
“(...) A obra de Ozu
é daquelas cuja descoberta, mesmo tardia, nos obriga
de certa forma a repensar
o cinema (...)”
Alain Bergala (1)
de certa forma a repensar
o cinema (...)”
Alain Bergala (1)
Entre Olhar e Ver
Bergala enumera uma série de exemplos, que mostram também uma série de procedimentos do cinema tradicional que Ozu rejeitou em seu cinema. Como a panorâmica de acompanhamento (travelling), que subordina o movimento da camera ao do personagem. Ozu repudiou essa prática e, em Eu Nasci, Mas... (Umarete wa mita keredo, 1932), se ele faz um travelling acompanhando os funcionários de um escritório (que bocejam assim que entram no enquadramento da câmera), rompe a seqüência quando volta a um que não havia bocejado quando a câmera o enquadrou. Um efeito cômico fruto dessa precedência da filmagem sobre o filmado.
Não há duvida de que os dois estão se olhando, mas com ambos virados para o mesmo lado os espectadores duvidam de seus olhos. Como admitiu o próprio Ozu, ele ignorou padrão do cinema clássico que demanda que haja um cruzamento entre os olhares dos personagens com o do espectador. Mesmo assim, ressalta, a sensação de interlocução existe. Mais uma vez Ozu faz uma crítica aos engodos do cinema. E afirma em 1959, “já faz trinta anos que inventei esse modo de filmar” (3). É necessário notar, por via das dúvidas, que os japoneses raramente se olham diretamente nos olhos (4).(imagem abaixo, Fim de Verão)
O Ponto de Vista Descentrado
para contar acerca da tirania do ‘tudo pelo enquadramento’ no trabalho do cineasta (...)“ (5)
O posicionamento da câmera é uma das primeiras coisas que salta aos olhos nos filmes de Ozu: ela esta sempre próxima ao chão. Seria o ponto de vista de alguém sentado no tatame? Seria o ponto de vista de uma criança? Como sabemos, a câmera baixa de Ozu é capaz de mostrar alguém apenas da cintura para baixo a ter de acompanhar o rosto do personagem enquanto se levanta. Se o cineasta estivesse filmando do ponto de vista de uma criança, outras crianças seriam mostradas de frente. Entretanto não é isto que acontece, Ozu geralmente posiciona a câmera mais baixa ainda do que quando filmava adultos. Portanto, conclui Bergala, não é possível naturalizar o procedimento da câmera baixa como o ponto de vista de um japonês sentado no chão ou como o ponto de vista de uma criança.
No cinema clássico, o espectador está no centro, tudo na tela acontece em função de sua localização e ponto de vista. Se o espectador é excluído de uma troca de olhares entre os personagens, é porque se trata de uma câmera subjetiva. No cinema de Ozu, isso raramente acontece, até porque os personagens raramente se olham. Eles sempre parecem estar focados num ponto difícil de deduzir. É um efeito de “olhar no vazio”, um olhar para o infinito, acentuado pelo paralelismo do olhar dos personagens (imagem abaixo, O Sabor do Chá Verde Sobre o Arroz, Ochazuke no Aji, 1952). Esses olhares-Ozu, diria Bergala, não devem ser costurados pelo espectador – articulados com ele, com sua posição fora da tela. O espectador nunca tem a impressão de que a coisa toda esteja direcionada para ele, mas que funciona através dele.

“(...) O espectador
está em alguma parte
desse vazio, desse nada que
parece olhar os atores, um
pouco abaixo da linha de fuga
dos olhares; é um espectador
flutuante, ligeiramente descentrado,
nunca absorvido pela ficção,
mantido de certa forma
na periferia” (6)
A identificação com o cinema de Ozu é ainda mais complicada pelo fato de que o cineasta não se afirma como Autor frente ao espectador, permitindo que este se agarre a elementos do “eu” do cineasta que definam “o que ele escolheu para mostrar”. É apenas um estar-aí das coisas e corpos. A enunciação (a técnica que precede a ação, a maneira de olhar que precede o que se vê) não tem origem. Essa pura anterioridade do quadro, em Ozu, não inaugura o sentido. Em função disso, Bergala ressalta a propósito de Ozu que “planos vazios” (que pontuam a passagem de uma seqüência a outra) constituem uma expressão totalmente enganosa (7). Na verdade, Ozu vivia preenchendo os espaços vazios com pequenos objetos nos cantos do plano. “Não colocar nada e deixar o espaço vazio era insuportável para sua composição”. O espaço vazio que de fato existe nesses planos não é a imagem, mas os planos de enunciação – sua anterioridade. A ausência de personagens, associada à presença forte da câmera, do quadro, do “isto aqui”, é o que causa a forte sensação dos “planos vazios”. Como os tempos mortos dos filmes do cineasta italiano Michelangelo Antonioni?
Ozu e o Vazio Pleno
Existe uma estratégia de “desenquadramento” na obra de Ozu. Gilles Deleuze resgatou uma hipótese de Pascal Bonitzer em relação ao quadro (e/ou plano cinematográfico) na modernidade para qualificar os planos vazios do cineasta japonês. “Desenquadrar” não significa necessariamente apenas deslocar objetos e corpos para a lateral do quadro, mas também simplesmente “enquadrar o vazio”. Neste sentido, Ozu seria a vanguarda deste cinema moderno, que inclui, por outras formas de desenquadramento (ou, talvez mais especificamente, “descentramento”), Robert Bresson e Carl Theodor Dreyer (9).

Entretanto, Yoshida revelou que nesta cena Ozu utilizou sim elementos do mesmo cinema-engodo (cinema clássico) que ele sempre detestou. A inserção da imagem do vaso entre as tomadas do rosto da filha foi, na conclusão de Yoshida, um momento em que Ozu quebrou as regras do próprio jogo (12). Mas Deleuze percebe que de fato a proposta de Ozu era de um cinema que não se preocupava em estender uma linha entre momentos decisivos (ele evitava o estabelecimento de uma linha narrativa), o que o distanciava do cinema dos japoneses Kenji Mizoguchi e Akira Kurosawa (13). Deleuze admite que entre um espaço ou paisagem vazios e uma natureza-morta existe certa similaridade, mas os dois não são a mesma coisa. Uma natureza-morta não se confunde com uma paisagem. Um espaço vazio vale pela ausência de conteúdo possível, enquanto a natureza-morta se define pela presença e composição de objetos que se envolvem em si mesmos. A distinção entre os planos vazios de Ozu e a natureza-morta é, respectivamente, o mesmo que entre o vazio e o pleno. (imagens abaixo, Os Irmãos da Família Toda, 1941; Pai e Filha)


Leia também:
As Deusas de François Truffaut
Yasuzo Masumura e os Olhos nos Dedos
Yasujiro Ozu e Seu JapãoYasujiro Ozu e Suas Ironias
Antonioni e o Vazio Pleno
Antonioni e as Cores do Deserto Vermelho (I), (II), (final)
Notas:
1. BERGALA, Alain. O Homem que se Levanta (Tradução Bernardo Carvalho) In PARENTE, André; NAGIB, Lúcia (orgs). Ozu. O Extraordinário Cineasta do Cotidiano. São Paulo: Marco Zero, 1990. P. 97.
2. Idem, p. 97.
3. YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução do Centro de Estudos Japoneses da universidade de São Paulo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. Pp. 124-6.
4. HASUMI, Shiguéhiko. Yasujirô Ozu. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1998. Pp. 151-5.
5. BERGALA, Alain, Op. Cit., p. 101.
6. Idem, p. 105.
7. Ibidem, p. 106.
8. DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A Imagem-Tempo. Tradução Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990. P. 27. Também se pode encontrar uma parte das observações de Deleuze a respeito da obra de Ozu em PARENTE, André; NAGIB, Lúcia (orgs). Ozu. O Extraordinário Cineasta do Cotidiano. São Paulo: Marco Zero, 1990. Pp. 57-62.
9. DELEUZE, Gilles. Cinema 1 - A Imagem-Movimento. Tradução Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. P. 26.
10. BONITZER, Pascal. Peinture et Cinema. Décadrages. Paris: Cahiers du Cinéma/Éditions de l’Étoile, 1995. Pp. 29-30 e 63.
11. YOSHIDA, Kiju. Op. Cit., p. 155.
12. Idem.
13. DELEUZE, Gilles, 1990. Op. Cit., pp. 24 e 26.
14. Idem, pp. 27-8.
15. Ibidem, p. 28.
1. BERGALA, Alain. O Homem que se Levanta (Tradução Bernardo Carvalho) In PARENTE, André; NAGIB, Lúcia (orgs). Ozu. O Extraordinário Cineasta do Cotidiano. São Paulo: Marco Zero, 1990. P. 97.
2. Idem, p. 97.
3. YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução do Centro de Estudos Japoneses da universidade de São Paulo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. Pp. 124-6.
4. HASUMI, Shiguéhiko. Yasujirô Ozu. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1998. Pp. 151-5.
5. BERGALA, Alain, Op. Cit., p. 101.
6. Idem, p. 105.
7. Ibidem, p. 106.
8. DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A Imagem-Tempo. Tradução Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990. P. 27. Também se pode encontrar uma parte das observações de Deleuze a respeito da obra de Ozu em PARENTE, André; NAGIB, Lúcia (orgs). Ozu. O Extraordinário Cineasta do Cotidiano. São Paulo: Marco Zero, 1990. Pp. 57-62.
9. DELEUZE, Gilles. Cinema 1 - A Imagem-Movimento. Tradução Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. P. 26.
10. BONITZER, Pascal. Peinture et Cinema. Décadrages. Paris: Cahiers du Cinéma/Éditions de l’Étoile, 1995. Pp. 29-30 e 63.
11. YOSHIDA, Kiju. Op. Cit., p. 155.
12. Idem.
13. DELEUZE, Gilles, 1990. Op. Cit., pp. 24 e 26.
14. Idem, pp. 27-8.
15. Ibidem, p. 28.