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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

31 de ago. de 2008

Marketing e Ética? (final)


“Um sistema democrático de educação (…) é um
dos meios mais seguros de criar e ampliar enormemente
os mercados para bens de todos os tipos e especialmente aqueles bens em que a moda
tem importância.

ex-publicitário James Rorty
Our Master’s Voice, 1934



Culture Jamming

Em seu livro, Sem Logo. A Tirania das Marcas em um Planeta Vendido, Naomi Klein nos fala de uma prática crescente nos Estados Unidos, Canadá e Europa, mas certamente está longe (bem longe) de ocorrer aqui no Brasil.

Culture Jamming é o nome que se dá à prática de parodiar peças publicitárias e utilizar os outdoors adulterando e alterando suas mensagens de forma drástica. Considerado um dos maiores expoentes nessa prática, o americano Rodriguez de Gerada prefere a expressão “arte do cidadão”, e não “arte de guerrilha”. Ao contrário dos publicitários, afirma Rodriguez, esse trabalho implica uma discussão quanto às políticas de espaço público na comunidade em que for colocado. (todas as imagens deste artigo são exemplos de jamming)

Os adbursters (ou subverting, subversão da publicidade, como são chamados em Londres) acreditam que o público tem o direito de responder às imagens que nunca pediram para ver. O termo culture jamming foi cunhado em 1984 pela banda americana de audiocolagem Negativeland. Mas a questão vai muito mais longe, “tentar apontar as raízes da culture jamming é quase impossível, em grande parte porque a prática é em si mesma uma mistura de grafite, arte moderna, filosofia punk faça-você-mesmo e molecagem antiqüíssima” (1).

Robin-hoodismo semiótico, é disso que parece se tratar aqui, sugere Naomi. Seus militantes não acreditam mais que o espaço livre de propaganda pode ser conseguido pacificamente. “A culture jamming rejeita frontalmente a idéia de que o marketing – porque compra sua entrada em nossos espaços públicos – deve ser aceito passivamente como um fluxo de informação unilateral” (2).

Radicalizar a verdade na publicidade, produzir contra mensagens que interferem com a comunicação do anunciante para revelar a verdade mais profunda oculta nos eufemismos publicitários. Seus trabalhos vão de paródias de propagandas à interseções no outdoor original. (imagem acima, intervenção em outdoor da marca de equipamento eletrônico Sony que diz: não há nada real na televisão)

(...)A única ideologia que une o espectro de culture jamming é
a crença de que a livre expressão

não tem sentido se a cacofonia comercial aumentou ao ponto de ninguém mais lhe ouvir (...)

Naomi Klein (3)


Pensemos aqui na questão central deste livro. Lembrem-se da patética superexposição do nu feminino na propaganda, nos filmes, nas novelas… Não se trata de menosprezar a nudez. Também não se trata de pura e nefasta tentativa de diminuir as mulheres que acreditam numa busca da beleza ideal. Entretanto, temos que admitir que fomos tão intoxicados com a avalanche da mesma representação do mesmo ideal de beleza, que estamos nos tornando insensíveis ao fato de que se tratam de representações e não da realidade viva dos corpos. Na crença de que este ideal é um produto à venda no mercado, nem cogitamos mais na hipótese de que beleza talvez seja um estado de espírito. Estamos narcotizados com esta “cacofonia comercial” que diz que a beleza pode ser comprada!

A reação a essa cacofonia comercial levou a culture jamming a se espalhar em redes de organizações coletivistas de mídia. Descentralizadas e anárquicas, combinam a subversão da publicidade com a publicação de zines, rádios piratas, vídeos ativistas, desenvolvimentos na internet (o que inclui hackers ou crackers invadindo sites de grandes corporações) e militância comunitária (4). Vejamos um exemplo. Trata-se da questão do cigarro, mas imaginem quanto resta a ser feito em relação ao machismo presente na propaganda que utiliza o nu feminino? (imagem ao lado, o tenista norte-americano Tiger Woods, patrocionado pela marca Nike, tem sua boca deformada para se assemelhar ao logotipo e sugerir que ele não pode ter opinião própria; na imagem acima, ilustração de uma opinião mais radical a respeito da influência da Nike no cenário esportivo)

“Uma culture jam bem divulgada surgiu no outono americano de 1997 quando o lobby anti-tabaco de Nova York comprou centenas de placas publicitárias de táxis para apregoar as marcas de cigarro ‘Lodo da Virgínia’ (Virginia Slime) e ‘País do Câncer’. Em toda Manhattan, quando os táxis amarelos ficavam presos nos engarrafamentos, as propagandas jammed se acotovelavam com as das empresas de cigarros”. (5)

Agora os correligionários dessa prática dividem-se entre aqueles que dão boas vindas aos avanços tecnológicos em informática (que permitem uma interferência sem mudança do padrão de cores utilizado pelos publicitários que criaram o original, fazendo com que pareça ter sido feita por estes) e os apreciadores das tecnologias já existentes. No primeiro grupo, encontramos gente como Rodriguez de Gerada. No segundo, temos um exemplo que vem do Canadá e deveria interessar às mulheres, por atacar a questão da indústria da moda.

“O artista performático de Toronto Jubal Brown espalhou o vírus visual na maior blitz de adulteração de outdoors do Canadá com nada mais que um marcador. Ele ensinou aos amigos como distorcer as já encovadas faces de modelos de moda usando um marcador para escurecer seus olhos e desenhar um zíper em suas bocas – pronto! Caveira instantânea. Para as mulheres jammers em particular, o ‘encaveiramento’ se ajusta muito bem com a teoria da ‘verdade na publicidade’: se a emancipação é o ideal de beleza, porque não ir até o fim com o zumbi chique – dar aos publicitários algumas modelos do além-túmulo? Para Brown, mais niilista que feminista, o encaveiramento era simplesmente um detournement para acentuar a pobreza cultural da vida patrocinada. (‘Compre, compre, compre! Morra, morra, morra! ‘, diz a declaração de Brown exposta em uma galeria de Toronto). No 1º de abril de 1997, dezenas de pessoas partiram em missões de encaveiramento, atacando centenas de outdooors nas ruas movimentadas de Toronto. Seu trabalho foi impresso em Adburters [o autodenominado boletim da cultura jamming; editado pela Media Foudation de Vancouver, entre outras coisas veicula anticomerciais em televisão acusando a indústria de beleza de causar distúrbios alimentares], ajudando a espalhar o encaveiramento a cidades por toda a América do Norte”. (6)

Resta a todos nós a esperança da ética – conceito empobrecido e desgastado nos dias atuais. A questão é ter a coragem de NÃO mentir. Mentir, isso sim, é apostar na alienação – o que é uma pena, pois o marketing deveria apostar em seus produtos. (imagem do lado esquerdo, adulteração de um outdoor de produto da rede de lanchonetes McDonalds pergunta porque alguém pode se tornar uma pessoa obesa)


O marketing é realmente uma peça importante na engrenagem da interação social e econômica, mas o consumidor também! O bom marketing… nunca deveria esquecer-se disso.

Notas:

1. KLEIN, Naomi. Sem Logo. A tirania das marcas em um planeta vendido. Tradução Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Record, 2002. P. 310.
2. Idem, p. 309.
3. Ibidem, p. 312.
4. Ibidem.
5. Ibidem, p. 313. Virgínia é um dos estados americanos.
6. Ibidem, p. 314.

Marketing e Ética? (I)


“Uma escola que não ensina como assistir
à televisão é uma escola que não educa”

Joan Ferrés

Televisão e Educação



Tentando Ser Otimista

Na sociedade capitalista contemporânea, temos a tomada de consciência a respeito de um fator do sistema de produção que até meados do século passado era considerado secundário: a questão das estratégias de divulgação dos produtos. Após a Segunda Guerra Mundial houve uma mudança radical nesta área. Estamos falando de Marketing.

Basta olharmos em nossa volta. Outdoors, panfletos, anúncios em jornal, revistas e na televisão, carros nas ruas espalhando suas mensagens em auto-falantes. Os carros de Fórmula I e seus pilotos parecem outdoors ambulantes – e os próprios autódromos. Quem não se lembra do carro de Emerson Fittipaldi? Ele não era preto, era da cor da marca de cigarros que patrocinava nosso campeão.

Caso particular seriam as peças de vestuário. O Jeans, em função do sucesso de vendas, tornou-se tão conhecido que não precisa mais ostentar o nome do produto na cintura – agora são as etiquetas que procuram ser vistas nos jeans.

Na sociedade capitalista, quem não anuncia não vende. A propaganda torna-se um instrumento tão poderoso quanto as linhas de produção. O logotipo da Wolkswagen bastava ao fusca – ele não precisa ostentar o próprio nome. Na verdade, o fusca é outro caso como o do jeans, o nome do produto suplantou o logotipo da fábrica – então o fusca é que passou a fazer propaganda da Wolkswagen, quando antes era o oposto. No mundo automobilístico os exemplos são inúmeros. Quem não conhece os Mercedes da Mercedes Benz, os Rolls Royce da Rolls Royce, os BMW da BMW?


Outro exemplo perfeito de marketing utilizando especificamente logotipos são os selos postais ingleses. Desde sempre, este país nunca colocou seu nome nos selos. Todo selo inglês pode ser identificado pelo fato de ostentar a efígie de um de seus reis ou rainhas.

O marketing procura, através das pesquisas de mercado, de políticas de produção, distribuição e divulgação, atingir o máximo de rentabilidade para seu produto. Acabou tomando conta da vida cotidiana quando ampliou seus horizontes para abranger aquelas áreas que não visam lucros (instituições, privadas ou não, como igrejas, partidos políticos e as forças armadas).

A diferença é que adotar uma estratégia de marketing é ter um objetivo mercadológico. Trata-se de um procedimento intencional, sistemático e com expectativa de resultados previsíveis. No marketing, tudo gira em torno da busca de equilíbrio na relação entre a demanda do mercado e o produto oferecido: opera na busca de nichos onde a demanda não está sendo satisfeita, e sua satisfação com o mínimo de gastos possível.


É sempre muito conveniente
que todos aqueles que servem
ao capital de uma maneira tão despudorada sejam chamados
de "criativos" e comemorados




Para tanto o mercado, via campanhas publicitárias, propõe uma união ética e estética entre o produto e o consumidor. Os críticos do marketing o têm como instrumento de alienação. Sugerem que, com suas propagandas, não busca nichos, ele os produz! E, ao produzi-los, transfere as pessoas (o público alvo, o consumidor) para fora da realidade – um mundo de ficção onde tudo se resolve na compra do produto… Mas o consumidor é tão passivo? Se o anunciante tomar o consumidor mais como um parceiro numa transação do que como uma vítima dela, o marketing pode tornar-se ainda mais presente nas vidas das pessoas (que não são apenas público alvo ou consumidores), sem carregar o estigma de instrumento de alienação.


De fato, em nossa sociedade, quem não anuncia não vende! Mas isso não quer dizer que vale tudo. Marketing é uma coisa, mentira é outra.

Tentando ser otimista, o projeto de marketing que continuar tomando o consumidor como “aquilo” que está aí para ser manipulado está fadado ao fracasso. Pode até triunfar em termos de lucro financeiro, mas fracassará em termos de valorização do ser humano. Fracassando aí, contribuirá para tornar a sociedade menos inteligente, menos interessante, menos produtiva – a mesma sociedade da qual ele depende para sobreviver a longo prazo. Eu diria que é o famoso “tiro no pé”!

O que assistimos com o marketing é a introdução no capitalismo da relação entre o produto e sua imagem. É uma relação mágica que se estabelece entre o consumidor e o produto. Aqueles críticos de que falei a pouco propõem que, pelo bombardeio da mídia, a tendência é de substituição do mundo real pelo mundo ficcional da propaganda e que isto seria alienante. É neste ponto que esses críticos se encontram com os capitalistas selvagens que não sabem utilizar o marketing. Para ambos o consumidor é um ser boçal e passivo, pronto a agir de acordo com qualquer coisa que leia ou veja numa propaganda.

Não há como negar que o marketing é formador de opinião. Entretanto, saber se o consumidor muda seu modo de viver em função de uma propaganda qualquer e por isso ela é alienante ou se ele mudou porque ia mesmo mudar, além de ser uma discussão infrutífera sugere uma posição conservadora em relação às teorias de mudança cultural… Mas qual seria a saída, como abandonar esse comportamento de rebanho em relação à propaganda? Como deixar de ser usado pela propaganda de empresas que investem mais nisso do que em seus próprios produtos? Como nos convencemos que a beleza depende de algo (um produto) que está fora de si e, portanto, tudo depende de poder aquisitivo?

Essa tirania do mercado parece dominar nossas vidas tão profundamente que não nos damos mais conta dela. Num ponto pelo menos Jean Baudrillard tem razão, os “fluxos simbólicos” dos quais dependemos para dar sentido ao mundo e a nós mesmos estão cada vez mais longe de uma real satisfação de nossos desejos íntimos. Até porque, confundimos cada vez mais nossos desejos com os interesses do mercado. As propagandas parecem já estar em nossas mentes mesmo que não as vejamos...

Sabemos, portanto, como resolver isso, temos que mergulhar em nós mesmos. Ainda assim, resta uma questão. Devemos permitir que nossas mentes continuamente sejam assaltadas pela propaganda? Será que basta não olhar mais os anúncios? Quantas vezes você mudou de canal e as mensagens eram as mesmas (tanto dos anúncios quanto das programações)? Será que apenas pedindo às agências de propaganda que parem de dizer mentiras sobre o mundo e o corpo elas vão nos obedecer? Será que os publicitários vão abandonar seus empregos (que eles acham muito criativos) só porque o público resolveu questionar a necessidade da existência deles? Se ninguém vai nos dar nossas vidas e mentes de volta pela própria vontade, como romper nossa passividade e voltar a ter vontade própria?

A sociedade está tão comprometida com o mercado que qualquer proposta ou tentativa de questionar o discurso publicitário é vista como guerrilha contra o capital. E o capital não suporta que lhe digam o que fazer.

18 de ago. de 2008

Imagem Corporal e Satisfação





“Apenas pessoas superficiais 
 não     julgam     pela     aparência. 
O verdadeiro mistério do mundo
é o visível,  não  o  invisível"

Oscar Wilde (1854–1900)



Imagem corporal, aspecto da satisfação existencial que na cultura contemporânea ocidental está sendo afetado negativamente: não mais se vê o corpo como o exterior de um interior – o fora de um dentro, uma dobra. Atualmente, o corpo é cada vez mais só o exterior do exterior – o fora do fora. Onde exatamente foi parar a satisfação existencial com nosso corpo? O corpo, considerado como objeto exterior, poderia mesmo nos auxiliar quando tentamos compreender o que é ser feliz?

Mary Del Priori conta que, na época dos descobrimentos, nudez era sinal de pobreza. Daí considerar os índios inferiores. Na Europa, erótico era esconder o corpo. A superexposição do corpo no Brasil contemporâneo representa uma classe social e não a mulher: loira, corpo de academia. Esta mulher é minoria.

Corpo Monstruoso

No cinema norte-americano o nu feminino se instaura em 1933. Hedy Lamarr aparece nua em Êxtase (direção Gustav Machatý), deixando para trás o anonimato (acima, à esquerda). Nascem as ligas da decência e centrais católicas. O nu especificamente pornográfico já havia surgido no cinema em 1910 (1). O “problema” do cinema é a possibilidade do close-up. No teatro se pode desviar o olhar, já o enquadramento cinematográfico é incontornável. Entretanto, a possibilidade de corrigir uma imagem resolve os medos que havia no teatro, onde um vento ou outro acidente pode revelar as partes íntimas de um ator ou atriz. Temos o depoimento de um jornalista em 1896, a propósito de um beijo no filme A Viúva Jones:

“Em tamanho natural, é já animalesco, mas não é nada comparado com o efeito produzido por este ato aumentado para proporções gargantuescas e repetido três vezes seguidas. É absolutamente nojento. Fatos destes apelam à intervenção da polícia” (2).

Em 1912 uma lei regulamentava a duração do beijo na tela de cinema. Nos Estados Unidos, após a primeira guerra mundial, o umbigo era o mais indecente. Até 1965 o problema era mostrar os pêlos do corpo – o próprio Tarzan só aconteceu depois de depilar o torso. De fato, o cinema, que finalmente podia mostrar o real de forma realista (quando desejasse), foi impedido de fazê-lo (3). No cinema brasileiro, Norma Bengell no filme Os Cafajestes (1962, direção de Ruy Guerra) marca o ponto de partida do nu aqui por nossas telas, corpo acompanhado pelo riso sádico do personagem de Daniel Filho, que, aliás, filmava a cena.

No cinema de ficção científica norte-americano, a imagem da mulher tem dificuldade em se desvencilhar de preconceitos. Em A Invasão das Garotas Abelha (Invasion of the Bee Girls, 1973), de Dennis Sanders, mulheres estéreis por conta de experiências científicas matam homens a golpes de orgasmo (acima, à direita). Erotismo é uma raridade na ficção científica. Uma das poucas vezes em que isso ocorreu foi com os originais do livro, Os Amantes (1951), de Philip José Farmer. A história descreve relações sexuais entre um homem e um inseto extraterrestre capaz de trejeitos femininos sedutores. Um editor recusou os originais, classificando-os de nojentos (4).

Também encontramos a misoginia no gigantismo: mulheres, aranhas gigantes e extraterrestres concorrem quanto a maior monstruosidade. Vale lembrar O Ataque da Mulher de Dez Metros (Attack of the 50-foot Woman, 1957), de Natan Hertz (ao lado). Uma esposa traída encontra um extraterrestre verde gigante que passava por aqui, é transformada num enorme monstro vingador que estripa o marido infiel com as próprias mãos. Barbara Creed mostra como, a partir do universo dos filmes de ficção científica norte-americanos, verifica-se a satanização do feminino (5).

Corpo Feliz e Próteses

Quem sabe o biquíni e o implante de silicone sejam a mesma coisa? Uma mulher, adepta do nudismo, faz uma cirurgia para implante de silicone nos seios e nádegas. Ainda podemos dizer que ela está nua, já que partes do seu corpo estão cobertas? O biquíni seria mais erótico que a pele? Uma prótese de pele é mais erótica que a pele real? Nudez é não estar vestindo próteses ou roupas? Roupas são próteses? Qual é a diferença entre uniforme e fantasia? Qual é a diferença entre uniforme e máscara? Cobrir o corpo é criar uma imagem ou representação ordenada da natureza, tomando as roupas como complementação do organismo? Até que ponto o que vestimos afirma ou nega o que acreditamos ser por dentro?

E quando o que vestimos não é mais nosso próprio corpo? A ex-paquita [para quem não sabe, é o título de “antigas” adolescentes, dançarinas no programa infantil de Xuxa] Monique Alfradique malha até quatro horas em academias de ginástica. Afirma que seus músculos não eram bem definidos e ela foi “atrás de desenhar” seu corpo. Qual seria a recompensa de Monique? Bem, ela ganhou a capa da revista Boa Forma (6). Tudo bem, diriam, pelo menos não é uma revista masculina de mulher pelada!!! Tudo bem talvez, de uma maneira ou de outra, “boa forma” é “corpo malhado”… e não necessariamente um corpo feliz!

Corpos em Exposição, Conquista do Feminismo?

Participar do Big Brother Brasil (Rede Globo) é uma espécie de passaporte para ser convidada a aparecer nua nas revistas masculinas. A disputa parece girar entre as revistas Sexy e Playboy. É curioso como o dinheiro e a fama desinibem algumas pessoas, contanto que se tenha o corpo certo… Manuela Saadeh, segunda colocada no BBB2, que posou nua em setembro de 2002, declarou:

"No primeiro dia eu estava bem envergonhada. O ensaio começou com roupa e fui tirando... até que o Duran [o fotógrafo] falou: 'Vai dançando e levanta a blusa'. Aí eu travei e não conseguia levantar a blusa. Pedi, então, que algumas pessoas saíssem do estúdio. Tive de tomar champanhe, que me deixou mais alegrinha e desinibida". (7)

Thaís Ventura, também do BBB2, se “lançou” na edição de janeiro de 2003. Em seus 19 anos, a revista explorou o fetiche masculino de Lolita, com direito a aparelhos nos dentes e bichinhos de pelúcia. Para quem não conhece, Lolita é uma estória escrita por Vladimir Nabokov. O tema gira em torno de uma relação erótica entre uma menina adolescente e um homem mais velho, bem mais velho. Thaís declarou:

"Foi muito difícil. A gente pensa que é fácil porque muitas mulheres lindas já fizeram. Mas quando é com você é difícil! Eu passei por um processo de insônia, nervosismo à flor da pele". (8)

"Enquanto  isso,  lá  bem  no  início  de  tudo...  'E,  como  Deus  me  permitiu
denominar  todas  as  coisas,  eu  vou  chamar  você  de  vaca,  você  de  burro,
 
 você de toupeira e você de idiota' ". (Millôr Fernades, revista Veja, 11/1982)

A recordista de vendas foi a paulista Sabrina Sato, que participou do BBB3, posando para a revista Playboy. Desta vez, o ensaio fotográfico foi acompanhado por impressões dos outros participantes [masculinos] do jogo que contracenaram com ela. Um deles, Harry, disparou: "Sabrina, uma mulher oriental que desorienta qualquer homem". O Big Brother já serviu de "palco" para uma nudez "alternativa". No paredão que eliminou Harry do BBB3, uma mulher invadiu o estúdio e tirou o vestido diante das câmeras e de um Pedro Bial [o apresentador] atônito. O nome da então anônima era Maria Eliane Lima Araújo, e ela tinha 18 anos.

Algumas outras mulheres, desta vez atrizes renomadas, também não vêem problema em posar nua. Cláudia Raia é bem objetiva, da última vez o problema foi o dinheiro oferecido: “gostaria de ser fotografada nua de uma maneira que nunca apareci antes. Meu corpo está mais bonito do que nunca e não encontraria problemas em casa por ser casada”. E completa, “em ensaio nu a gente se expõe de tal maneira que tenho de estar apaixonada pela mulher que vou representar. Sinceramente, depende mais da revista do que de mim” (9).

Luma de Oliveira concorda com Raia, posar nua não tem problema. Só não concorda com a estratégia, para ela não se trata de representar uma personagem: “no ensaio nu, não vivo um personagem. Sou eu ali, é meu corpo ali. Faço o trabalho com muita naturalidade”. Luma não só não vê problema em posar nua, como acredita que seus filhos achariam muito mais estranho se a vissem numa cena de amor em que ela estivesse apenas seminua. Curiosa é a diferenciação que ela faz em relação a revistas e televisão: acredita que o nu da revista é mais natural que cenas de amor na tevê.

“Em 2000, a atriz Vera Fischer escandalizou ao mostrar as virilhas não depiladas nas páginas da Playboy, aos 48 anos de idade. ‘Há artistas que posam porque querem ser vistas e desejadas. Trata-se de um narcisismo velado e me parece ser o caso da Vera’, diz o especialista em sexualidade Esdras Vasconcellos, da Universidade de São Paulo”. (10)

Hoje em dia, no que diz respeito a jovens artistas, a coisa é diferente. Existe (pelo menos por enquanto) certa resistência a fazer concessões à nudez gratuita, seja para alavancar a carreira, seja pelo dinheiro (11). Mas talvez exista um equívoco aí também, pois algumas acreditam que ensaios fotográficos sensuais na internet permitem que elas ganhem dinheiro sem precisar se expor muito. Como não se expõem? Com a popularização da internet… Sem mencionar que, caso as fotos delas não sejam muito acessadas pelos internautas, certamente não serão mais nem contratadas para fazer outros “ensaios”, nem serão pagas.

The Girl abre portas internacionais, carreira na TV e projeção nacional para vencedoras” (12). A manchete se refere a um concurso de “modelos”, promovido por um provedor de internet, ostenta como elemento que justifica sua importância, o fato de abrir portas para a carreira das participantes. A questão não é uma cruzada contra o erótico e/ou nudez na mídia. O problema é o fato de se viver numa sociedade na qual para entrar no mercado de trabalho e perseguir a oportunidade de um trabalho digno, a “projeção nacional” tem primeiro que vir a nudez dos corpos!

Alice Matkins, artista norte-americana, pinta quadros de mulheres cujo
corpo  está  totalmente  fora  do
padrão de beleza.  Ela procura resgatar o
corpo da mulher como ele de fato é.  À  esquerda, Rose, 87 anos; à direita,
Jonsey,  64  anos;   no  final  do  artigo,  à  esquerda,  Phillis,  68  anos.

Mesmo fora do ambiente artístico, a possibilidade de posar nua é uma espécie de “prêmio” das pessoas que por algum motivo (qualquer motivo) tornam-se visíveis na mídia – e, portanto, tornam-se vendáveis. Exemplo (torpe) disto se refere a certas mulheres que depuseram no Congresso Nacional recentemente em função dos escândalos relacionados ao Partido dos Trabalhadores. A secretária do publicitário e escroque Marcos Valério, que testemunhou contra ele, tirou as fotos na própria sala onde depôs – ou então foi um cenário que reproduzia o lugar onde se pretende fazer Justiça em nome do povo. A esposa (e também a irmã dela) do dono do restaurante do mesmo Congresso que foi o responsável pela queda de Severino Cavalcanti (presidente da Câmara de Deputados) também já foi sondada sobre a possibilidade de tirar fotos para uma revista masculina.

Corpo e Imagem

“Como começamos a cobiçar? Cobiçamos aquilo
que vemos... todos os dias!“

A frase vem do filme O Silêncio dos Inocentes (Silent of the Lambs, 1991). Uma agente do FBI insistentemente pergunta a um famoso ex-psiquiatra e atual canibal sobre o paradeiro de um assassino de mulheres. Procurando mostrar em forma de enigma qual é o objetivo desse assassino, o canibal enuncia esta frase. O assassino não matava por ódio, gostava tanto das mulheres que queria ser uma delas. Para alcançar seu objetivo, raptava algumas, contanto que estivessem meio gordas. No cativeiro, às engordava mais e mais. Então as matava, retirava partes de suas peles e costurava. Pretendia fazer uma roupa.

O assassino de mulheres parecia fixar a identidade delas no elemento mais visível. Para ele, ser mulher não teria nenhuma relação com a busca de uma alma feminina. Travestido com pele humana morta, baseava-se apenas na aparência: Ser mulher passava por parecer mulher. Platão já havia chamado atenção para a inutilidade do mundo sensível (13). (acima, imagem de Shrek, desenho animado norte-americano)

Beleza (ou a nova identidade) pode ser comprada? Num ponto pelo menos Jean Baudrillard tem razão, os fluxos simbólicos dos quais dependemos para dar sentido ao mundo e a nós mesmos estão cada vez mais longe de uma real satisfação dos desejos íntimos. Como uma tentativa de questionar o pessimismo de Baudrillard, lembre-se que no desenho animado Shrek (parte 2) nós temos um final inusitado, praticamente contraditório em relação ao mundo em que vivemos atualmente. Em certo ponto da estória, Shrek tinha tomado uma poção mágica que o transformara num ser “normal” – quer dizer, ele ficou bonito. A princesa, que tinha sido transformada em “anormal” (o que significa que ela ficou feia) e também voltou a ser uma mulher bonita por conta da mesma poção, em certo momento recusa o beijo de Shrek. É que no final da estória Shrek avisa a ela que, caso beijem-se, poderão ficar permanentemente com “aquela forma” – quer dizer, bonitos. Ela então recusa e dá a entender que aquele (o bonitão) não seria o homem com quem ela escolhera se casar! Ou seja, ela está preocupada com o sentimento que a aproximou dele, e não precisa que ele “conserte” seu exterior!

Resta o Corpo, Resta uma Questão… 

Sabemos, portanto, como resolver isso. Temos que mergulhar em nós mesmos. Ainda assim, resta uma questão. Quantas vezes você mudou de canal e as mensagens eram as mesmas? O problema é que a sociedade está comprometida com o mercado. Lembro neste ponto do filme O Show de Truman (1998), quando o personagem principal começa a se questionar sobre a incongruência do sistema.

Temos que admitir estarmos tão intoxicados com a avalanche da representação do mesmo ideal de beleza, que nos tornamos insensíveis ao fato de que se trata de modelos e não da realidade viva dos corpos. Na crença de que o ideal está à venda, não cogitamos mais na hipótese de que beleza talvez seja um estado de espírito. Estamos narcotizados com a hipótese de que a beleza pode ser comprada!

Collete resume com uma frase a querela em torno do nu no teatro francês em 1907: “soltem um seio!”. Pesquisas da época levaram à constatação de nudez no teatro desde a Antiguidade (14). Atualmente, decretou-se o fim da privacidade corporal no mundo ocidental [cristão…]. Esconder o corpo passou a ser muito explorado como aspecto selvagem dos muçulmanos. Opõe-se cobrir e descobrir o corpo, dando sinal negativo ao hábito cultural de cobri-lo. Poucos e poucas se perguntam se a pressão social para desnudar o corpo acaba se tornando tão opressiva quanto cobri-lo completamente. Até que ponto nudez pública significa libertação?

Curioso é que na busca desenfreada de uma beleza exterior desarticulada de outra beleza que é interior, muitas mulheres não percebem a abóbora que se tornaram! Bem, quem sabe o caminho para o interior seja esse, destruir o exterior ao tentar reconstruí-lo. No final a sensação de indefinição permanece e a questão volta: onde e como entra o corpo na busca da resposta à pergunta, ‘o que é ser feliz?’

Notas:

Leia também:

As Deusas de François Truffaut

1. BOLOGNE, Jean-Claude. Tradução Telma Costa. História do Pudor. Rio de Janeiro: Elfos Editora. Pp. 286-7.
2. Idem, p. 285.
3. Ibidem, p.288.
4. SODRÉ, Muniz. A ficção do tempo. Análise da narrativa de Science Fiction. Petrópolis: Vozes, 1973. Pp. 49-50.
5. CREED, Barbara. The monstrous-feminine. Film, feminism, psychoanalysis. London: Routledge, 1993.
6. WURM, Sabrina; DIAS, Leo. Em Busca do Corpo Perfeito In Jornal Extra, coluna Retratos da Vida, 08/07/2005. P. 12.
7. BBB’s saem da casa para as revistas masculinas In TERRA. Seção Gente & TV. 06/05/2004. Disponível em: http://diversao.terra.com.br/gente/noticias/0,,OI3527042-EI13419,00-BBBs+saem+da+casa+para+as+revistas+masculinas.html
Acesso em: 29/10/2013.
8. idem.
9. CARDOSO, Rodrigo. Elas posam porque gostam In Isto É GENTE, 21/01/2002. Disponível em: http://www.terra.com.br/istoegente/129/reportagem/capa_nu_04.htm Acesso em: 18/08/2008.
10. idem.
11. Reportagem de Rodrigo Cardozo. ISTO É, GENTE. 21/01/2002. Edição 129. Disponível em: http://www.terra.com.br/istoegente/129/reportagem/capa_nu_01.htm Acesso em: 18/08/2008.
12. Reportagem de Silvia Marconato. Disponível em: http://www.terra.com.br/thegirl/verao2003/materias/vencedoras_passadas.htm Acesso em:18/08/2008.
13. A fisiognomonia sempre baseou seus estudos na articulação entre a afirmação da necessidade de um mundo sensível e a crença na existência de outro inteligível. A verdade última seria encontrada apenas no inteligível.
14. BOLOUGNE, Jean-Claude. Op. Cit., p. 259.  


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Quadro de Avisos

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