“Acreditar que
todas as imagens cinematográficas
devem ser vistas
não passa de uma preconcepção tola (...)”
Kiju Yoshida (1)
Não Estamos Sós
Em Viagem a Tóquio (também conhecido com os títulos Era Uma Vez em Tóquio e Contos de Tóquio, Tokio Monogatari, 1953), um casal de velhinhos arruma sua bagagem. Eles vão para Tóquio visitar os filhos. Em certo momento, o marido não consegue encontrar o travesseiro inflável. Depois de uma breve troca de palavras com a esposa, ele encontra o que procurava (imagem acima). Nas entrelinhas, encontramos nesta breve cena uma crítica a nossa desatenção em relação a coisas que estão debaixo do nosso nariz. Mas também se trata de uma crítica a nossa presunção de seres humanos.
Nós achamos que são apenas os humanos que olham os objetos, eles também possuem um ponto de vista. Os velhinhos não enxergavam o travesseiro, mas ele os via o tempo todo. Essa “ambigüidade do ver” em relação ao ponto de vista acompanha todo o cinema de Yasujiro Ozu. Além disso, não são poucas as vezes que podemos confessar que, mesmo olhando para o mundo, não enxergamos nada. “São as coisas que nos olham corretamente, fixando em nós seus olhos de objeto (...)” (2). Existe em Ozu também uma mensagem de transcendência: não estamos sozinhos, nossa vida é envolvida por um mundo repleto de olhares de objetos sobre nós.
“(...) [Ozu] acreditava
que não éramos nós que olhávamos como deuses,
mas que era o mundo que
nos contemplava (...)” (3)
Da mesma forma uma cidade também pode estar a nos observar. A Tóquio do filme é como “uma ausência impossível de ser narrada”. Os velhinhos vêem muitas coisas, um varal com roupas ao vento, a chaminé de uma usina de lixo... Vêem muito, mas ao mesmo tempo não vêem nada! Entretanto, a idade os contempla, ela pode vê-los. Se a paisagem de Tóquio é anônima para aqueles dois, eles são perfeitamente percebidos pela cidade. “Tóquio”, enquanto nome de uma gigantesca metrópole, nada significa. Só podemos identificá-la por suas partes (cidade baixa, alta, área industrial, avenidas, etc).
Como uma cidade de ausências, impossível de ser narrada, a única coisa que restou aos velhos foi passear por ela de ônibus de turismo – reduzindo a cidade a um cartão postal em movimento. Observando do alto de um edifício, eles perguntam à viúva de um de seus filhos onde ficam as casas de seus filhos: “...deve ser por ali...”, ou, “...deve ser por essa vizinhança...”. Tóquio estava lá, mas era como uma geografia de ausências, impossível de ser narrada (imagem acima, à direita).
“(...) A silenciosa aproximação
da morte da mãe é narrada naturalmente, através da repetição
de seu esquecimento, revelando
que ela está envolta e guardada
pelo olhar sagrado do além”(4)
de seu esquecimento, revelando
que ela está envolta e guardada
pelo olhar sagrado do além”(4)
Viagem a Tóquio é uma revelação dessa ausência, tanto o travesseiro inflável quanto a gigante metrópole japonesa – e até mesmo, veremos, as fotografias deles - fixam seu olhar de objeto sobre os personagens. Tudo isso nos contempla, com um olhar invisível a nossos olhos. “Assim, vagar por uma Tóquio de invisibilidades assemelha-se bastante, de certa forma, a nossa própria vida, que, ao mesmo tempo que a temos diante dos olhos, transmuta-se em ausência. Em síntese: embora o tempo no qual vivemos, a que chamamos de ‘presente’, esteja certamente diante de nossos olhos, não é absolutamente passível de ser apreendido (...)” (5).
Depois da conversa entre os velhos diante do mar, ela sente uma tontura (imagem acima, à esquerda; acima a velha e a nora no ônibus em Tóquio). Era o prenuncio de sua morte. Na cena final, quando o velho está só, Yoshida vê o olhar dos mortos sobre o ancião. Sozinho numa sala, ele olha para a esquerda. Sua vizinha passa, trocam algumas palavras e ele volta à contemplação. Por trás dele, insiste Yoshida, encontram-se vários olhares mudos. Envolvido por uma solidão infinita, à mercê desse olhar mudo que o observa e anuncia a ausência de seus filhos e sua esposa. Assim se encerra, conclui Yoshida, o “drama dos olhares” em Viagem a Tóquio (7).
“Assim, após vagarmos pelo espaço de reflexão difusa e infinita de toda uma gama de olhares, o que finalmente descobrimos em Era Uma Vez em Tóquio é o olhar que os mortos dirigem ao nosso mundo. Descobrimos também que, neste mundo caótico em que vivemos, a paz e a tranqüilidade estão preservadas a muito custo por meio da observação e da proteção dos olhares dos mortos. Ozu situou, como Iluminação final, esse fenômeno como única Ordem possível para a Humanidade” (8)
As Palavras e os Closes
Na casa da nora, viúva de seu filho que morrera na guerra, a velha mãe olha uma fotografia dele na estante. Mas a fotografia não pode ser vista claramente por nós, não conseguimos perceber a fisionomia dele. De acordo com Kiju Yoshida, as instruções do roteiro do filme indicavam um close da foto – que não foi realizado. Ao contrário, a imagem é traduzida em palavras pela mãe - “...um rosto tão radiante...” – e pelo pai – “Huum... Aqui também ele está com a cabeça torta, não?” As palavras do casal foram muito mais próximas das lembranças dos velhos do que teria sido uma fotografia em close up (imagem acima).
Em Pai e Filha (Banshun, 1949), Ozu já havia experimentado o recurso dramático de mostrar que aquilo que é invisível aos olhos se revela na ausência. O cineasta não mostra a imagem do pretendente da filha, só ouvimos falarem dele. Ozu reconhece a superioridade das palavras, ao mesmo tempo em que deixa explícita sua desconfiança em relação à imagem. Proibidos de ver uma imagem, somos atirados à nossa imaginação pelas palavras que a descreve - o que, ao mesmo tempo, nos leva para muito além das palavras.
“Acreditar que todas as imagens cinematográficas devem ser vistas não passa de uma preconcepção tola. As imagens que podem, ou não, ser vistas por nossos olhos encontram-se na mesma relação de um corpo com frente e verso, cuja diferença é ínfima: as coisas se estendem no vazio [mu] de um intervalo de não visibilidade que supõe a não existência das imagens, que ficam, assim, a flutuar continuamente a nossa volta, e adquirem vida. Nesse sentido, o que se vê e o que não se vê assume para nós peso idêntico. É um privilégio permitido ao cinema escolher entre um deles e tramá-lo em reflexos sobre a tela escura: essa é também a razão pela qual nos fascina que as imagens possam ser e não ser estar e não estar a nossa frente” (9)
Leia também:
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Yasujiro Ozu, o Tempo e o Vazio
Notas:
1. YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução do Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. P. 181.
2. Idem, p. 177. O grifo é meu.
3. Ibidem, p. 200.
4. Ibidem, p.210.
5. Ibidem, p. 182.
6. Ibidem, p. 222.
7. Ibidem, p. 230-1.
8. Ibidem, p. 233.
9. Ibidem, p. 181.