A Cega Obsessão da Arte do Toque
Michio é um escultor cego de nascença, obcecado pelas formas femininas ele seqüestra uma jovem modelo. Depois de analisar com seus dedos uma escultura que representava o corpo dela, Michio decide fazer ele mesmo uma escultura da mulher que considera possuir a forma perfeita. Ele se aproxima de Aki, a bela modelo, através de um ardil – finge-se de massagista e seqüestra a mulher. Com a conivência e auxílio da mãe, Michio mantém Aki em seu ateliê. O estúdio é uma espécie de fortaleza disfarçada de casebre. Aki se apavora com a bizarria do local, nas paredes estão centenas de esculturas de partes do corpo humano: olhos, bocas, narizes, braços, pernas, vaginas e, no meio da grande sala, dois corpos gigantes de mulher. Michio diz que os esculpiu de memória, lembrando-se das formas de suas clientes quando ele trabalhava de massagista. O escultor diz que deseja apenas fazer uma escultura do corpo da modelo, mas que a seqüestrou por acreditar que ela não aceitaria posar para ele. Michio fala de uma nova forma de arte, de e para cegos: uma arte do toque. (todas as imagens são de Cega Obsessão)
Após várias tentativas de fuga, Aki acaba provocando o ciúme da mãe de Michio ao fingir estar apaixonada por ele. A velha senhora tenta libertar Aki para se livrar da competição. Segue-se uma briga onde fica clara a vontade da mãe em monopolizar a atenção do filho. No final, ao tentar impedir que enforque Aki, Michio acaba matando a mãe. Enfurecido, Michio avança sobre Aki e tira a virgindade dela. Fazem sexo muitas vezes mais, enquanto ele termina a escultura. Com o tempo, Aki começa a se apaixonar por Michio. Enterram a mãe dele no chão do estúdio e se matem isolados. Aki também começou a ficar cega como Michio, passando a desenvolver a mesma sensibilidade do toque como ele. Os dois mergulham numa espécie de frenesi físico sado-masoquista em busca de sensações. Até que chegam ao ponto de ferir um ao outro e beber o sangue. É quando Aki pede a Michio que arranque os braços e pernas dela, para que possa experimentar mais sensações de dor, êxtase e agonia. Enquanto ele corta a carne dela, os braços e pernas da escultura que ele fez de sua musa desprendem-se e caem no chão. A seguir, Michio comete suicídio.
Aki é a Personagem Principal
Em Cega Obsessão (Môjû, 1969), o cineasta japonês Yasuzo Masumura (1924-1986) adaptou o livro homônimo do escritor também japonês Rampo Endogawa (1894-1965). Um dos expoentes da Nouvelle Vague japonesa, a carreira de Masumura tem início em 1957 após retornar da Itália, onde estudou entre 1952-5 com a nata do cinema italiano no Centro Experimental de Cinematografia de Roma – antes de dirigir ainda passou um período na assistência de direção para Kenji Mizoguchi (1898-1956) e Kon Ichikawa (1915-2008). Masumura integrou uma geração que resolveu contestar certos valores estabelecidos da cultura japonesa que se faziam sentir também no cinema. Ele foi muito criticado por dar mais importância a descrição de personagens, dizia-se que isso acabava tornando seus filmes áridos e frios. Por sua vez, Masumura respondeu afirmando que de fato rejeitava a tendência do cinema japonês em colocar os sentimentos muito fortemente condicionados pelo ambiente social.
Yasuzo Masumura
estava entre os cineastas
que procuravam fugir da
estética domesticada
Disse ainda que isso demonstrasse como seus conterrâneos não eram capazes de dar voz a seus próprios e sinceros desejos e emoções. Como resultado, o binômio “verdade” e “atmosfera” servira apenas par dar muito mais corpo ao ambiente do que ao homens que o animavam. Isso significa, conclui Maria Roberta Novielli, a negação do lirismo dos grandes mestres e de uma série de convenções retóricas que o cinema vinha utilizando cada vez mais e o fim da “resignação” como tampão para uma existência vivida pela metade. “Eu odeio o sentimento”, disse Masumura, “e isso é devido ao fato de que no cinema japonês ele é representado de maneira controlada, harmoniosa, resignada, triste, derrotada e fugaz”. Novielli explica que o cineasta também rejeitava as duas tendências cinematográficas então em voga em seu país: a naturalista, animada pela “gente pobre sem esperança”, e aquela baseada em princípios realistas ideológicos que “descreviam idealmente os defeitos da sociedade” (1).
A mulher é um
personagem central
no cinema de Yasuzo
Masumura
Masumura se interessava por personagens de ego forte e desejos incontroláveis. Concentrou-se no universo feminino, pois acreditava que a mulher afirmava sua individualidade com mais liberdade. É o que fica evidente, nos mostra Novielli, nas figuras femininas que são os personagens centrais de alguns de seus melhores filmes, a enfermeira Sakura em Anjo Vermelho (Akai tenshi, 1966), a jovem amante do triangulo erótico em Tudo em Desordem (Manji, 1964), a mulher fatal tatuada em A Tatuagem (Irezumi, 1966). O que explica o papel ativo que Aki passa a ter na busca de seu próprio prazer tátil e da exploração de um mundo (o sexual) proibido às japonesas, sugerindo que a experiência com Michio abriu-lhe as portas da percepção – ao invés da conclusão de que ela passou a agir daquele modo porque enlouqueceu. Na primeira vez que o encontramos, Michio está tateando a estátua de Aki colocada no centro da sala onde estão expostas as fotografias dela tiradas por um famoso fotógrafo.
O conceito de nudez
foi introduzido no Japão pelo Ocidente, mas só se
faria sentir no cinema
japonês a partir do final
da década de 50 (2)
Em silêncio ela observa, e com certa repulsa tenta entender aquele homem. De repente Aki sente a mão dele deslizando por seu corpo enquanto de fato ele não tirou as mãos da estátua. O curioso é que em nenhuma parte do filme se sugere que as fotografias que ela tirou nua e amarrada por correntes, motivo da exposição onde se encontra a estátua, constituíssem uma bizarria (como Aki classifica o trabalho do escultor). Michio vive num universo totalmente tátil, mas desvaloriza todos os outros sentidos, colocando a visão como elemento central do estar no mundo. Nessa luta entre os cinco sentidos humanos, Michio se contrapõe ao filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), para quem, “(...) sua voz me desenha sua boca, seus olhos, sua figura, me faz seu retrato inteiro, exterior e interior, melhor que se estivesse diante de mim” (3). No final, é Aki quem irá mais longe no “drama tátil” de Cega Obsessão, desde que ela admite que começa a se apaixonar por Michio, ele vai aos pontos passando a uma posição secundária no desenrolar da estória.
Masumura foi
um dos primeiros
da nova geração a
questionar velhos
mestres japoneses
do cinema (4)
um dos primeiros
da nova geração a
questionar velhos
mestres japoneses
do cinema (4)
Masumura ocupa um lugar de destaque no cinema japonês, está entre os mestres do cinema erótico de um Japão onde o nu integral nunca foi uma constante e a censura sempre se fez presente – tanto a autocensura dos estúdios cinematográficos quanto a censura exercida pelo Estado (5). Segundo Novielli, Masumura tem de fato o mérito de ter aberto o caminho para o cinema erótico japonês (6). Do mundo da nudez nas telas de cinema estão excluídos nomes famosos do cinema nipônico como Yasujiro Ozu, Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi e Mikio Naruse. Apesar de um cinema erótico japonês florescer nas décadas de 60 e 70 do século passado, a proibição da exposição dos pelos púbicos manteve-se inabalável. Poderíamos dizer que, apesar do elemento erótico presente em Cega Obsessão, o fato de a atriz que interpreta Aki mostrar os seios, mas estar sempre de calcinha seria um reflexo dessa situação. Por outro lado, também é uma tradição japonesa que o verdadeiro erotismo é aquele que deixa aparecer apenas a pele. Nesse sentido, a dependência de Michio em relação ao toque da pele humana estaria perfeitamente de acordo com a libido japonesa.
De acordo com Max Tessier, os mais belos nus do cinema erótico japonês são aqueles onde se sugere mais do que se mostra. Seja como for, filmes como Império dos Sentidos (Ai no korida, 1976), onde o cineasta Nagisa Oshima mostra uma nudez masculina e feminina explícita custou-lhe muitos problemas em sua carreira. Poucos sabem, mas o filme que se viu no Ocidente não foi o mesmo que a censura japonesa permitiu que fosse projetado nos cinemas do país. De acordo com Tessier, foi a impossibilidade de representação da sexualidade nas telas que levou o erotismo japonês no cinema a recorrer a “substitutos incontornáveis” como a violência, a perversidade e o sado-masoquismo. Talvez seja esse o conteúdo da mensagem final de Aki, de quem vemos o corpo morto e apenas ouvimos sua voz dizendo: “O mundo do toque. O mundo dos insetos. As vidas mais simples como as águas-vivas. Aquelas que se aventuram no limite de tais mundos, só podem esperar uma morte escura e úmida as envolvendo”.
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Rostos: Fisiognomonia (I), (II), (III), (IV), (V), (Epílogo)
Masculinidade e Violência
Geografia das Ausências em Yasujiro Ozu
Notas:
1. NOVIELLI, Maria Roberta. História do Cinema Japonês. Tradução Lavínia Porciúncula. Brasília: UNB, 2007. P. 214.
2. TESSIER, Max. Japonais. in BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. P. 210.
3. AUMONT, Jacques. Du Visage au Cinema. Paris: Editions de l’Etoile/Cahiers du Cinema, 1992. P 125.
4. NOVIELLI, Maria Roberta. Op. Cit., p. 213.
5. TESSIER, Max. Op. Cit., p. 210.
6. NOVIELLI, Maria Roberta. Op. Cit., p. 215.
7. TESSIER, Max. Op. Cit., p. 211.
Rostos: Fisiognomonia (I), (II), (III), (IV), (V), (Epílogo)
Masculinidade e Violência
Geografia das Ausências em Yasujiro Ozu
Notas:
1. NOVIELLI, Maria Roberta. História do Cinema Japonês. Tradução Lavínia Porciúncula. Brasília: UNB, 2007. P. 214.
2. TESSIER, Max. Japonais. in BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. P. 210.
3. AUMONT, Jacques. Du Visage au Cinema. Paris: Editions de l’Etoile/Cahiers du Cinema, 1992. P 125.
4. NOVIELLI, Maria Roberta. Op. Cit., p. 213.
5. TESSIER, Max. Op. Cit., p. 210.
6. NOVIELLI, Maria Roberta. Op. Cit., p. 215.
7. TESSIER, Max. Op. Cit., p. 211.