chute inicial ainda em 1584, depois por um teólogo, Coeffeteau (1620), um médico, Cureau de La Chambre (1640-1662), e um filósofo, Descartes (1649). Trata-se dos estudos das paixões, sentimentos passageiros, que afrontavam os caracteres permanentes propostos na fisiognomonia. (acima, um dos muitos jatos de combate norte-americanos que durante a guerra do Vietnã eram pintados com rostos de animais ferozes)
Em sua teoria da fisiologia, Descartes propõe que as paixões se localizam na glândula pineal do cérebro e não no coração, como se acreditava. A questão é que poderiam ser percebidas a partir de sinais exteriores. Baltrusaitis mostra o comentário de Charles Le Brun, contemporâneo de Descartes, quanto às conseqüências para os artistas... “E como dissemos que a glândula que está no meio de cérebro é o lugar em que a alma recebe as imagens das paixões, as sobrancelhas são a parte do rosto em que as paixões se dão a conhecer melhor” (6).
Em 1678, Le Brun apresenta sua criação na Academia de Pintura. Elabora 41 máscaras de paixões simples e derivações, onde as sobrancelhas comandam os movimentos. Ainda assim, completa Baltrusaitis, “a sombra do animal permanece ao fundo”. Le Brun segue em sua caracteriologia dividindo os homens em 3 classes:
1) de paixões suaves que não alteram seus traços;
2) de paixões generosas que imprimem neles uma marca particular;
3) de paixões condenáveis e atrozes que degradam seu rosto.
Interessante notar que a forma considerada mais negativa parece muito com o nariz do judeu típico... “Mas o cúmulo da desgraça está reservado a quem junta esses sinais funestos um nariz que termina em bico de corvo: ele deve então, irremediavelmente, ser presa das paixões as mais condenáveis” (7). Nota-se como os escorregões no preconceito são perfeitamente possíveis. Tempos mais tarde, no século 20, Adolf Hitler patrocinaria uma perseguição sem precedentes aos judeus, onde a fisiognomonia seria retomada com o objetivo de marcar a diferença (e a suposta superioridade) dos arianos em relação aos judeus.
Tudo isso acaba por dar à cabeça um valor maior frente ao restante do corpo. Le Brun partia do princípio de que se o homem é uma cópia reduzida do universo, sua cabeça resume seu corpo. Por conta da glândula pineal, a cabeça se torna também sede da alma, além de conter um mundo animal. Ainda que se admita que os animais difiram tanto quanto os humanos em suas afeições, o alfabeto de sinais mais seguros seria fornecido pelos animais (8)(imagem abaixo, Lula, presidente do Brasil). Como disseram Gilles Deleuze e Félix Guattari no século 20: separaram a cabeça do corpo...

Leia também:
Rostos: Fisiognomonia (II)
As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
Notas:
1. ECO, Umberto. A linguagem do rosto IN Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
2. Idem, p.48.
3. Ibidem, p. 52.
4. BALTRUSAITIS, Jurgis. Aberrações. Ensaio sobre a lenda das formas. Tradução de Vera de Azambuja Harvey. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999.
5. Idem, p. 33.
6. Ibidem, p. 34.
7. Ibidem, p. 38.
8. Ibidem, p. 35.