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Roberto Acioli de Oliveira

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14 de fev. de 2010

Yasujiro Ozu e Suas Ironias





O cinema de Ozu é antinarrativo   porque consiste numa tentativa
de  copiar  e  repetir 
a
experiência humana
como ela é



 

O Cotidiano: Entre o Tudo e o Nada

Um pai e sua filha moram sozinhos. Ele está preocupado com ela, pois passou o tempo que no Japão se considera a idade ideal para casar. Durante esse tempo, o país estava em guerra e ela pegou uma pneumonia. A filha está sempre sorridente e idolatra o pai e faz tudo para ele. O pai insiste que ela deve se casar, mas a filha parece totalmente desinteressada nisso. Então o pai finge que pretende se casar, sugerindo que não precisará mais da presença dela. A estratégia dá resultado, ao final assistimos o pai e sua filha vestida de noiva deixando a cena. (imagens acima e ao lado, nas vésperas do casamento dela, pai e filha conversam e ela resolve confessar-lhe um sentimento, mas ele já dormiu - ou assim deseja que a filha e nós pensemos)


No Meio do Caminho Tinha um Vaso 

Em  Pai  e  Filha  o
cinema-eng
odo coexiste
com a ironia de Ozu

Pai e Filha
(Banshun, 1949), filme dirigido pelo cineasta japonês Yasujiro Ozu, é considerado um exemplo clássico de sua obra. Reconhecido pelos dramas familiares que levou a tela, os filmes de Ozu são cheios de pais, mães, filhos, filhas, amigos dos filhos, tias, tios, casas familiares, casamentos e enterros. O choque entre o antigo e o moderno também tem lugar em sua filmografia, esbarram-se o tempo todo.


Entretanto, ao contrário do que possa parecer, Pai e Filha não mostra apenas os acertos de Ozu. Kiju Yoshida explica que o filme está cheio de elementos do que Ozu chamava desdenhosamente de cinema-engodo. Por outro lado, isto não é um demérito. Não que Ozu se utilize dos engodos conscientemente, mas sabia que não é tão simples livra-se das armadilhas. Algumas vezes, o cineasta caiu nelas justamente quando pretendia ironizar o cinema-engodo. Uma destas oportunidades foi na famosa cena do vaso, em Pai e Filha – ela concordou em casar, eles viajaram até Kyoto para comemorar e lá passam uma noite juntos no mesmo quarto; coisa rara entre pessoas do mesmo sexo no cinema de Ozu (1).


Começando pelo recurso à montagem nos moldes da narrativa linear e sem ambigüidades. Não que Ozu fosse interessado em ambigüidades, ele apenas procurava não tornar a narrativa facilmente acessível. Ele queria frustrar aqueles que buscam apreender o enredo rápido demais. Seus filmes, em maior ou menor grau, são fragmentários, uma coleção de cenas sem muita conexão entre si. Era neste sentido específico que o cineasta buscava ambigüidade – certas coisas acontecem e não chegamos a entender por que, já que muita coisa some em elipses. Ozu queria frustrar os que não duvidam do que vêem na tela e acreditam que o cinema tudo narra de modo coerente. Coerência que considerara o engodo maior do cinema (2). Uma estratégia anti-narrativa que, na opinião de Ozu, reproduz o caráter anti-narrativo de nossas próprias vidas.

Um Vaso Vazio e o Tudo ou Nada 


“Alguns olham um
filme  de  Ozu e não
vêem nada, enquanto
outros vêem o mu que, 
embora   possa   ser
traduzido por nada,
é na verdade
, tudo”

Marvin Zeman (3)



Na seqüência do vaso, entre os comentários e olhares da filha para o pai que já estava dormindo (ou talvez assim quisesse fazê-la pensar), subitamente somos assaltados pela imagem de um vaso. Seria um vaso que a filha olhou? Qual seria o significado daquele elemento? Deveria necessariamente haver um significado oculto, não? Ozu detestava fazer isso – criar imagens que carregassem um significado simbólico oculto, algo a ser desvendado. Uma metáfora foi o que os espectadores procuraram. Entretanto, Ozu teria colocado aquele vaso ali por um motivo mais mundano do que estético.


“Quando opera uma grade cultural de interpretação, os olhos não vêem mais. Vamos dar-lhes de volta o direito de ver, e para isso é preciso fixar a tela e passar de uma imagem à outra sem privilegiar nenhuma. Assim nos encontramos no coração mesmo das imagens, que se refletem entre si. Esta experiência é dolorosa. Num filme, o nada não é representado, mas o sujeito olhando que se arrisca a ser nadificado [destruído]. Temos de reconhecer que é à crueldade de Ozu que devemos esse prazer vizinho do sofrimento” (4)


Parte das ironias de Ozu neste filme foi criar uma oscilação entre as representações de pai e filha por um lado, e homem e mulher por outro. De acordo com Kiju Yoshida, os olhares da filha, suas palavras e seu pai deitado junto a ela, teriam deixado no ar a insinuação de incesto. Foi então que Ozu “jogou” aquele vaso no meio daquilo tudo, desviando o pensamento dos espectadores de tal direção. Procedimento este que, por sua vez, era típico do que o cineasta japonês chamava de cinema-engodo. Portanto, definitivamente, aquele vaso tão enigmático nada tem a ver com a estética de Ozu. (imagem ao lado, ao ver a suposta pretendente do pai, a filha muda sua expressão; a estratégia do pai soaria para os espectadores como rejeição entre homem e mulher?)


“Certamente, Ozu se comportava de modo duplamente irônico, ao jogar com os engodos do cinema e ao mesmo tempo violar as regras que sustentavam o universo de sua obra. Ciente do caos do mundo e da realidade e confiante de que a razão do homem é resistir a ele, tentou, embora em vão, encontrar a Ordem. Esse é o sentimento oculto nos filmes que o tornaram peculiar, o que não significa que Ozu deixou-se reduzir a essa Ordem ou às próprias regras que criara” (5)


No dia seguinte à ”noite do vaso”, o pai e seu amigo estão sentados em silêncio em frente a um jardim zen. Se o vaso era obra humana, as pedras do jardim são naturais. E, ao contrário do vaso (que não nos olha), as pedras nos olham. “Defronte às pedras, eles não as viam, mas eram apenas vistos pelos olhares delas”. Ou melhor, o assunto do qual falam (que a filha deveria ter um filho e não uma filha), nada tem a ver com as pedras. Esta cena, Yoshida sugere (6), ainda seria uma tentativa de Ozu para sublimar a hipótese do incesto.

Os Olhares na Noite, Tudo e Nada 


(...) O preço que
as  pessoas  pagam
por não ver e não ter
visto é, precisamente,
o de pensar  e  falar
sobre a imagem”


Shiguéhiko Hasumi (7)




Na opinião de Yoshida, perguntar o que esconde o rosto da filha não faz sentido no universo de Ozu. Os próprios olhares da filha para o pai são transgressões de Ozu em relação a sua própria visão do mundo cinematográfico. Os objetos e paisagens em seus filmes, chaminés, roupas no varal, letreiros, corredores e escadas, tudo isso é ambíguo, não permite a elaboração de um significado claro. Não que Ozu busque a ambigüidade, no sentido de um significado oculto, mas porque ele pretende fugir dos clichês do cinema-engôdo. Os closes do rosto da filha são por demais comprometidos com esse tipo de cinema que ele detestava.


Embora Hasumi tenha sugerido que o diálogo entre filha e pai na manhã do dia seguinte seria suficiente para tirar qualquer suspeita de incesto da mente dos espectadores (8), Yoshida insistiu que Ozu neutralizou a suspeita de incesto através de outra imagem-engodo – o vaso. É como um clichê neutralizado outro. Apenas com o detalhe que o vaso sozinho (alguém até poderia sugerir que simboliza um útero), inserido como plano vazio (tempo morto?), agrega um elemento de profundeza simbólica. Se para olhos ocidentais tal procedimento parece eloqüente e profundo, para Ozu não passa de mais uma evidência de que cinema é engodo.


No cinema de Yasujiro Ozu, as coisas nos olham. Mas o vaso não parece, essa é a opinião de Kuji Yoshida, olhar a filha – nem a nós, os espectadores. Se ele tem como função apenas interromper o close do rosto dela, somos nós que olhamos para o vaso... Vendo nele apenas a beleza de um quadro retratando uma natureza morta. O vaso está em oposição ao travesseiro inflável de Era Uma Vez Em Tóquio (também conhecido por Viagem a Tóquio, Tokyo Monogatari, 1953). O travesseiro é um objeto utilitário, que será guardado e esquecido quando não for mais útil. O vaso é um objeto inútil, mas quando é visto pelos olhos de um apreciador, assume significado de objeto útil, artístico. Assim como o travesseiro, muitas paisagens são representadas em Ozu de modo a converter o útil em inútil.


“(...) Em outras palavras, é o próprio vaso que nos convida a decifrá-lo, desejando que cada espectador encontre nele seu próprio significado. Por conseguinte, apesar de Ozu jamais descuidar do significado ambíguo das imagens, é inevitável reconhecer, nesse caso, que a tomada do vaso constitui uma extrema violação das regras de seu próprio jogo” (9)


O vaso resgata a imagem da filha enquanto ela fala sozinha... “Sabe, pai... eu... estava com muita raiva de você...”- no dvd lançado no Brasil, a frase é um tanto diferente da que transcrevi acima, direto do livro de Yoshida: “Pai... mesmo no seu caso eu achei a idéia detestável”; eles estavam comentando sobre o casamento do amigo do pai. Mas o pai já está dormindo, ou pretende que ela pense assim. A imagem do vaso surge. O sorriso dela desaparece de repente, transformando-se em expressão de abandono. Aquele vaso, Yoshida insiste, é capaz de suspender o pensamento do espectador e o tempo da ação. Embora, no final, Yoshida pareça elogiar a inserção do vaso, o que ele elogia na atitude de Ozu foi a ousadia deste, que, apesar de suas preferências estéticas e sua crítica ao cinema-engodo, é capaz de se deixar patinar entre aquilo que acredita e aquilo que abomina no cinema – convicto de que o caos na raiz do mundo mostra sua cara quando o cineasta, ao supor afastar-se do cinema-engodo, está mergulhando nele.


“O vaso que rouba por alguns instantes a atenção do espectador nada mais é que outra existência a ser observada, e nada significa em si. A efemeridade desse intervalo de vazio [mu] libera nossa imaginação e nos transporta a todo um horizonte de significações. Ao mesmo tempo provoca em nós um estado de incerteza permanente, que nos faz recordar que o desconhecido da vida é o que a torna valiosa. E é isso o que vislumbramos, cheios de prazer, ao fixarmos atentamente nosso olhar na tela que flutua na escuridão do cinema. Na imagem do vaso envolto em luar, Ozu presentificou de modo esplêndido a alegria de ver cinema, e, talvez, por temor ao caos que provocara, jamais externou outra vez uma ironia perigosa como a do quarto em Kyoto” (10)


Leia também: 

Yasujiro Ozu e a Dissolução da Família
Yasujiro Ozu, o Tempo e o Vazio
Isto é Hollywood!Isto é Entretenimento!
Puritanismo e Ficção Científica (I), (II), (final)
O Passado Nazista do Cinema de Entretenimento

Notas:

1. HASUMI, Shiguéhiko. Yasujirô Ozu. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1998. P. 223.
2. YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução do Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. P. 132.
3. ZEMAN, Marvin. A Arte Zen de Yasujiro Ozu, o Poeta do Cinema Japonês (Tradução Liana Martins do Amaral) In Ozu. O Extraordinário Cineasta do Cotidiano. São Paulo: Marco Zero, 1990. P. 126.
4. HASUMI, Shiguéhiko. Op. Cit., p. 228.
5. YOSHIDA, Kiju. Op. Cit., pp. 152-3.
6. Idem, p. 162.
7. HASUMI, Shiguéhiko. Op. Cit., 221.
8. Idem, p.226.
9. YOSHIDA, Kiju. Op. Cit., p. 155.
10. Idem, p.159. 


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