
Pai e Filha, Viagem
a Tóquio e Os Irmãos
da Família Toda, estão
entre os filmes de Ozu
onde sua abordagem
em relação ao drama
familiar é mais
exemplar (1)
a Tóquio e Os Irmãos
da Família Toda, estão
entre os filmes de Ozu
onde sua abordagem
em relação ao drama
familiar é mais
exemplar (1)
Objetos Japoneses
No cinema de Ozu, existe toda uma discussão a respeito do olhar dos objetos em contraposição ao nosso olhar. Entretanto, seus filmes não deixam de mostrar outro tipo de objeto: a mulher. Em muitos lugares, esse objeto é mudo (mesmo quando fala) e seu olhar só adquire valor enquanto interessa aos homens - o interesse de Ozu é no outro tipo de objeto. Mesmo nos filmes que dirigiu durante a guerra, ele nunca a mostrou. Mas no caso da posição de sujeição da mulher, mesmo sem querer, em seus filmes ele acaba permitindo que se monte um panorama da vida das japonesas.
Em Os Irmãos da Família Toda (Toda-ke no kyôdai, 1941), temos um retrato do tratamento que as mulheres japonesas recebiam (não recebem mais?). Suas vestes são tradicionais, enquanto os homens usam ternos ocidentais. Além disso, elas estão sempre fazendo alguma tarefa doméstica a mando de um homem. Flagrante a respeito da inferioridade da mulher japonesa: Uma senhora comenta com uma mãe sobre a filha. Quando a filha da moça nasceu, a velha lembra-se de comentar com um homem que havia nascido uma menina. “Uma menina de novo? Meninas não valem nada”, respondeu. Ela retrucou, “bebês não nascem sem mulheres”. O homem disse que sabia e deu uma risada.
Não há nudez feminina nos
filmes de Ozu (2), não no
sentido ocidental. O corpo
da japonesa aparece no
gestual, no sorriso, na voz
Quando o filho mais novo, que tinha problemas com o pai, volta para o aniversário da morte deste, descobre que sua mãe e sua irmã não casada estavam morando sozinhas numa casa velha. Os outros filhos e suas esposas não deram moradia a elas – que tiveram que vender tudo depois da morte do marido/pai para pagar as dívidas. Além disso, esses filhos estavam até reclamando (na frente da mãe) que a cerimônia de luto foi demorada - Em Viagem a Tóquio (também conhecido com os títulos Era Uma Vez em Tóquio e Contos de Tóquio, Tokio Monogatari, 1953), após enterro da velha mãe também encontramos um comportamento arrogante nos filhos.


Entre Pais e Países
Estamos no Japão, numa época de militarismo entre as décadas de 30 e 40 do século passado. Yasujiro Ozu, assim como outros tantos cineastas japoneses do período, tinha dificuldade em escapar da pressão desse contexto social. Foi quando optou por filmar dramas de família, apresentando temas universais, independentes de crises políticas e guerras. Como já aconteceu em outros lugares, o governo militar desejava filmes que tivessem a família como tema. Foi então que Ozu dirigiu Os Irmãos da Família Toda. O cineasta declarou que este filme se tornaria seu modelo de drama familiar (4).
Entretanto, Ozu não estava apenas fazendo o que mandavam. Substituindo o país militarizado pela família e percebendo na estrutura desta o equivalente de um sistema hierárquico-social paternalista, Ozu procurou fazer uma avaliação do processo totalitário em seu país. O cineasta sempre problematizava a figura do pai – não seria esse um paralelo com a nação paternalista e autoritária? De acordo com Ozu, nos dias comuns, o normal de uma família é que ela não se reconheça como tal. Somente em situações extremas, como enterros ou crises, a família toma consciência de si mesma (5).
A Realidade e a Ficção
Se em Os Irmãos da Família Toda Ozu sugere que a família só se conscientiza na eventualidade de um funeral ou uma despedida, em Era Uma Vez Um Pai (Chichi ariki, 1942) o cineasta sustenta a qualquer custo a relação entre pai e filho. Naquela época, em plena Segunda Guerra Mundial (quando o Japão ainda estava ganhando a guerra), o título poderia ter sugerido um louvor à figura paterna. Entretanto, o pai do filme é hesitante. Um homem comum que chega a questionar a própria autoridade. Como no filme anterior, neste o pai também morre.
Somente em 1947 Ozu volta a filmar, Relato de Um Proprietário (Nagaya Shinshiroku) acompanha um órfão de guerra buscando abrigo com uma velha que mora sozinha numa parte da cidade que havia sido poupada dos bombardeios norte-americanos sobre o Japão. A velha não gosta dele, mas não tem coragem de expulsá-lo. À primeira vista, as palavras descrevem um filme realista, mas para Ozu o realismo não passa de ficção (7). Quando a velha sai para procurar o garoto que sumiu, não existem postes destruídos ou prédios em ruínas.
Como numa utopia, não havia o caos do pós-guerra, tudo estava no lugar. De acordo com Kiju Yoshida, o que poderia soar como insensatez da parte do cineasta nada mais é do que o ponto de vista intemporal de Ozu: “não seria adequado dizer que se trata de um cinema anti-realista?” Consciente da situação caótica do Japão no pós-guerra, Ozu buscava a ordem através das lentes da câmera. Ele era contra a situação criada pelo Estado, que espalhava a insegurança, a incredulidade, a loucura e o ódio, para dissimular o caos do mundo. (imagens acima, à esquerda, e ao lado, a pescaria de pai e filho em Era Uma Vez Um Pai; abaixo, à esquerda, a velha e o orfão de Relato de Um Proprietário)

Ozu não teria sido anacrônico, defende Yoshida, ele apenas se isolou em seu temperamento antitemporal. O órfão volta a morar com a velha, com o passar do tempo eles tiram uma fotografia juntos e se comportam como se fossem mãe e filho. Mas o pai verdadeiro aparece e parte com o filho como se nada de extraordinário houvesse ocorrido. A fotografia de família que já vimos em Os Irmãos da Família Toda retorna. Este filme começa com a família reunida para uma fotografia da comemoração dos 60 anos do velho pai. Mais tarde, ele passa mal e falece – curiosamente, o próprio Ozu viria a morrer também no dia em que comemorava 60 anos de idade.

Quando realidade e ficção se superpõem, mesmo que por inversão, a trama entre os personagens se move – mesmo imóveis diante da câmera. No período final da obra de Ozu, as famílias, que já não se reuniam mais, juntavam-se por causa de uma morte, um casamento ou uma viagem. “A cena da fotografia-lembrança está lá exatamente para provocar o destino. Concretização também do fato de que um movimento cinematográfico tem necessidade de seu contrário: a imobilidade (...)” (10).

“(...) Em Uma Galinha no Vento, o próprio Ozu aderia claramente aos modos de representação que uniformizavam as individualidades, coisa a que ele tanto tinha se oposto. O diretor obedeceu ao senso comum que afirma que, em última instância, um filme deve parecer um filme. Desse modo, distanciou-se da íntima certeza de que um filme não passa de um empastelamento da realidade concreta (...)” (12)
O Que Vemos de Nossas Vidas
Em Pai e Filha, um pai viúvo insiste para que sua filha se case. Ela teve problemas de saúde durante a guerra e acabou perdendo o que no Japão se considera (considerava?) idade ideal para o casamento. Ela insiste que prefere ficar cuidando dele. O pai finge que pretende se casar (e, portanto, não precisaria mais dos cuidados dela), a mentira dá resultado e a filha aceita casar-se. Parte da linhagem dos dramas familiares de Ozu, neste filme ele modifica um pouco as coisas. Mesmo admitindo que as famílias não tenham consciência de si, ele achava que representar essa conscientização apenas em momentos extremos (casamentos, separações, enterros) não passava de auto engano e artificialismo.

Mesmo admitindo
que o drama familiar
continue existindo, em
Pai e Filha Ozu tentou
realizar um drama
familiar sem drama (13)
Em Viagem a Tóquio, um casal de velhos deixa Onomichi, sua cidade natal, para visitar os filhos em Tóquio. Mesmo tendo sido convidados pelos filhos, os velhos são deixados de lado, sendo amparados pela nora e viúva do filho deles que morrera na guerra. A velha morre e, depois de muitos elogios a seu comportamento, a nora confessa que não é perfeita e já se esqueceu várias vezes do falecido.
Os velhos foram à capital para um reencontro familiar, mas não foi possível restabelecer uma intimidade. A percepção dessa impossibilidade (ou incapacidade) os faz sentirem-se perdidos na grande metrópole. Eles olham para a cidade grande, mas ela lhes devolve um olhar de ausência – não conseguem identificar a cidade como um todo, apenas ínfimas partes. No fundo, aquela metrópole cheia de imagens e ao mesmo tempo inapreensível é como nossas vidas, que não conseguimos apreender completamente (14).
Leia também:
Arte do Corpo: Yoko Ono e a Tesoura
Arte do Corpo: Shigeko Kubota e a Vagina-Pincel
Geografia das Ausências em Yasujiro Ozu
Yasujiro Ozu e Seu Japão
Yasujiro Ozu e Suas Ironias
Comentário Sobre o Comportamento Sexual Feminino
Notas:
1. YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução do Centro de Estudos Japoneses da universidade de São Paulo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. P. 173.
2. TESSIER, Max. Japonais. Du bain familial aux débourdements sexuels In BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. P. 210.
3. HASUMI, Shiguéhiko. Yasujirô Ozu. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1998. Pp. 102-4.
4. YOSHIDA, Kiju. Op. Cit., p. 79.
5. Idem, p. 84-5.
6. Ibidem, p.107.
7. Ibidem, p.103-4.
8. HASUMI, Shiguéhiko. Op. Cit., p. 166-8.
9. Dispositivo que controla o tempo que a luz deve penetrar na câmera fotográfica.
10. HASUMI, Shiguéhiko. Op. Cit., p. 168.
11. No livro de Yoshida, encontramos o título como citamos. Entretanto, consta como Uma Galinha e o Vento em PARENTE, André; NAGIB, Lúcia (orgs). Ozu. O Extraordinário Cineasta do Cotidiano. São Paulo: Marco Zero, 1990. P. 188.
12. YOSHIDA, Kiju. Op. Cit., p. 109.
13. Idem, p. 128.
14. Ibidem, p. 182.