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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

29 de jul. de 2009

O Rosto que Temos e Aquele que Vemos (final)


O Rosto do Meu Corpo



Por paradoxal que possa soar, atualmente estamos todos um pouco como aqueles que, padecendo de prosopagnosia, não conseguem reconhecer rostos. Parece que os rostos não apontam mais para um “eu”, mas para um “isto”. Assim como naquela doença, para quem não existe uma persona por trás dos rostos, para nós a identidade do Outro, nosso reconhecimento dele, nos é interdito. Seja porque o ser sempre foi um mistério, ou porque a sociedade contemporânea construiu um muro em torno de cada um de nós, o “eu” torna-se um “isto” quando a existência se materializa: entretanto, a fragilidade da materialidade do eu surge quando se procura percebê-la. Portanto, talvez mais complexo e problemático do que o encontro do eu com outrem seja o encontro do eu consigo mesmo – especialmente quando procuramos nosso eu no não-eu que é nosso reflexo nos espelhos. (imagem ao lado, Auto-Retrato, Zoran Music, 2000)


Escravos   da   busca   de   sentindo,
não sabemos se isso é bom ou ruim



Como seria um mundo sem espelhos? Como seria um mundo onde não víssemos nossos rostos, mas apenas nossas mãos? Na verdade, esse é exatamente o mundo em que vivemos. Entretanto, curiosamente não percebemos isso, tão naturalizado está o uso do espelho. Em Auto-Retrato sem Espelho (imagem ao lado), Ernst Mach criou um auto-retrato sem rosto, mostrando nossa experiência mais cotidiana. Podemos ver apenas um pouco de nós, e o espelho nos devolve uma imagem invertida (poucos se dão conta disso). Esse eu que reconheço em mim (fora do espelho) é um estranho.

Um intruso em minha imagem, assim como não reconheço minha própria voz numa gravação, deveria estranhar também meu reflexo no espelho, mas isso não acontece. Por quê? No fundo, a imagem que o espelho "me reflete" é tão incapaz de me apresentar minha identidade quanto qualquer outra imagem de mim que o mundo me devolva. A melhor parte de nós está mesmo no espelho (do lado de fora de nós)?

“Um retrato é uma discórdia”
Henry Matisse

Em O Retrato de Dorian Gray (1891), Oscar Wilde chega ao extremo do retrato que vampiriza. Dorian faz um “pacto com sua imagem no espelho”, gostaria de conservar sua juventude e beleza para sempre. Enquanto isso, ganha de presente uma pintura, um retrato seu de corpo inteiro. Enquanto o tempo passa, a figura no retrato vai se transformando num monstro (imagem ao lado), e Dorian continua a exibir sua juventude e beleza. Um retrato vivo que mostra o eu degenerado que aquele homem não conseguia enxergar m si mesmo. O livro trabalha o tema do duplo, esse outro de nós que parece dominar nossas vidas quando se separa de nossa materialidade (nosso corpo físico). (imagem abaixo, Sonho, Roberto Magalhães)

O discurso das essências, supondo que tenhamos uma essência, aqui se encontra também: a imagem monstruosa de Dorian no retrato sugere nossa punição quando tentamos dominar os desígnios de nossa alma em função de vontades egoístas. O texto de Wilde também remete a nosso medo arcaico das imagens e retratos, através dos quais poderíamos agir sobre os outros com um feitiço. “Enfeitiçar”, em francês (envoûter) está ligado ao latim vultus, que em italiano se torna volto, que se opõe a viso, que é o rosto descoberto que se oferece à visão. Volto remete ao invisível, ao secreto no rosto, àquilo que determina poderes ocultos – próximo da máscara. Se um retrato pintado pode ser um vampiro, um espelho também poderia nos vampirizar? Mas ele não é nosso aliado?

De acordo com Jean Clair, encontramos mais vultus (ou volto) do que visus na expressão latina aut vulva aut vultus, onde se descreve a impossibilidade da representação simultânea das partes espiritual (o rosto) e animal (o sexo) do humano nas estátuas pré-históricas e algumas mais recentes - se o rosto aparece, ele exclui a natureza (a vulva). Clair não aprofunda essa observação, mas talvez isso explique a aparição, no universo da pornografia, dessa posição sexual que permite ao homem a visualização da vagina e do rosto da mulher ao mesmo tempo. No auto-retrato de Mach, sugere Clair, o divã onde ele está deitado lembra um pênis. Mach teria mostrado um falo neste auto-retrato sem rosto? Seria uma interrogação a respeito da “natureza” da mulher e ao mesmo tempo sobre o interdito da representação de si? (1)

Foi o filósofo existencialista Jean-Paul Satre quem confessou que a infelicidade é não conseguir ver o próprio rosto. Nosso rosto vem na nossa frente, confidencia para os rostos dos outros as informações sobre nós que ignoramos. Meu eu neste caso, em princípio, está fora de meu corpo assim como minha imagem refletida no espelho. Meu eu está... nos outros. E os outros? Numa frase célebre de Sartre, “o inferno são os outros”. Vivencio meu rosto como um orifício, uma cavidade, um buraco, uma falta através da qual devoro as aparências que o mundo me apresenta. Uma oralidade que grita, urra. Da qual encontramos representações nos rostos pintados por Edvard Munch (O Grito, 1893) (imagem abaixo) e Francis Bacon (Tríptico para Uma Crucificação, 1944) (imagem acima) (2). O primeiro é um é o rosto que não olha, e o outro foi reduzido a uma boca primitiva. Não existe mais o rosto voltado para outrem, no face a face do olhar.

Munch criou um rosto sem traços humanos, já o tríptico de Bacon representa os horrores da Segunda Guerra Mundial. E como lembrou Jean Clair, talvez os campos de concentração nazistas fossem os lugares onde se pôde fazer um homem perder os traços, perder o rosto. Arrancar deles a capacidade de seu rosto como se retira a pele de um coelho, chegando à humilhação total desses seres de rostos esfolados. Seja no espelho, na fotografia ou na pintura, os rostos se tornaram um problema quase insolúvel ou, no mínimo, povoado de labirintos – que são nossos próprios labirintos. Jean Clair conclui:

“(...) O grande debate da arte de nosso tempo não teria sido o debate da figuração e da abstração, teria sido o debate da representação do rosto e de sua impossibilidade. Assim como o século XVIII foi o século de ouro do retrato individual, nesta admirável galeria de rostos agarrados em sua singularidade e sua individualidade, de Lyotard a Houdon, de La Tour a Chardin,(...) nosso século terá sido habitado por sua impotência em retomar a identidade do eu no retrato” (3)

Em sua simultânea e paradoxal falta e multiplicidade de sentido, resta o corpo, e um rosto que, nele, se esconde dele, e talvez ainda mais de si mesmo. Como uma ausência na presença. Algo que existe na e pela sua invisibilidade em relação a seus próprios donos. Que ainda se afirmem donos de si mesmos, seus donos vivem na ausência de seus próprios rostos, ou só os podem encontrar através de um espelho, um reflexo – um vultus? Um viso? Um duplo invertido do rosto que sentem que lhes pertence, mas que somente é parte de um eu na medida em que é invisível para ele e para si mesmo.

Notas:

1. CLAIR, Jean. Autoportrait au Visage Absent. Écrits sur L’art 1981-2007. Paris: Gallimard, 2008. P. 414.
2. Idem, pp.410-1.
3. Ibidem, p. 416. 


28 de jul. de 2009

O Rosto que Temos e Aquele que Vemos (II)



Parece que

seja qual for o
lado do espelho
em que estivermos
o outro lado será
sempre mais
satisfatório



O Outro Lado do Espelho

Considere o rosto da Górgona Medusa, aquele ser da mitologia grega para quem não se podia olhar o rosto sob pena de virarmos pedra. Será “Medusa” outro nome para “espelho”? Poderia ser, caso sejamos cegados pela imagem de nosso corpo devolvida pelo espelho. Seria o mesmo estranhamento da visão do rosto da Medusa? De acordo com Jean-Pierre Vernant, em A Morte nos Olhos, nosso medo de enfrentar uma alteridade radical apresenta-se sob a forma de uma máscara que aliena o homem de seu próprio rosto, tornando-se irreconhecível para si mesmo. Entre as divindades gregas é a Medusa que encarna essa máscara, sua face monstruosa traduz “a extrema alteridade, o temor apavorante do que é absolutamente outro, o indizível, o impensável, o puro caos” (1).

A visão de uma alteridade radical em nossa imagem refletida no espelho, que no fundo traduz um horror: somos nós retidos, mas ao mesmo tempo é outra coisa, um ser espectral, uma imagem, um duplo de nós que deveria ser (apenas) nossa cópia, mas que tomamos cada vez mais como se fôssemos nós ali naquela casca virtual. Estamos nos entregando à nossa negação, entregando para a morte. Já não importa o que fazemos de nossos corpos, pois já nos largamos aos devaneios do mundo da imagem. Mais visível do que nós mesmos, somos nossa imagem, aquela multidão de duplos! Meu não-eu é agora mais visível do que meu eu.

Os gregos antigos falavam da Medusa referindo-se à alteridade, experiências de um Outro radicalmente diferente. Na falta de um sentido, o humano criará algum, qualquer um, mesmo que não faça sentido – “arrumar” o mundo. Mas podemos afirmar que qualquer sentido é melhor que nenhum? Outros dirão que seu reflexo no espelho não destrói, mas, ao contrário, dá sentido a suas vidas. No final, a maior maldição é essa, não perceber que a falta de sentido talvez não seja um problema, mas a solução. O caos que advém daí é o melhor lugar para construir novos sentidos, ao invés de procurar se adequar àqueles que o mundo impõe? Por outro lado, romper com o sentido que justifica a vida dos outros e construir o seu próprio também é escravizar-se à busca de um sentido. É uma constatação que, ao fecharmos com um sentido, limitamos nossa vida em relação a outros sentidos possíveis.

Espelho, espelho meu,
minta para mim
,
acreditarei em você


Seríamos como a lua? Ela não possui brilho próprio, sua face só é visível em função da luz do sol que nela se reflete. Se podemos vê-la, isso só acontece em função do brilho de outro: o sol. Seríamos como o sol? Ele possui luz própria, mas não podemos olhar para ele diretamente (ficaríamos cegos), apenas para as coisas que ele ilumina. Talvez seja esta a maldição do sol/ser, nós só conseguimos nos ver indiretamente, através daquilo que eventualmente se iluminar com nossa presença. (imagem acima, de autoria de Avigdor Arika; ao lado, autoria de Gianguido Bonfanti; abaixo, autoria de Roberto Magalhães)

Até que ponto realmente nos compreendemos através daquilo que vemos de nós fora de nós? Uma viagem de si para si mesmo através de um reflexo fora de nós requer autocontrole, não podemos confundir quem somos com aquilo que é apenas nosso reflexo, mera imagem daquilo que somos. Ou podemos?


Mentir faz parte da
natureza
do espelho



Há quem diga que somos ressentidos com a vida e buscamos dar-lhe qualquer sentido a qualquer preço – “arrumar” a vida. Os que buscam sentido estariam perdidos no ressentimento porque a todo custo procuram justificar suas vidas a partir de um sentido que anteceda a si próprio (Deus, a evolução das espécies, etc). Precisamos estar mais atentos à hipótese de que nossas vidas ou, enfim, a vida, não possua sentido algum. Ela apenas existe! Talvez, só talvez, o universo não tenha significado. Nós inventamos significados, geralmente bons para nós, para sobreviver à constatação do nada. Preencher o nada com algo é uma coisa, outra coisa é tentar substituir esse nada como se sua presença não fosse um fato.

Em sua “ação” de construção de significados, o ser ressentido não estaria realmente “agindo”. No sentido nietzschiano do termo, ao criar significados para preencher o nada, o ressentimento age, mas essa é uma ação doente. De acordo com esse ponto de vista, o ressentido parte de um dualismo dialético imaginário entre um eu e um não-eu que ele criou para caracterizar uma suposta falta de sentido, que se opõe ao sentido que ele acredita que existe. Assim, na incapacidade de viver na constatação de sua insignificância (sua falta de sentido), o ressentido inventa significados. Mas estes significados precisam de algo que se oponha para que seu sentido “faça sentido”. Alguns chamaram de “essências” a esses significados que criaram, mas que julgam que estavam aqui antes deles, justificando sua chegada (2).

Entre o significado e o nada, o rosto fica perdido no meio de uma confusão. Ele é forçado a fazer “sentido”, a se encaixar nos sentidos que a cultura estabelece. Mas, afinal, o que pode um rosto? O que pode um corpo?

A Cara do Meu Retrato


“O pintor sempre
pinta a si mesmo”


Comentário de Picasso para William
Rubin, citando Leonardo Da Vinci




Na opinião de William Rubin, no início do século XX foi Pablo Picasso o pintor que de forma mais eficaz conseguiu alargar as possibilidades e limites do retrato. Até essa época, quando se olhava um “retrato” pintado, havia a pressuposição de um paralelismo visual entre a coisa vista e sua imagem. A razão de ser de um retrato consistia em fazer conhecer a aparência física e a personalidade do retratado. Picasso mudou tudo isso, para ele o retrato deveria ser uma transcrição das reações pessoais do artista em relação ao retratado. Dessa forma, o que antes constituía um documento que se pretendia objetivo torna-se francamente subjetivo (3).




(...)Ele pensa
que um quadro
deve dar
o equivalente
pictural da emoção
suscitada pelo

sujeito”

Comentário de Marius Zayas,
a respeito do estilo de Picasso, 1910






Identidade e semelhança adquirem novos
sentidos nos retratos pintados por Picasso



De acordo com Picasso, o retrato traz uma incerteza em relação à própria noção de identidade. Antes a identidade era fixa, agora está sujeita a mutações. Grande parte dos retratos Picasso pintou de memória, não buscava uma cópia do modelo retratado, mas mostrar como o pintor os “vê”. Picasso não renunciou completamente ao realismo, mas redefiniu sua abrangência. Em alguns casos, trabalhou com o modelo, multiplicando suas poses (Femme Assise (Jaqueline), 27 de novembro de 1960) (imagem acima, à direita). Noutros executa retratos de memória que, segundo Rubin, estão entre seus trabalhos mais realistas (Portrait de Jaqueline, 21 de outubro de 1955) (imagem acima, à esquerda). A partir de 1906, para Picasso a idéia de “semelhança” é outra coisa.

"eu não procuro,
eu encontro"

Pablo Picasso


Tampouco podemos confundir com timidez, afirmou Kirk Varnedoe, alguns auto-retratos que tendem a mostrar apenas parte do rosto de Picasso: Auto-Retrato, de (1901) (imagem ao lado) e Picasso et Casagemas (1900, o pintor está em primeiro plano, com a gola do capote escondendo metade do rosto) (imagem acima, à direita). Numa fotografia tirada entre 1901 e 1902, a imagem do artista quase some, Picasso aparece como uma presença fantasmática (4) (imagem abaixo).

Picasso mostra que, na busca
de uma identidade
, o retrato pode
se afastar muito da se
melhança


Se considerarmos apenas seus auto-retratos “realistas”, não vamos além dos que produziu até os trinta anos, o restante são estudos de seu rosto em desenhos e gravuras de menor importância. Entretanto, se expandirmos o conceito de auto-retrato, encontra-se muitos personagens nos quais Picasso não parou de se projetar: arlequins, mosqueteiros e minotauros. Varnedoe defende a hipótese de que toda a obra dele é autobiográfica.

Esta não seria uma afirmação surpreendente, se admitirmos que cada um de nós é intrinsecamente complexo, constituindo-se a partir da combinação de elementos em conflito, sendo bastante comum a incorporação de aspectos da personalidade alheia (5): nossos parentes, professores, amores, rivais ou até personagens fictícios. As auto-representações polimorfas de Picasso oferecem um inventário de seu mundo.

“O Auto-Retrato
de junho de 1972 foi o último.
Ele projetou nesta máscara as
emoções que não queria guardar
em si mesmo, de forma a poder –
e nós com ele – afrontá-las enquanto representações. Quando Picasso se olhou
no espelho, nesse dia de verão em seus
91 anos, navegava por territórios que
bem poucos dentre nós está preparado,
e onde muito pouca arte foi produzida.
A ponto de partir para uma viagem
da qual nenhum explorador voltou,
ele viu adiante e nos deixou, antes
de fechar a porta, essa última
mensagem cifrada no código da
semelhança física” (6)

Notas:

1. VERNANT, Jean-Pierre. A Morte nos Olhos. Figuração do Outro na Grécia Antiga. Ártemis e Gorgó. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2ª ed., 1991. Pp. 12-3. Citado em MORAES, Eliane Robert. O Corpo Impossível. A Decomposição da Figura Humana, de Lautréamont a Bataille. São Paulo: Editora Iluminuras Ltda, 2002. P. 213n18.
2. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Tradução de António M. Magalhães. Porto, Portugal: Rés Editora Ltda. (sem data). Pp. 172 e 183.
3. RUBIN, William. Réflexions sur Picasso et le Portrait In RUBIN, William (org) Picasso et le Portrait. Paris: Flammarion/Réunion des Musées Nationaux, 1997. P. 13. Catálogo de exposição.
4. VARNEDOE, Kirk. Les Autoportraits de Picasso In RUBIN, William (org). Op. Cit., p. 118.
5. Idem, p. 111.
6. Ibidem, p. 175.

24 de jul. de 2009

O Rosto que Temos e Aquele que Vemos (I)


“A beleza é assimetria
sutil
, não pureza” (1)

Hans-Leo Nathrath
cirurgião plástico

Arrumando o Mundo

Apesar do nome que damos às coisas, dependendo do nosso ponto de vista elas poderiam ter vários outros. Cada nome remete a dimensões diversas de uma mesma realidade. Algo que chamamos de lago poderia chamar-se mar se fossemos insetos. Um simples parque para nós, seria algo parecido com o paraíso para alguns outros minúsculos insetos. Dada a fluidez do real, as palavras nos são indispensáveis, pois o mundo não pára de escorrer entre por entre os dedos. Afinal de contas, precisamos que alguma coisa nos assegure que alguém ou algum objeto existe, mesmo quando não podemos vê-lo ou estamos de costas para ele.

E quando aquilo que vemos não é real, ainda que veja a única forma de comprovar uma existência? A imagem no espelho não somos nós, no entanto ela nos representa fielmente. O espelho, um objeto de vidro, assim como nosso corpo físico, existe, mas aquilo que reflete não passa de uma imagem. Um duplo de nós que frequentemente nos satisfaz (porque acreditamos que reflete a realidade), a ponto de prestarmos mais atenção nessa imagem do que em nós. Seja lá por que motivo for, é fato que nosso eu, nossa subjetividade, nosso eu para nós mesmos, está quase sempre projetado em nossos rostos. Entretanto, só conseguimos olhar para eles com a ajuda do espelho: para olhar em nossos olhos, precisamos de algo fora de nós, mas que só nos pode devolver uma cópia sem substância. (imagem acima, O Grande Paranóico, Salvador Dali, 1936)

Somente as outras pessoas podem nos olhar nos olhos, nós não temos essa capacidade. Nossa experiência de nosso rosto é vaga e ambígua, se não mexemos os músculos do rosto, sentimos um buraco em seu lugar. Mesmo assim, não conseguimos “sentir nosso eu” se não nos fixamos em nossos rostos. Nós tendemos a nos fixar mais nos rostos dos outros do em nosso pensamento sobre nosso rosto. Nós e os outros estamos em seus rostos, quando deveríamos estar em outro lugar. Quando nós mesmos estamos diante do espelho raramente nos encaramos de verdade, olhamos para todo o nosso corpo, menos para nossos rostos – e muito menos ainda para nossos olhos. Encarar os outros é fácil.

Se o espelho nos dá apenas uma cópia, então não estamos olhando para nós mesmos quando nos miramos neles (nem mesmo quando nos encaramos). Onde está nosso eu se não podemos transformá-lo em imagem? Se não podemos nos ver, como é sentir o que somos? Qual é a sensação de si quando não é engendrada por uma imagem? Se acreditarmos que ser é estar no mundo, então nosso corpo, sua carne, teria um papel importante em nossa percepção de nós mesmos. Entretanto, como experimentar nosso eu corporeamente sem cair na tentação de cultivar sua imagem? Experienciar o próprio corpo implica olhar para ele? Então quando nosso corpo será suficiente para nos dar uma imagem fiel daquilo que acreditamos que somos? Na sociedade contemporânea, onde a imagem vale cada vez mais do que o referente que ela está a refletir, talvez tenhamos poucas chances de chegar a nos conhecer.

Com palavras “arrumamos” o real para “entendê-lo”, talvez a imagem possua também alguma função positiva. Contanto que não percamos de vista que estamos “arrumando” o real. Quando vemos uma fotografia de algo em movimento, podemos até encontrar alguma beleza na imagem. Mas não podemos perder de vista que aquela “realidade da imagem” é uma ficção! Na realidade, aquela fotografia corresponde a milionésimos de segundo na vida daquilo que foi fotografado. Quando “arrumamos” o real ou olhamos para uma fotografia de alguma coisa em movimento, devemos saber que aquilo é uma ficção. Uma imagem não respira, somos nós que respiramos. A vida é ao vivo! Isso deveria fazer alguma diferença ou algum... sentido?

Notas:

1. TASCHEN, Angelika (ed). Cirurgia Estética. Köln: Taschen, 2005. P. 196.

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Quadro de Avisos

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