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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

6 de set. de 2009

Desinformação Já



“Uma escola que
não ensina como
assistir à televisão
é uma escola que
não educa”


Joan Ferrés
Televisão e Educação


A
s Coisas e as Imagens das Coisas

Quase sempre, dos milhares de filmes de ação (guerras e tiroteios) vomitados por Hollywood, só chamam a atenção da maioria as belas luzes, um espetáculo para os olhos; além de um suposto heroísmo (na imagem acima, vemos uma cena real de batalha com tropas norte-americanas no Iraque; na imagem ao lado, a imagem não cinematográfica, sem glamour e sem heroísmo da mesma guerra. As duas imagens são de 2003). Lá na terra do Tio Sam (nas emissoras de tv norte-americanas), como cá (nas emissoras de tv brasileiras que cobrem as batalhas entre polícia e bandidos nos morros cariocas), não se mostra as vítimas, não se mostram seus corpos destroçados.

Esse tipo de coisa não dá ibope e, além do mais, pode gerar movimentos da sociedade contra a violência. E mesmo que mostrasse, será que a sociedade brasileira DESEJA saber? Na estratégia de dessensibilização generalizada e no faroeste televisual onde quase já não se distinguem mocinhos de bandidos, tudo é "ação". No comportamento belicista patético que se procura transformar em heroísmo, esconde-se a herança da “sociedade da informação”: desinformar é preciso.

Imagine que você vive num país onde a distância entre tv aberta e tv a cabo é um pouco maior do que se supõe. Especificamente no caso dos noticiários. Imagine que na primeira as notícias sejam rápidas, ralas (talvez porque o interesse seja segurar a audiência para assistir a propaganda, que ocupa mais espaço nos noticiários do que as notícias). Na tv a cabo, os assuntos (ou certos assuntos), são discutidos a exaustão por especialistas. Imagine agora que os públicos das duas são diferentes (ou melhor, pertencem a classes sociais distintas). Sendo a tv a cabo mais cara, naturalmente são as classes baixas que ficam restritas ao “noticiário ralo”. (todas as imagens deste artigo mostram situações reais, não se trata cena cenas de filmes; abaixo, soldado norte-americano cobre Saddam)

Você poderia concluir que, com a generalização do roubo do sinal de tv a cabo naquele país, a informação seria democratizada finalmente! Agora você só tem que descobrir quais são os canais de tv a cabo que a população que rouba o sinal DESEJA assistir. Você poderia ainda concluir que “noticiários profundos” deveriam ser os mesmos (dar a mesma informação) na tv aberta ou no cabo, mas que isso seria naturalmente impossível porque imagens, entrevistas e textos são editados (cortados). O problema não parece ser apenas o fato de que a tv (qualquer uma delas) reconstrói o real ao editar e montar as imagens para que possam caber na programação (entre os intervalos, que contém as propagandas - que é o que importa às emissoras). O problema é que as pessoas parecem não perceber isto que ocorre diante delas. Daí a perplexidade ante as imagens do atentado terrorista em 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center. Parecia um filme! Difícil agora compreender que não eram imagens e sim um acontecimento.

Não se duvida que a tv recrie o real. O que alarma é a falta de censo crítico em relação à programação/recriação do real e/ou a forma como são veiculados. A discussão quanto à possibilidade ou não de censura aos programas apelativos é típica. Põe-se a perder a possibilidade da população responsabilizar-se pela programação a partir da hipótese de que isso constituiria censura aos meios de comunicação. Sim, como não, censuram tudo aquilo que não lhes interessa. Por que só nós não podemos decidir o que queremos?


Como se não fosse ato de
censura quando as emisso
ras
de tv decidem só mostrar
o que quiserem...




Alguns retrucariam que pensar assim
é dar importância demais à televisão, quando ela é apenas um eletrodoméstico. Se ela fosse tão irrelevante, o preço do minuto de propaganda não seria tão exorbitante. Se fosse tão irrelevante, as eleições não seriam decididas em debates no horário nobre e a verba de propaganda de empresas e governo não seria maior que os investimentos em seu público e/ou eleitores.

Estereótipos Onde Não Deveriam Estar

Um dos temas preferidos da mídia quando quer criar um factóide internacional para dar ibope é a re-formatação de guerras no horário nobre. Como no caso de Saddam Hussein, ex-ditador do Iraque. Segundo o então presidente (pai do ex-presidente norte-americano) George Bush, Saddam era o império do mal em pessoa. A mídia se apressou em reproduzir mais um estereótipo do déspota oriental. Naturalmente, e infelizmente, o que ninguém vai dizer é que o Saddam real havia sido uma criação do próprio governo norte-americano. Eles precisavam de alguém para servir de bucha de canhão e fazer uma guerra contra o vizinho do Iraque em 1979.

O vilão de então era o Irã do Aiatolá Kolmeini, que tirou seu país das garras dos norte-americanos e de seu fantoche o Shah Reza Palevi. Das atrocidades patrocinadas pelos norte-americanos, e cometidas por Saddam contra os iranianos ninguém sabe, ninguém viu. (imagem acima, mais um banho de sangue no Iraque)

Aliás, essa arrogância é típica de países que constroem seus impérios sobre as cinzas das liberdades dos povos. No filme Mauá, o Imperador e o Rei (1999), ocorre um diálogo entre o futuro Barão de Mauá (ainda bem jovem) e um negociante inglês bem sucedido. Dizia o britânico que a escravatura tinha que acabar porque não interessava aos ingleses. Afirmou também que o mundo está mudando porque a Grã-Bretanha assim deseja. Deu alguns livros de economia para o jovem Mauá e disparou: “a língua é o inglês”.

Inimigos Construídos

Com Osama bin Laden a história se repete. Criação norte-americana para insuflar os guerrilheiros contra as tropas russas que haviam invadido o Afeganistão (1979-89). Agora que a coisa fugiu ao controle, o que George Bush filho disse na época que resolveu invadir o mesmo Afeganistão? “É a luta do Bem contra o Mal...” Novamente o discurso fundamentalista. Mas o fundamentalismo que aparece é o do Talibã, sempre seguindo aquela receita de bolo do estereótipo do déspota oriental. (imagem ao lado, Osama, uma figura que deve ser mantida viva a qualquer custo para justificar a militarização do discurso norte-americano)

Por que imagens do ataque dos terroristas puderam ser mostradas ad nauseum, mas as imagens dos ataques ao Afeganistão são sistematicamente censuradas? Como pode ser que as transmissões da guerra do golfo nunca mostraram destruição ou mortos de ambos os lados? Mas... A mídia ocidental não é um exemplo de idoneidade para o mundo? O direito à informação não foi sempre uma bandeira do assim chamado “mundo livre” (como o Ocidente gosta de se auto-proclamar)?

E, por falar em impérios, segundo Walt Disney, o império feudal e absolutista da Rússia do Czar Nicolau era melhor ou mais legítimo que o regime comunista. Esta distorção da realidade deve dar calafrios em qualquer professor de história. E aqui não vai nenhuma defesa da ditadura na qual degringolou o regime comunista soviético. É só dar uma olhada no desenho animado Anastácia. A mensagem é que o regime pusilânime da casa dos Romanov era democrático, doce, limpo e angelical como na estória da gata borralheira!

Emissoras que Não se Vedem? Existe Isso?

Como lembrou Silio Boccanera, na guerra a primeira vítima é a verdade. O governo dos Estados Unidos reclamou, dizendo que a rede de tv do Qatar, Al Jazeera, fazia propaganda anti-norte-americana ao transmitir pronunciamentos de Osama direto do Afeganistão. Fato: grandes redes de tv norte-americanas perderam muito, cerca de 350 milhões de dólares, ao não transmitirem propagandas na cobertura do ataque terrorista ao World Trade Center. A CNN passou seis dias sem propagandas – por motivos... humanitários. Como se o Pentágono não manipulasse as informações ao enfatizar as imagens dos pacotes de ajuda humanitária lançados aos refugiados afegãos (1).

Quem vê os combates? Não se trata de morbidez, a questão é quem é que vai dizer quem venceu? Notícias de baixas? Só do lado do Talibã. Helicóptero norte-americano abatido? Foi pane, problemas técnicos... O governo norte-americano considera que a Al-Jazeera está servindo como suporte para as idéias de bin Laden. O então Secretário de Estado, Collin Powell, disse... “somos a favor de liberdade de imprensa, mas pensamos que ela não pode servir como suporte para disseminar idéias terroristas. Osama bin Laden não pode usar a mídia para difundir suas idéias” (2).

A Al-Jazeera transmitiu uma gravação do porta-voz da Al-Qaeda, Suleiman Abou-Gheith, na qual repete as palavras do líder bin Laden dizendo que a América não terá paz enquanto os muçulmanos não tiverem. O irônico é que Powell e o então Primeiro Ministro britânico Tony Blair concederam entrevistas à Al-Jazeera, e outros líderes norte-americanos também tentaram o mesmo. O que está parecendo é que a emissora árabe está sendo porta voz de todo mundo e o governo norte-americano está querendo c e n s u r a r, em nome de seus próprios interesses. Mas... não era a América (do norte) o bastião da liberdade de imprensa?

Jornalismo?

Richard Reeves considerou ruim o comportamento da imprensa no que diz respeito à cobertura do conflito no Afeganistão, após os atentados de 11 de setembro de 2001. Segundo ele, o jornalismo televisivo acabou. Portanto, a polêmica em torno da autocensura das emissoras norte-americanas quanto a manter uma superficialidade em torno das notícias da guerra não fez a menor diferença. Aqueles que operam as câmeras são mais importantes que os jornalistas, já que cada vez mais a imagem é tudo. Segundo Reeves, o número de bons profissionais na tv norte-americana vem diminuindo gradativamente. Afirmou que jamais confiaria numa informação passada pela tv sem checar. Segue dizendo que a imprensa norte-americana é responsável pela onda de desinformação, já que nos últimos dez anos os jornais norte-americanos removeram 80% dos correspondentes no Oriente Médio. As empresas alegam que é muito caro manter jornalista num outro país até que compreenda a cultura.

Conclui-se, portanto, que ninguém ligava se o Paquistão (ditadura/país vizinho do Afeganistão e que os Estados Unidos buscaram como aliado) estava desenvolvendo armas nucleares nesses mesmos últimos dez anos. Ironiza a visão narcisista dos norte-americanos, como quem diz: “não ligamos, somos uma superpotência e ninguém vai nos atacar”. O que significa dizer que os norte-americanos não sabem nada sobre as ameaças que pairam sobre si. Segundo Reeves, o próprio ex-presidente Bill Clinton é culpado pela disseminação dessa postura narcisista. Por outro lado Reeves, para quem Bush é simplesmente alguém muito ignorante, não acredita que este presidente norte-americano tenha discernimento para saber das coisas o suficiente a ponto de conseguir mentir sobre elas para a imprensa (3). (imagens acima e abaixo, quando se trata da verdade dos fatos, onde fica a fronteira com o sensacionalismo?)

Quando a Verdade Não Dá Ibope

A mídia, com sua miopia, enfatizava os números de vítimas no atentado, deixando de lado uma infinidade de massacres que ocorrem a muito tempo. Muitas guerras são desconhecidas porque simplesmente estão fora do noticiário. Quando acontece de algum desses países “desconhecidos” revidarem agressões das grandes potências em seu próprio território, como foi o caso dos atentados no World Trade Center, as pessoas incrédulas começam a engrossar o coro daqueles que vão classificá-los de loucos, que atacaram sem motivos... Alguns dados: Desde 1975, e durante os 26 anos seguintes, acontecia uma guerra civil em Angola. O país está todo destruído, economicamente falido e entupido de minas terrestres, mutilando milhares a cada ano. Mais de um milhão de pessoas morreram. Outro conflito se deu entre duas ex-repúblicas soviéticas, Azerbaijão e Armênia. Matou mais de 30 mil, com dezenas de milhares de refugiados. O Sri Lanka, antigo Ceilão, está numa guerra civil que se arrasta e mais de 64 mil já morreram desde 1983 (4). Temos que admitir, nós brasileiros, que sabemos sim dos nossos milhões de excluídos, a quem é negada cidadania.

Temos que admitir saber que morrem de fome. Deveremos admitir nossa omissão, quando finalmente se voltarem contra nós. Temos de admitir que não vai dar para chamá-los de fanáticos ou radicais quando... Numa sociedade de consumo, onde a cidadania é medida pela possibilidade que temos de fazer compras, a tv é um agente do consumo. Como disse Joan Ferrés...

“A televisão nega a realidade quando a reduz a estereótipos. Os estereótipos falsificam a realidade porque a simplificam ou a deformam, com base em condicionamentos culturais derivados sempre de um jogo de interesses explícitos ou implícitos”(...)”O jornal USA Today demonstrou a visão falsificada da realidade que é oferecida pela televisão americana por meio da análise exaustiva de 94 shows exibidos durante uma semana em 1993, na faixa horária de máxima audiência, pelas quatro grandes redes do país, ABC, CBS, NBC e FOX”.(...)” O protótipo do americano mostrado pela televisão nunca assiste à televisão, faz as refeições sempre fora de casa, nunca lê, não entra em supermercados e explica uma piada sobre sexo a cada quatro minutos” (...) “Dentro desse contexto não pode surpreender a expressão de Umberto Eco: ‘Símbolo é tudo aquilo que serve para mentir’. A linguagem como sistema para mascarar a realidade e não para revelá-la”(...)”A imagem não demonstra ser não uma janela aberta para o mundo, mas uma tela entre o espectador e o mundo, um filtro para o mascaramento da realidade, um obstáculo para uma comunicação transparente. Usando uma expressão de Jean Baudrillard, quando aparentemente mais nos aproximamos da realidade - por intermédio de uma imagem em movimento, a cores, sonora e instantânea – mas nos afastamos dela. E ocorre que ‘atualmente o escândalo já não está mais no atentado aos valores morais e sim no atentado contra o princípio de realidade” (5)

Mas talvez não exista motivo para preocupação. Afinal... A televisão é só um eletrodoméstico! (ao lado, o ex-presidente norte-americano George W. Bush em visita a centro de reabilitação para seus soldados vitimados no campo de batalha, 2007)

“Nenhum vento sopra
a favor de quem
não sabe para onde ir”

Sêneca




Notas:

Leia também:

A Cultura da Arma na América do Norte (I), (II), (III), (IV), (V), (final)

Isto é Holyywood!

O Cinema e o Passado: O Caso do III Reich (I), (II), (final)

1. BOCCANERA, Silio. Tv’s amargam perdas e danos da guerra. Globo News. 09/10/2001. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/asp1710200199.htm Acessado em: 05/09/2009.
2. EUA acusam al-Jazeera de colaborar com o Talibã. 10/10/2001 - 20h43m - GloboNews.com Fonte: Reuters. Disponível em:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/asp1710200198.htm Acessado em: 05/09/2009.
3. FOLHA DE SÃO PAULO, folha online, da sucursal Nova York. Jornalismo na tv acabou, diz especialista. 11/10/2001. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u31096.shtml Acessado em: 05/09/2009.
4. CIMENTI, Carolina. Guerras do terceiro mundo não têm audiência. Redação Terra, informações da Reuters. 02/10/2001. Disponível em:
http://br.groups.yahoo.com/group/ciencialist/message/11575 Acessado em: 05/09/2009.
5. FERRÉS, Joan. Televisão e Educação. Tradução de Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. Pp. 50-51. Citação de Baudrillard em, La guerra del Golfo no há tenido lugar. Barcelona: Anagrama, 1991. Pp. 48 e 86-87.

Fontes das imagens:

Viral Politics
David Leeson
Yraceme
Pasta abu-graib/ (imagem 32e)
Encyclopedia Britanica Blog
Propaganda Matrix
Poor Mojo Newswire

4 de set. de 2009

O Diferente (do Oriente) Como Bode Expiatório



Possuímos uma
consciência crítica
, pois
refletimos
, duvidamos.
Correto?






Uma Conversa das Arábias

Mohammed Abed al-Jabri, em Introdução à Crítica da Razão Árabe (1), nos propõe uma reflexão sobre os elementos que os árabes utilizam (ou deveriam utilizar) para responder as perguntas,”quem somos nós?” “Quem queremos ser no futuro?” Como o Ocidente construiu esse “outro”, o árabe? E a articulação entre o árabe e a imagem do mal? Ironia máxima, esta situação parece caminhar passo a passo com a noção do árabe como ser exótico. O árabe é sempre o culpado, seja qual for o evento (o judeu e o ateu também ocupam o posto quando é conveniente). O que o Ocidente entende por “árabe” (ou “oriental”) não passa de uma construção conceitual que pouco tem a ver com a realidade. O árabe não seria um Outro, mas uma espécie de duplo do ocidental. (imagem acima, Édipo, de Jean-Léon Gérôme, 1867-8; provavelmente retratando um soldado francês de Napoleão. Nas imagens abaixo, filmes e desenhos animados norte-americanos retratando o árabe de forma pejorativa. Se fôssemos escrever sobre o tema, teríamos muito a dizer sobre como os norte-americanos falam dos outros povos. Poderíamos começar mostrando como eles retratam os latinos)

Em seu livro, Orientalismo. O Oriente como Invenção do Ocidente, Edward Said, palestino de origem, nos mostra como a visão que temos do não-ocidental é completamente equivocada, não passando de nossa própria imagem refletida (2). Analisa também a medida em que os próprios orientais vêem a si mesmos através da fantasia do Ocidente em relação os povos não europeus. De acordo com Said, o conhecimento moderno sobre o Oriente surgiu de uma postura de força ocidental. O Ocidente olhou para o mundo como algo a ser conquistado. Alexandre o Grande, César, Marco Antônio... Nomes que alimentaram esta tradição no Ocidente. Napoleão Bonaparte apenas segue esta tendência quando parte para o Egito, levando consigo uma equipe de intelectuais cuja função seria assimilar a lógica daqueles a quem se pretendia conquistar. Ao mesmo tempo, não existia entre os árabes um discurso equivalente que pudesse frear esse ímpeto internacionalista. Said segue dizendo que o mundo árabe tem algo de ingênuo, pois em sua curiosidade quanto ao diferente infiltra-se uma falta de vigilância - acabam entrando o amigo e o conquistador.

Sobre o processo de construção de seu livro, é obra de alguém que passou pela desorientação da distância. Ele deveria se colocar entre Oriente e Ocidente. Enquanto palestino ou ocidental, estaria dentro de uma cultura, condicionado pelo ponto de vista que ela impunha. Procurava inventariar e reconquistar a parte de sua identidade árabe que fora construída, manipulada e possuída pelo Ocidente. Do Orientalismo critica uma postura científica, que vê o Oriente como um objeto inerte prostrado em seu laboratório para ser manipulado sem reação. Elogia no Orientalismo a colaboração entre homens e culturas visando uma descoberta coletiva, no sentido de conhecimento que não esteja a serviço da dominação de um pelo outro.

Analisando o discurso dos renascentistas, Said considera bastante evidente a tentativa de sugerir que modernizar o mundo árabe-islâmico significava estar de acordo com as leis ocidentais. Desta forma esperava-se que o Islã fosse percebido numa relação de igualdade. Entretanto, continua Said, hoje o Islã reage ao Ocidente e este teme o Islã militante (3).

Amin Maalouf, em seu As Cruzadas Vistas pelos Árabes, nos mostra como os muçulmanos viam os europeus cristãos das cruzadas. Invasores, atrasados, cruéis, selvagens, ignorantes e culturalmente despreparados. Estes são os adjetivos que em geral os sectários ocidentais sempre utilizam para designar... os muçulmanos. Certamente, mas, e notem a estranha coincidência, são os mesmos que os muçulmanos utilizavam naquela época para classificar os ocidentais cristãos.

Maalouf conta que em 1099 o cádi de Damasco Abu-Saad al-Harawi (que teria feito a primeira chamada ao jihad), ao acolher os refugiados vindos da Palestina de onde foram expulsos pelos europeus, disse a eles que o muçulmano não deve se envergonhar de ter tido que fugir de sua casa. Maomé fora o primeiro refugiado do Islã, quando foi forçado a deixar Meca, buscando santuário em Medina. Nas palavras de Maalouf...

“E não fora a partir de seu exílio que lançara a Guerra Santa, o jihad, para libertar a pátria da idolatria? Os refugiados devem considerar-se os combatentes da Guerra Santa, os mujahidins por excelência, tão honrados no Islã que a imigração do Profeta [Maomé], a Hégira, foi escolhida como ponto de partida da era muçulmana” (4). O exílio chega ou chegava a ser visto como um imperativo, enquanto para alguns causava escândalo ver muçulmanos aceitarem viver em território ocupado. Segundo William Stoddart, o tão pouco discutido e muito mal compreendido conceito de Jihad, longe de ser a ferramenta preferida de fanáticos e animalizados muçulmanos, constitui uma peça que vai além do puro e simples combate ou tentativa de destruição...

“Outro conceito islâmico muito conhecido é o de ‘guerra santa’ (Jihād). Esta se refere exteriormente à defesa da comunidade islâmica. Interior ou espiritualmente, refere-se à guerra oculta contra o eu. O profeta mostrou a relação destes dois aspectos da guerra santa quando, depois de uma batalha, observou aos seus companheiros: ‘Regressamos da guerra santa menor (contra os nossos inimigos externos) para a guerra santa maior (contra nós mesmos) ‘“ (5)

Notas:

1. Al-JABRI, Mohammed Abed. Introdução à Crítica da Razão Árabe. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora UNESP, 1997[1994].
2. SAID, Edward. Orientalismo. O Oriente Como Invenção do Ocidente. Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996[1978].
3. SAID, Edward (et alii). Entrevistas do Le Monde. Civilizações. Tradução Sergio Flaksman. São Paulo: Editora Ática, 1989. Pp. 184-189.
4. MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes. Tradução Pauline Alphene e Rogério Muoio. São Paulo: Editora Brasiliense, 2001[1983]. P. 13.
5. STODDART, William. O Sufismo. Doutrina Metafísica e Via Espiritual no Islão. Tradução Iva Vicente Flores. Edições 70, coleção Esfinge, 1976. P. 30.

3 de set. de 2009

Medo do Diferente ou Conveniência Política?



O discurso da igreja cristã
era (?) particularmente
xenófobo e escatológico

Em História do Medo no Ocidente (1), Jean Delumeau nos dá uma visão da concepção que se fazia do islã na Europa dos séculos XVI à XVIII. De Acordo com o historiador, nem de longe se podia falar de uma unanimidade do europeu em torno da satanização do muçulmano – naquela época, o império otomano era a força que havia produzido uma unidade, sendo os turcos seu centro. (todas as imagens deste artigo são de O Rei e Eu, com Yul Brynner no papel título. Con exceção da última, um desenho animado do filme. Filme exemplar quando se trata do discurso preconceituoso ocidental)

Consta que as populações que não estavam na iminência de uma invasão dos otomanos não se preocupavam muito com eles (2). Mesmo nas regiões ameaçadas, como as penínsulas ibérica, itálica e balcânica, não só não havia medo dos turcos como na verdade verifica-se certo desejo dos autóctones por serem invadidos – na Hungria havia hostilidade em relação aos Habsburgos (3). O motivo era a opressão por parte de seus senhores. Entre os séculos XV e XVI, os camponeses chegaram a emigrar para os territórios controlados pelos turcos (4). Delumeau mostra, com um lamento composto à época, como reagiam por volta de 1570 certas camadas da população de Veneza em relação aos turcos. Dois pescadores se queixam do governo...

“Marino: Mas como Deus não quer que o reino do Tirano [o Senado] pese demasiadamente sobre o mundo, ele preparou para fazer justiça o turco e o grande sultão. Vettore: Este toma o que eles tomaram e lhes prepara guerras e sofrimentos para lhes pespegar um bom golpe na cabeça. Marino: Então seremos seus irmãos muito queridos e eles virão conosco, de traseiro nu, pegar caranguejos moles, lagostas, douradas. Vettore: Eles não chamarão mais os pobres de cornudos, de imbecis, de ladrões nem de cachorros e não lhes lavarão mais os olhos com suas cusparadas” (5)

Portanto, além daquelas populações diretamente em contato com a violência de um exército invasor, no plano geral era a Igreja cristã que estava realmente preocupada. Na Alemanha, Áustria e Hungria, o inimigo estava fora, chegando. Entretanto, na Espanha, o inimigo estava dentro e fora. Ainda que os mouros de Aragão (1526), Castela e Granada houvessem sido convertidos em 1499, esses muçulmanos conservaram sua língua e costumes, celebrando clandestinamente seu culto – segregando-se inclusive dos casamentos com cristãos. De fato, esta população mourisca acolhia os piratas muçulmanos de braços abertos. A situação chega ao ponto de segregarem-se as populações mouriscas aos arredores das cidades ou às terras ruins do planalto. O governo obriga inclusive a que os trajes típicos e o idioma dos espanhóis sejam a partir de então adotados pela população mourisca. Essa incapacidade de assimilar o muçulmano autóctone leva a grande expulsão de 1609-1614, quando ¾ da população de 8 milhões de habitantes foi empurrado para fora da Espanha.

Em várias partes da Europa, católicos e protestantes ouviam sinos sempre ao meio dia lembrando “o perigo iminente”. Pio V, em 1571, pediu preces públicas pela proteção da frota que iria combater o sultão. A vitória foi saldada com a celebração de uma Festa de Nossa Senhora das Vitórias e a instituição da festa do Rosário, no primeiro domingo de outubro. Em missas contra turcos, orações são compostas para salvar a cristandade da invasão pagã. O avanço otomano é comparado às pragas, epidemias e inundações. “Com base em Daniel e em Ezequiel, anuncia-se o fim próximo do mundo pelas mãos dos turcos” (6).

Era uma leitura tanto católica quanto protestante que as vitórias dos turcos eram um castigo de Deus. Duas vozes eram as de Lutero e Erasmo. Lutero apresentava uma visão escatológica, que associava os turcos, o papa, o diabo e o “mundo da carne”...

“E se vós vos puserdes em campanha, agora, contra o turco, estejai absolutamente certos, e não duvideis, de que não lutais contra seres de carne e osso, em outras palavras homens [...]. Ao contrário, estejai certos de que lutais contra um grande exército de diabos [...]. Assim, não confieis em vossa lança, em vossa espada, em vosso arcabuz, em vossa força ou em vosso número, pois os diabos não se importam com isso [...]. Contra os diabos, é preciso que tenhamos anjos junto de nós; é o que advirá se nos humilharmos, se suplicarmos a Deus e se tivermos confiança em sua Palavra” (7)

“Se a cidade cristã é atacada por Satã, só Deus pode defendê-la” (8). Erasmo, ainda que sem a visão escatológica de Lutero, abandona seu pacifismo. O círculo de Carlos V lhe pedira que adotasse uma posição menos pessimista que o derrotismo de Lutero. Escreve Erasmo que...“Se desejamos ter êxito em nossa empresa de livrar nossa garganta do aperto turco, ser-nos-á necessário, antes de expulsar a raça execrável dos turcos, extirpar de nossos corações a avareza, a ambição, o amor da dominação, a boa consciência, o espírito de deboche, o amor da volúpia, a fraude, a cólera, o ódio, a inveja [...]”(9)

Porque não se fala dos Judeus? Creio que já é hora de os Judeus procurarem mostrar, como os muçulmanos estão sendo forçados a fazê-lo, que sua religião não é a favor da guerra indiscriminada – seja contra exércitos ou populações civis. Palestinos que Israel espremeu em grandes guetos (Cisjordânia e faixa de Gaza). Os judeus não resistiram até o último homem (e criança) no gueto de Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial? Por que com os palestinos deveria ser diferente?

Alguém ainda se lembra do episódio de Sabra e Shatila em 1982? São vilas no sul do Líbano invadidas por milícias cristãs apoiadas por Israel. Massacraram, torturaram, estupraram e estriparam 2.750 homens, mulheres, crianças e velhos. Ariel Sharon comandava as tropas israelenses na época e existem indícios que apontam para sua cumplicidade. Na verdade, existem muitas acusações sobre Sharon na rubrica “crimes contra a humanidade” – mas a imprensa só fala sobre esse tema citando muçulmanos e africanos.


A quem beneficia
esse belicismo desenfr
eado?
À indústr
ia armamentista?
À geopolítica das grandes potências?




Um filme chama atenção pelo interminável desfile de clichês do mundo oriental. Em Ana e o Rei do Sião (Anna and the King of Siam, direção John Cromwell, 1946) a história gira em torno da relação entre uma viúva inglesa que segue com seu pequeno filho para o Sião (atual Tailândia) contratada pelo rei como professora de seus 67 filhos. Desde o início, os siameses são criticados. Ela considera totalmente inaceitáveis os procedimentos do protocolo real, que entre outras coisas manda que todos se prostrem ao chão na presença do rei. Então, Ana “ensina” ao rei como seria o procedimento “correto” perante uma pessoa da realeza. Só para lembrar, na época retratada pelo filme, a Inglaterra era um império extenso e poderoso. Bem perto do Sião está a Índia, colônia britânica (na época) infinitamente maior em termos territoriais.

Irônica era outra crítica do o filho da professora. Ele chamava atenção para a nudez. As pessoas andavam com cangas e chinelos, os homens com peito nu, as mulheres com um bustiê bem colado ao corpo, delineando os seios. Só o Rei andava “vestido”. A professora não fazia comentários a respeito. Não falava nada, mas se vestia de uma forma que deixava a mostra apenas mão e rosto. A ironia está em que nós criticamos o Talibã justamente por obrigar as mulheres a utilizarem a burka, escondendo tudo. Neste filme, por outro lado, uma das mensagens coloca ocidentais sugerindo que a nudez dos corpos dos siameses é prova de sua selvageria.

Em O Rei e Eu (The King and I, direção Walter Lang, 1956), uma refilmagem, com Yul Brynner no papel de rei do Sião, tem lugar uma das cenas mais odiosas. Ocorre na aula de geografia, quando o rei abre seu mapa do mundo. Nele o Sião é enorme e ocupa praticamente tudo. A professorinha retruca que ele está enganado. Abre seu próprio mapa do mundo, feito no Ocidente, onde o Sião é minúsculo. Bem menor que a Índia, que não passava então de mera colônia britânica. Esse mapa mostrava também outras colônias britânicas pelo mundo, as francesas, as holandesas, etc... A Inglaterra não tem seu tamanho superdimensionado, como o Sião no outro mapa. Entretanto, onde estava localizado este país? Todos podem abrir o atlas e verificar, a Grã-Bretanha está no centro geográfico do mapa. Ou seja, ela é representada como se fosse o centro do mundo. Ela, é claro, está no centro geográfico em termos do eixo leste-oeste (ou direita-esquerda). No eixo norte-sul ela não poderia estar, já que se situa bem ao norte do equador.

Alguns diriam que esta interpretação de “centro do mundo” é um equívoco, pois a questão da posição deste país no centro do mapa se dá porque é por lá que passa o meridiano de Greenwich, que divide o planeta em duas partes iguais. Muito conveniente que o planeta seja dividido em duas partes iguais bem ali. Porque os geógrafos ingleses não escolheram, por exemplo, o Chuí, no extremo sul do Brasil, para dividir o planeta em dois, ou a capital do Paraguai, ou Bagdá no Iraque, ou Moscou, ou uma vila perdida no interior do Mali, na África ocidental?

Notas:

1. DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800. Tradução Maria Lúcia Machado, tradução das notas Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
2. Idem, pp. 271 e 274.
3. Ibidem, p. 274.
4. Ibidem, p. 269.
5. Ibidem, p. 270.
6. Ibidem, p. 275.
7. Ibidem, p. 277.
8. Ibidem.
9. Ibidem.

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