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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

14 de dez. de 2009

Isto é Entretenimento!


 
“É só um filme divertido.
É divertido. Para mim não
há nenhuma consequência.
É  divertido,  divertido,
apenas  divertido”

Jamie Lee Curtis,
atriz de True Lies



Uma Coisa é Uma Coisa...

O Agente Especial Harry está numa festa luxuosa na Suíça, cercado por alguns “tediosos bilionários árabes do petróleo”. Sua missão é identificar “vilões” transportando armas. Os terroristas roubaram as armas de uma ex-república soviética falida e deram um ultimato: a menos que o governo dos Estados Unidos retire suas tropas em nações árabes, eles irão detonar seis bombas nucleares sobre cidades norte-americanas. Ao mesmo tempo, Harry está deprimido com a possibilidade de sua esposa o estar traindo. Procurando acalmá-lo, seu amigo Gib exclama: “vamos pegar alguns terroristas e vamos acabar com eles. E você vai se sentir bem melhor”.

...Outra Coisa é Outra Coisa 



“A mensagem de Gib
é assustadora: deprimido?
Pulverize um árabe!”


Jack Shaheen




No final do filme, num opulento salão de baile, a elite presente é formada por norte-americanos, asiáticos, africanos, gente falando francês, e nenhum árabe. De acordo com Jack Shaheen, a mensagem de mais um filme de Hollywood é clara: quando o mundo estiver livre dos árabes, estaremos seguros afinal. Na opinião de Shaheen, True Lies (direção James Cameron, 1994) é um exemplo perfeito quando se deseja saber o quanto um filme pode perpetuar estereótipos negativos – neste caso, em relação aos árabes.


Mais especificamente, ali os palestinos são mostrados como seres sujos, demoníacos e desprezíveis. Terroristas fanáticos espreitando os Estados Unidos com bombas atômicas – aliás, este foi o primeiro filme a mostrar árabes explodindo esse tipo de coisa naquele país. Antes disso em vários filmes, entre eles De Volta Para o Futuro (Back to the Future, direção Robert Zemeckis, 1985; nesse caso são terroristas líbios), os árabes só haviam tentado. Houve protestos contra o filme na época, mas nada que impedisse o faturamento de 62 milhões de dólares nas duas primeiras semanas de exibição – para um filme que custou 110 milhões foi um bom começo.


Também acontece um striptease da atriz principal, mas a presidente da Organização Nacional para Mulheres desabafou que comparadas com os árabes, neste filme as mulheres se dão relativamente bem! Pouca diferença fez também que no filme se desse a entender que Jihad é sinônimo de violência. Como esclareceu William Stoddart:

“Outro conceito islâmico muito conhecido é o de ‘guerra santa’ (Jihād). Esta se refere exteriormente à defesa da comunidade islâmica. Interior ou espiritualmente, refere-se à guerra oculta contra o eu. O profeta mostrou a relação destes dois aspectos da guerra santa quando, depois de uma batalha, observou aos seus companheiros: ‘Regressamos da guerra santa menor (contra os nossos inimigos externos) para a guerra santa maior (contra nós mesmos) ‘“ (1)


A Fox, estúdio que produziu o filme, pagou uma entidade especializada em direitos dos animais para acompanhar os procedimentos da produção. O estúdio também convidou críticos de cinema para assistir a obra antes do lançamento. Porém, o estúdio se recusou a consultar ou reunir-se com especialistas árabes e muçulmanos residentes nos Estados Unidos – ou fora dele. Nem foram convidados a assistir o filme antes do lançamento. Pouco tempo depois do lançamento do filme, o estúdio fez uma débil tentativa para acalmar espectadores preocupados. Adicionaram uma advertência: “Este filme é uma obra de ficção e não representa as ações ou crenças de uma cultura ou religião particular”.


O problema é que a frase aparece apenas no final dos créditos, no final do filme. Shaheen declarou que, quando assistiu ao filme no cinema, ele foi o único que permaneceu na cadeira até o final dos créditos – poderíamos perguntar aqui quantas vezes vimos os créditos dos filmes rodarem até o final na televisão aberta brasileira, onde, diga-se de passagem, os enlatados norte-americanos inundam as telas.


Alguns dizem, afirma Shaheen, que esse tipo de advertência deveria vir antes do filme começar. Mas ele acredita que tanto faz, no começo ou no final, o repúdio será desprezado. Aparentemente foi a partir de 1972, em O Poderoso Chefão (The Godfather, direção Francis Ford Coppola), que a indústria cinematográfica começou a se preocupar com isso, pressionada pela comunidade italiana nos Estados Unidos. Então esse tipo de advertência começou a aparecer em filmes que apresentam estereótipos de cubanos e chineses residentes naquele país. O diretor James Cameron disse que não se sentia culpado de vilificar os árabes em True Lies. Afirmou ainda necessitar de algum “vilão conveniente”. Além disso, completou ainda, qualquer um que se refugie no terrorismo, independente de sua origem étnica ou religião, está moralmente errado e, portanto, os árabes são a escolha certa em qualquer filme. Com este tipo de afirmação, Cameron não só demonstra uma incompreensão absoluta da situação no Oriente Médio como parece desconhecer o fato de que seu próprio país foi o único a lançar bombas atômicas desde que elas foram inventadas. Parece desconhecer também que as duas bombas lançadas pelos Estados Unidos sobre o Japão durante a Segunda Guerra Mundial atingiram apenas população civil.

“Alguns espectadores reconhecem que filmes ajudam a formar atitudes. Por exemplo, no outono de 1993 [ano em que True Lies foi lançado], crimes de ódio estavam em elevação contra árabes e muçulmanos norte-americanos. De fato, a cidade de Natchez, Mississipi, estava planejando um ‘Dia Nacional de Exercício de Segurança’, apresentando um ataque terrorista simulado por um grupo fictício chamado ‘Árabes contra [norte-]americanos’. O exercício militar estava planejado para todo o Estado; a diretriz de Natchez veio diretamente da Agência de Gerenciamento de Emergência Estadual. Mais tarde, por sua conta, o prefeito de Natchez e diretor da Agência mudou o nome do grupo terrorista simulado para ‘Qualquer um contra a América [do Norte]’. Além disso, mandaram uma carta de desculpas para o Comitê Árabe-Americano Anti-Discriminação” (2)


Em 1995 houve um atentado terrorista nos Estados Unidos. Reportagens especulativas na imprensa, e anos de estereótipos nocivos, resultando em mais de 300 crimes de ódio contra norte-americanos de origem árabe (3). No final, o terrorista era um norte-americano. Apesar disso: se é árabe, está decretado que é criminoso e seu único objetivo na vida é destruir a nós e nossa propriedade. Esta pode ser uma lição valiosa para certos países latino-americanos onde, ao invés dos árabes, é a pobreza que é criminalizada.

Leia também:


Notas:

1. STODDART, William. O Sufismo. Doutrina Metafísica e Via Espiritual no Islão. Tradução Iva Vicente Flores. Edições 70, coleção Esfinge, 1976. P. 30.
2. SHAHEEN, Jack G. Reel Bad Arabs. How Hollywood Vilifies a People. Massachusetts: Olive Branch Press, 2º ed., 2009. P. 539. A Ênfase é minha.
3. Idem, p. 13. 


10 de dez. de 2009

Estética da Destruição




O maior
princípio
de beleza
é a saúde”

Adolf Hitler






Arquitetura da Destruição
(1992) (1), documentário de Peter Cohen, mostra a articulação entre o ideal estético nazista e a perseguição aos judeus. Vejamos alguns elementos desse ideal estético. A tomada do poder por Hitler incluía uma ampla “limpeza estética” das impurezas que supostamente degeneravam o espírito ariano. A meta do Nacional Socialismo era a verdadeira Pureza. Afirmavam conhecer a origem de uma grande ameaça a essa pureza que, quando erradicada, permitiria o surgimento de uma nova Alemanha.

Na música, Richard Wagner era o ídolo de Hitler, que admirava o que considerava a melhor mistura de um artista criativo e um político em um só homem. Hitler absorveu as propostas de Wagner: anti-semitismo, culto ao legado nórdico e o mito do sangue puro, arte para uma nova civilização. Um artista-príncipe nascido do povo, unindo a vida e a arte, anunciando o Estado Novo. Em certo momento, Hitler teria dito que aquele que não compreender Richard Wagner não compreenderá o Nazismo.

A escultura gozou de popularidade na lógica da estética de Hitler, pois era pública, ao contrário da pintura. O gigantismo era um elemento básico nas esculturas encomendadas pelo Partido Nazista – o que fazia delas habitantes do espaço público. Deveriam ser vistas mesmo à distância. Ninguém estaria com seus olhos longe de uma, assim que se levanta a cabeça. Ainda assim, a escultura deveria se adequar à arquitetura. Ela deveria ser pensada em função dos prédios e estádios que iria decorar. Gigantismo também em relação aos encontros da massa do povo. Nos comícios, as massas que ocupariam esses grandes espaços arquitetônicos, eram de grande importância para os nazistas – elas encarnavam o mito do Corpo do Povo alemão. A massa vista como um corpo e seu sistema circulatório, deveria buscar uma pureza racial. Pode-se dizer que Hitler foi um grande coreógrafo das massas. Ele deu forma ao nazismo, criando os uniformes, as bandeiras e os estandartes. A tristemente famosa insígnia do Partido Nazista foi criada em 1923. (imagem acima, cena de Olímpia, filme dirigido por Leni Riefenstahl, registra as olimpíadas de 1936 em Berlim, sob os olhos atentos de Hitler. A cena, muito difundida, do atleta negro norte-americano Jesse Owens vencendo os alemães é enganadora, já que nos Estados Unidos o racismo era praticamente institucionalizado)


A arte tinha grande importância dentro do ideal nazista de pureza. A degeneração cultural era considerada uma ameaça. Identificavam um “bolchevismo cultural” que estaria sendo engendrado pelos judeus. Para os nazistas, a vanguarda artística era evidência de depravação cultural e intelectual. A oposição em relação a todas as manifestações da arte moderna era considerada uma “necessidade higiênica” desse Corpo do Povo. Em 1928, fundada a primeira organização cultural nazista, tendo o comandante da SS Heindrich Himmler como um de seus patronos, é deixada sob o comando de Rosemberg. Inicialmente a Sociedade Nacional Socialista da Cultura Alemã muda seu nome para Defesa da Cultura Alemã. (imagem acima, escultura de Arno Brecker)

O Partido defenderia o Corpo do Povo, afastando de seus olhos os artistas modernos cujas obras mostrariam sinais de doença mental. A partir de 1931, o professor Paul Schultze-Naumburg faz comparações entre obras de arte moderna e fotos de pessoas com problemas físicos e mentais. A idéia era ligar degeneração com perversão artística, uma vez que em sua opinião somente se poderia encontrar os modelos dessa arte nos manicômios - nos quais, completa o professor, “se reúne a degeneração de nossa espécie”. Para Schultze-Naumburg, arte é espelho de saúde mental. Como Hitler, o professor via saúde apenas nas obras da Antiguidade greco-romana e no Renascimento. O embelezamento do mundo é um dos princípios do nazismo. Segundo a ideologia nazista, a miscigenação degenerou a beleza original do mundo; por isso a defesa de uma volta aos antigos ideais. (imagem abaixo, à direita, cena de O Triunfo da Vontade, 1935, também dirigido por Leni Riefenstahl)

O médico torna-se
um elo importante entr
e saúde e beleza - um perito em estética. Não porque agora todo mundo vai fazer plástica, mas porque vai purificar a raça: é a idéia dos assassinatos
em massa


Nenhuma outra profissão
tinha tantos membros do Partido
-
com 45% dos médicos alemães
em seus quadros



Nas palavras de Cohen: “O assassinato em massa foi a conseqüência final da ambição de Hitler em criar o novo homem. A maquiagem do culto nazista à beleza encontrou seu caminho na câmara de gás. A matança era uma missão biológica, um tributo sagrado ao sangue puro. As fábricas da morte faziam saneamento antropológico. Eram o instrumento de embelezamento”.

Notas

1. No Brasil, foi distribuído em vídeo por Cult Filmes, 1992. Em dvd por Versátil Home Vídeo, 2006.

1 de dez. de 2009

Arte Degenerada




“Porque é uma função
de Estado… evitar que um

Povo seja levado aos braços da
loucura espiritual… porque no
dia em
que esse tipo de arte de fato corresponder à concepção geral,
uma das mais severas mudanças
da humanidade terá começado;

o desenvolvimento às avessas
do cérebro humano”

Minha Luta
Adolf Hitler






É sabido que o ditador nazista Adolf Hitler havia construído um sólido padrão estético por trás de suas teorias sobre a pureza da raça ariana. Sua abordagem estava centralizada na perfeição do corpo físico ariano. Enfatizava um ideal de beleza e pureza de formas que deixava de fora toda a arte moderna. A partir de 1933, a Alemanha assistiu exposições patrocinadas pelo estado nazista que mostravam a “arte decadente” contra a qual a cultura alemã legitima deveria insurgir-se.

Na Itália Fascista de Mussolini não foi bem assim. Keith Christiansen sugere que podemos até mesmo falar de arte no Fascismo sem referência à arte fascista. Na Itália, desde as lutas pela unificação, a arte sempre esteve ligada à política e ao nacionalismo, mas as reformas sociais que advogavam nunca estavam associadas a nenhum regime político em particular. Naturalmente, a partir de Mussolini temos um estilo de arte que será defendido pelo Estado (notadamente o Futurismo de Marinetti). Entretanto, as tentativas de uniformização não surtiam efeito, o que tornava as artes na Itália facista surpreendentemente variadas se comparadas às da Alemanha nazista(1).

Do tempo do regime de Mussolini fica apenas a lembrança amarga do medo de contrariar o governo, como no comentário que o então crítico de cinema e futuro cineasta famoso (no pós-guerra) Michelangelo Antonioni escreveu a propósito da estréia de um famoso filme ultra-anti-semita feito na Alemanha. Judeu Süss era o filme, e o comentário de Antonioni foi elogioso. Consta que, um mês depois, Antonioni escreveu outro artigo em que questionava a forma maniqueísta como o judeu era inserido na trama, assim como o excesso de violência desse personagem (2). (imagem acima, Les Demoiselles D'Avignon, de Pablo Picasso, 1907. Ao lado, Mariage des Masques, de James Ensor, 1910).


Voltando à Alemanha, houve uma exposição em Dresden em 1935, mas o ponto culminante se dá na cidade de Munique em 1937, quando Hitler monta sua própria mostra da tão odiada arte moderna. Arte Degenerada (Entartete Kunst), este foi o nome dado à exibição. Dentre as 5000 obras confiscadas (e banidas) pela estética nazista, encontramos artistas como Emil Nolde (1,052 obras), Erick Heckel (759 obras), Ernst Ludwig Kirchner (639 obras), Max Beckmann (508 obras), (imagem ao lado, Irmão e Irmã, 1933 - posição correta), Otto Dix (260 obras) Outros nomes são Alexander Archipenko, Pablo Picasso, Georges Braque, Marc Chagall, Giorgio de Chirico, Robert Delaunay, André Derain, Theo van Doesburg, James Ensor, Paul Gauguin, Vincent van Gogh, Albert Gleizes, Alexei Jawlensky, Wassily Kandinsky, Fernand Léger, El Lissitzky, Franz Masereel, Henry Matisse, Lászlo Moholy-Nagy, Piet Mondrian, Edvard Munch, Georges Rouault e Maurice Vlaminck (3). Aproximadamente três milhões de pessoas viram a exposição, que foi arrumada de maneira aleatória e desorganizada, já com o objetivo de tornar as obras desinteressantes.



Comentários políticos moralizantes e slogans pejorativos eram dispostos nas paredes ao lado das obras e também no catálogo da exposição. O curioso é que essa desordenação das obras e os slogans reproduzem procedimento baseado numa idéia criada pelo Dadaísmo anos antes – cuja intenção havia sido mesmo chocar o público; um detalhe irônico, mas que dá a dimensão da problemática relação a certos comportamentos recorrentes quando se trata de questionar a validade do ponto de vista de alguém. Entretanto, a estratégia era apenas aparentemente caótica. As obras eram classificadas por temas, estes é que eram chocantes: “Fazendeiros Vistos pelos judeus”, “Insulto à Feminilidade Germânica”, “Zombando de Deus”. Tudo arrumado de forma a gerar protesto contra os judeus e contra a linha estética das obras. (imagem ao lado, O Grito, de Edvard Munch, 1893)

A intenção era mostrar a arte moderna como sendo o último capítulo de uma época de barbarismo enquanto, noutra exposição, mostrava-se aquilo que os nazistas propunham ser o nascimento de uma nova fase na cultura e na arte. Bem próximo dali, no Museu Casa da Arte Alemã, estavam expostas obras “puras” e/ou “apropriadas”, de artistas como Dürer, Cranach e Holbein, os favoritos de Hitler. Curiosamente, a freqüência foi bem menor aqui! A imprensa juntou-se aos nazistas contra a arte moderna, anunciando orgulhosamente que “a limpeza do templo da arte Alemã foi completo” (4). Joseph Goebbels, o Ministro da Propaganda, conseguiu fazer parecer que o público era o verdadeiro juiz da arte. Goebbels chamou de esnobes àqueles do povo que temiam questionar aos que ele chamava de “representantes da decadência e declínio” com sua “arrogância insolente”.


Inicialmente, qualquer obra de arte moderna em qualquer área, música, literatura, arquitetura, escultura ou pintura, era considerada “degenerada”. Posteriormente, o critério se expandiu até incluir qualquer objeto que tenha sido feito por judeus ou comunistas. A definição de “arte degenerada” incluía tudo que não se adequava ao ideal nazista. A idéia é “purificar” os museus por toda a Alemanha. Muita coisa foi vendida, trocada ou roubada. Hitler percebeu que a venda poderia ser proveitosa para os cofres do partido… O que não tinha valor de troca ou venda pelos bizarros padrões vigentes era simplesmente destruído. Em 20 de março de 1939, 1004 pinturas, 3825 aquarelas e muitos desenhos e trabalhos gráficos foram queimados nos fundos do corpo de bombeiros de Berlin - a partir da anexação da Áustria, em março de 1938, a caçada pela arte “impura” começou lá também. (imagem acima, As Mães, xilogravura de Kaette Kollwitz, 1923. Muito admirada na Alemanha, o trabalho de Kollwitz era direcionado aos problemas sociais; Ao lado, cartaz para uma das exposições de Arte Degenerada; No final do artigo, Metrópolis, Tríptico de Otto Dix, 1927/8. Dix mostra a burguesia alemã numa busca alienada pelo prazer. Ela procura esquecer os farrapos humanos e mendigos, fruto dos horrores da 1ª Guerra Mundial)


Na música, Bach, Beethoven, Brahms, Wagner e Haendel eram considerados promotores da superioridade ariana. Toda música escrita por judeus ou simpatizantes foi banida. O expressionismo abstrato na música, assim como o atonalismo, foi considerado degenerado. O jazz também foi incluído nesta lista (imagem abaixo, à esquerda, cartaz da exibição da Música Degenerada; à direita, Retrato de Emy, Karl Schimdt-Rotluff, 1919). Após as leis raciais de 1933, todos os músicos tinham que se registrar. Como resultado, muitos tiveram seus trabalhos censurados e suas carreiras encerradas. Também houve, para a música, uma exposição nos moldes daquela direcionada à pintura e escultura. Mendelssohn, Mahler e Schoenberg, foram usados como exemplo de música impura.

Mas o que propunham os nazistas? Que tipo de imagens deveriam ocupar as retinas do povo alemão? O regime nazista de alguma forma foi capaz de criar uma "arte alemã"? Estava essa arte realmente articulada com a tradição? Na verdade, a iconografia da pintura no regime nazista, dito Nacional Socialista, era bastante limitada. Poucos temas, muito repetidos, eram suficientes para expressar toda a mensagem. Peter Adam afirma que os temas do regime não eram apenas a expressão direta de idéias políticas, mas estavam também na base daquele sistema político em todos os aspectos (5). Os temas: natureza, vida no campo, a mulher alemã, retratos femininos, o homem alemão, o trabalhador, retratos do partido, retratos de Hitler, pinturas anti-semitas e abertamente doutrinárias. Como afirmou Hitler, em discurso no Dia do Partido, em Nuremberg no ano de 1935…



“Enquanto estamos certos
de expressar corretamente
na política o espírito e a fonte
da vida de nosso povo
, também acreditamos ser capazes de
reconhecer seu equivalente
cultural e realizá-lo”







No Brasil de Getúlio Vargas, que oscilava entre o nazi-fascismo e a política de boa vizinhança do presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt, as coisas não foram tão neutras quanto se poderia esperar. Mais especificamente no Rio de Janeiro quando, em 1942, por iniciativa da Galeria Askenazy, foi realizada uma exposição desse tipo. Também chamada de Arte Degenerada, reuniu originais de artistas como Kaethe Kollwitz, Lovis Corinth, Max Slevogt, Kokoschka, Kandinsky, Chagall, Paul Klee e Woller, entre outros - tendo sido rasgada uma tela de Woller, que, aliás, vivia então no Brasil (6).

Notas:

1. CHRISTIANSEN, Keith. Italian painting. Beaux Arts Editions. 1992. P. 300.
2. RENTSCHLER, Eric. The Ministry of Illusion. Nazi cinema and its afterlife. Massachusetts: Harvard Univ. Press, 1996. Pp. 153-4.
3. ADAM, Peter. The arts of the third Reich. London: Thames and Hudson, 1992. P. 122
4. Idem, p.125.
5. Ibidem, p. 129.
6. NAVARRA, Rubem C. "A Arte Degenerada". Jornal de Arte. Campina Grande, 1966, p. 165-72 In LEITE, José Roberto Teixeira. 500 Anos da Pintura Brasileira – Uma Enciclopédia Interativa. 1999. CD-ROM.

13 de nov. de 2009

O Grande Irmão Está Vendo Você



"Aquele que
controla o passado

controla o futuro
.
Aquele que controla
o presente controla
o passado"
(*)



As crises generalizadas na família, na escola, na fábrica, no hospital, na prisão, mostrariam que estas instituições estão no fim. Talvez porque o elemento que às gerou esteja também em seus últimos dias. Michel Foucault chamou esse modelo de Sociedade Disciplinar – as instituições citadas acima seriam meias de confinamento típicos desse modelo. Foucault nos apresentou dois modelos, a Sociedade de Soberania e a Sociedade Disciplinar. Na primeira, a propriedade era tirada dos produtores e a morte dos faltosos era uma regra – admistrava-se a morte.

Na segunda, que Foucault localizou entre os séculos XVIII e XIX, a ênfase é organizar a produção e administrar a vida – daí a família, a escola, a fábrica, o hospital e a prisão. Estavamos sempre passando de um espaço confinado a outro. O panóptico ficou famoso como exemplo do modelo Disciplinar. Trata-se de uma tradução deste modelo na arquitetura dos prédios. Assim, prisões, hospitais, escolas ou fábricas passaram a ser planejadas para que os detentos, os pacientes, os alunos ou os operários pudessem ser vigiados sem que percebessem – quem não se lembra daquelas janelinhas nas portas das salas de aula!

A passagem do primeiro modelo ao segundo parece ter sido em grande parte operada por Napoleão, cuja campanha militar teria tido como pelo menos um dos objetivos destruir o modo de produção feudal. Entretanto, isto não significa que estes modelos tenham um encadeamento cronológico, países ou regiões contemporâneas no tempo estão em pontos diferentes em relação a cada modelo – qualquer brasileiro consegue compreender perfeitamente este detalhe.

Na família, todos os movimentos eram esquadrinhados, seja por constrangimentos morais ou pelo fato de que a maioria dos quartos dá para uma sala ou corredor das casas – claro que estamos falando de uma classe social que tem alguma noção, ou dinheiro, para sequer pensar em possuir alguma privacidade. E hoje, o que temos? Os filhos das classes desfavorecidades são vigiados pelas câmeras nas ruas e nos presídios. Os filhos das classes abastadas pagam serviços de rastreamento por satélite para seguir os carros de seus filhos e se fecham em condomínios caros e cheios de câmeras.(imagem acima, cena de 1984; ao lado, modelo panóptico de prisão em Laranja Mecânica, direção Stanley Kubrick, 1971)

Os pais ligam para eles pelo celular, e já existe o rastreamento por satélite através do celular - é assim que Israel, da segurança de um helicóptero pairando bem alto, localiza e mata líderes palestinos oposicionistas. (imagem abaixo, muro construído por Israel pra isolar os palestinos, sob o pretexto de proteção contra ataques terroristas. A inscrição remete a outro muro, o tristemente famoso muro de Berlim, na Alemanha. Na década de 60 do século passado, o presidente norte-americano John Kennedy foi a Berlim, então pressionada pelas tropas soviéticas, e declarou seu apoio ao povo da cidade com a frase: "eu sou um berlinense". Décadas mais tarde, outro presidente norte-americano, Ronald Reagan, declarou em tom de quem dá uma ordem: "Sr. Gorbachov, derrube este muro". É o caso de se perguntar quantos presidentes norte-americanos farão o mesmo no caso do muro que Israel construiu)

Mas haveria uma nova fase, que Foucault reconheceu como nosso futuro. A Sociedade de Controle parece haver se firmado ao final da Segunda Guerra Mundial (1). Paul Virilio mostra que as Novas Tecnologias da Comunicação teriam sido apropriadas por este modelo. O que mostra a análise feita por Virilio é a transformação dos meios informáticos de transmissão de mensagens em formas de controle ao ar livre. Gilles Deleuze sugere que é próprio das Sociedades de Controle a operação dessas máquinas.

É um panoptismo a céu aberto: os indivíduos não têm mais que ser enclausurados para ser vigiados, basta esquadrinhar e codificar seu espaço. “O que conta não é a barreira [um muro ou uma parede alta, como o Muro de Berlin ou aquele que Israel fez para afastar os palestinos dos judeus], mas o computador que localiza a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal” (2).

O apogeu da Sociedade Disciplinar foi o princípio do século XX. Estamos no século XXI. O que temos? O que queremos? O que desistimos de querer? Como antes, continuamos construíndo mais muros do que pontes (entre nós e os outros, entre nós e os corações dos outros, entre nós e nossos próprios corações).


Pouco
importa se
agora o muro
é virtual
. Um
muro é um
muro!




Notas:

(*) Palavras iniciais em 1984, filme dirigido por Michael Radford, adaptação do livro homônimo de George Orwell - o livro foi escrito em 1948, o filme foi realizado em 1984.

1. DELEUZE, Giles. Pourparlers. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990.
2. Idem, p. 246.

12 de nov. de 2009

O Passado Nazista do Cinema de Entretenimento



“Essas pessoas
tentam se convencer
que faze
m jornalismo
mas, na verdade, elas
estão no ramo do

entretenimento


Michael Deaver

Consultor de comunicação do ex-presidente 
norte-americano Ronald Reagan (1970-1985), comentando
sobre jornalistas  que  cobrem  a  política (*)



“O fundamento da autoridade reside na popularidade”. Nestes termos Adolf Hitler definiu as bases da relação com as massas que desejava conquistar (na imagem acima, Hitler pratica poses para momentos de seus discursos). O chanceler do Partido Nacional Socialista já foi definido como um estuprador que utiliza a palavra como um falo. As massas a serem conquistadas eram como mulheres. Após um grande discurso, Hitler declarou que ficava “encharcado” (1). Em Minha Luta, seu livro autobiográfico, Hitler descreve a relação que o poder deve estabelecer com as massas, tomadas como um ser em inferioridade intelectual. De fato, podemos ver suas diretivas operando atualmente de forma clara na mídia em geral e na televisão em particular…


“O poder receptivo das massas é muito limitado e a capacidade de compreensão que revelam é fraca. Por outro lado, esquecem muito depressa. Sendo assim, a propaganda eficaz é aquela que se limita a uns poucos elementos essenciais e estes devem ser expressos, tanto quanto possível, em fórmulas estereotipadas. Esses lemas devem ser repetidos persistentemente, até que o último indivíduo tenha compreendido a idéia apresentada. Se este princípio não for seguido, e se se tentar fazer abstração ou generalizar, a propaganda será ineficiente, pois o público não poderá digerir ou guardar o que lhe é oferecido. Portanto, quanto maior o escopo da mensagem, tanto mais necessário se torna descobrir o plano de ação psicologicamente mais eficiente” (2).



A política
mais importante
é a que fazemos
com os olhos

Win Wenders,
cineasta alemão
do pós-guerra




Houve um tempo na história da humanidade em que não existia a televisão! Nessa época, os noticiários eram veiculados pelos cinemas. Chamavam-se cine-jornais, e se difundiram com o advento do cinema falado. Antes de o nazismo chegar ao poder, o estudo da técnica cinematográfica era apenas um hobby para Goebbels, que vivia sem rumo após terminar a universidade. Entrou para o Partido Nazista em 1924 e terminou no comando da máquina de propaganda. Uma de suas frases que ficou foi: ‘minta, minta que alguma coisa fica”.

Joseph Goebbels, longe de ser o publicitário grosseiro como era considerado pelas potências aliadas, tinha um papel vital para o partido nazista (imagem acima, à direita). O Ministro da Propaganda de Hitler dava muito valor aos filmes de entretenimento, seus preferidos eram E o Vento Levou e Branca de Neve e os Sete Anões. Notem bem, ambas as produções são americanas, sendo a segunda um desenho animado para crianças produzido por Walt Disney. Seu diário mostra um Goebbels obcecado por filmes, assistia desde o Encouraçado Potemkin (Serguei Eisenstein, 1925) até Ben Hur, de Greta Garbo à Shirley Temple (3).


Anton Kaes mostra como, desde seus primórdios, o cinema tanto expressou quanto foi usado para moldar identidades nacionais. Nascimento de Uma Nação (1915), dirigido pelo americano D.W. Griffith e Napoleão (1927), dirigido pelo francês Abel Gance, são os exemplos mais óbvios. O primeiro acaba servindo para sugerir a articulação entre a Ku Klux Klan [organização secreta que professa ideais racistas nos Estados Unidos] e o governo americano. (imagem ao lado, Nascimento de Uma Nação, polêmico filme dirigido por Griffith que, ao apresentar o contexto da guerra civil nos Estados Unidos, parece sugerir que o país estaria melhor sem negros e brancos anti-escravagistas. O detalhe é que, por exemplo, na cena mostrada, o ator negro não é negro, mas um branco pintado. O racismo não permitiria, ou possibilitaria, a existência de atores de cor)


Após assistir Os Nibelungos (1924), dirigido pelo famoso cineasta alemão Fritz Lang, Hitler o convida para comandar o cinema do III Reich alemão. Goebbels e Hitler perceberam que o mito dos Nibelungos, onde Siegfried traído deveria ser vingado, poderia perfeitamente ser recolocado no contexto da Alemanha daquele momento (4). Foi então que o famoso diretor fugiu para os Estados Unidos. Aliás, muitos foram os diretores e profissionais do cinema que se mudaram da Alemanha para Hollywood. Thomas Elsaesser argumenta que essa migração de profissionais demonstra a grande similaridade entre as práticas dos dois pólos cinematográficos naquela época (5). (imagem ao lado, A Morte de Siegfried, 1ª parte de Os Nibelungos, a saga nórdica filmada por Fritz Lang. Se não foi daí que Hitler retirou a hipótese da "punhalada pelas costas" do povo alemão na 1ª Guerra Mundial, nenhuma imagem poderia ser mais conveniente)


O ano é 1933, Hitler sobe ao poder na Alemanha. O Partido precisa de alguém para por em prática a ideologia Nacional Socialista. Alguém que desse uma cara aos inimigos da pátria. Deve ser alguém que, além de manusear bem as palavras, esteja antenado com as novas tecnologias de então: o rádio e o ainda nascente cinema falado. Goebbels agora assume o posto de Ministro do Entretenimento Popular e Propaganda. Nas palavras de Fritz Hippler, diretor de cinema na época, “para [Goebbels], o filme era um meio ideal de atingir o inconsciente. Ele o colocava acima de todos os outros meios, das artes visuais à imprensa” (6). (imagem ao lado, até nos quadrinhos os nazistas destilavam seu veneno contra os judeus. A caracterização física do judeu como sujo e disforme era padrão, mesmo modelo usado para negros e árabes em Hollywood)


Goebbels havia percebido que entretenimento é melhor que propaganda. Muitos dos diretores que desejavam trabalhar para o Partido, esbarravam na censura do Ministro, que recusava filmes de propaganda óbvia. Segundo seu secretário na época, “ele vivia dizendo ao pessoal do cinema, ‘não me venha com material político’. Todos os filmes políticos haviam se tornado pavorosos”(…), “e sempre dizia ‘fiquem longe dos filmes políticos’ “ (7) .

O filme de entretenimento tem uma intenção política, afastar-nos de nossas preocupações domésticas e familiares. Nos estúdios de Babelsberg, o mesmo lugar onde Fritz Lang filmou Metropolis (1927), era coordenada uma grande produção cinematográfica. Cerca de 90% dos filmes que o Ministro controlava não tinham nenhum conteúdo explícito de propaganda, era um lugar destinado a produzir entretenimento. Era o centro da indústria cinematográfica na Europa, onde Goebbels determinava quem poderia representar qual papel.

Como não podia deixar de ser, a família de Goebbels era retratada como a imagem perfeita da família Nacional Socialista, e sua esposa o modelo da mulher ariana. Tudo era uma farsa, ele vivia em desacordo com sua própria propaganda. Segundo ela, cada alemão só podia ter uma casa (ele tinha várias), os alemães deveriam desdenhar a decadência (ele freqüentava night clubs em segredo), conclamava os alemães a serem felizes no casamento (ele traía sua esposa habitualmente, aquelas que o repeliam ficavam sem trabalho). Sua amante era eslava, de um tipo racial que mais tarde ele chamaria de subumano.


Hitler era retratado
como um homem com habilidade
super-humana, que se sacrificou por seu
país
. O ministro ordenou que mesmo os filmes 
noticiosos não se concentrassem em fatos
e informações
, mas sim na emoção
e no entretenimento


“Goebbels sabia que o modo mais eficiente para fazer qualquer tipo de platéia aceitar uma idéia era prepará-la emocionalmente. A aplicação da música adequada, do cerimonial certo, da solenidade e do ritual convenientes predisporia qualquer platéia a aceitar qualquer mensagem. Nunca se duvidou do efeito hipnótico dos gritos, nas reuniões, dos lemas, das canções patrióticas, dos pés em marcha rítmica, dos holofotes caindo sobre as formações de homens uniformizados, desde que aplicados com precisão, para não se tornarem risíveis” (8).

Hans Feld era crítico de cinema na época, antes de ser expulso da Alemanha no expurgo dos judeus da indústria cinematográfica. Ele comenta as técnicas de Goebbels nos filmes noticiosos…


“Havia uma coreografia, como uma orquestra, ou uma sinfonia. Essa é a parte dura, casando o som, a música e a imagem. O ritmo, a marcha, as fileiras das massas. Então você tem a figura solitária do líder, sempre que se vê os braços estendidos, as mulheres acenando. Quando se vê as massas acompanhadas de uma música emocionante. É como ingerir uma droga. Sentimento, emoção. Você só pode ser compelido a uma morte de herói através da emoção. Os close-ups são um ponto de concentração de poder. Você vê aquele nazista em semi-perfil, é uma força programada . Então, a suástica marcha em sua direção, agarrando você, levando-o a fazer parte dela. Então, você vê seus camaradas. Você não está só, lá há sempre uma figura paterna, o líder. Tudo foi preparado para criar um clímax” (9).


Goebbels preferia que Hitler aparecesse somente em filmes curtos de notícias. Mas Hitler tinha outros planos, procurou então uma jovem cineasta e atriz, Leni Riefenstahl. Pediu que ela fizesse um longa-metragem sobre ele. São famosas as cenas de abertura em O Triunfo da Vontade (1934), o avião carregando Hitler como um Deus pelos céus rumando para Nuremberg, onde teria lugar o Congresso do Partido Nacional Socialista daquele ano. Leni diz que as tomadas que fez do comício, com câmera em movimento, eram diferentes de tudo que os filmes noticiosos haviam feito até então – neles só se utilizavam câmeras paradas. Tudo isso contradizia a teoria de Goebbels de que os filmes devem conter apenas entretenimento. O Ministro tratou de “congelar” Leni. Nos filmes históricos que se seguiram, o intuito era estabelecer um paralelo com o tempo presente. Hitler era comparado com Frederico o Grande, Bismarck e Schiller.


Estamos agora em 1939, começa a guerra. Goebbels reconhecia o poder da música na propaganda. Como diria Norbert Schultze, compositor de Lili Marlene, a versão mais curta é mais efetiva. Foi ele que escreveu uma canção para os pilotos alemães que iriam lutar nos céus da Inglaterra. Noutro filme, Soldados do Amanhã, um clássico da propaganda nazista contra os britânicos, Goebbels nunca tentou mudar a visão alemã a respeito de nada, seu segredo estava em reforçar preconceitos de um modo que divertisse as pessoas. E a visão alemã era de que a classe alta inglesa era decadente e afeminada. (imagens acima e ao lado, parte importante do culto a personalidade, as aparições públicas eram momentos de consolidação do poder)


Hitler não concordou com todas as teorias de Goebbels sobre a propaganda. Porém Leni Riefenstahl acaba sendo marginalizada a partir do começo da guerra – existe uma hipótese de que ela não acreditava que a coisa iria tão longe. Outros diretores tomaram seu lugar a serviço do regime, Veit Harlan, Carl Froelich, Gerhard Ritter, Gustav Ucicky e Geza von Bolvary (10).


A divergência em relação à Goebbels ficou evidente quando Hitler pediu um filme sobre os judeus. O Judeu Eterno (1940) foi um fracasso de bilheteria, ninguém agüentou ver ratos por toda a tela e muitas pessoas desmaiaram na platéia. Em 1940 Goebbels produziu seu próprio filme anti-semita de acordo com suas teorias. Chamou Kristina Söderbaum, a Marilyn Monroe da época. Segundo ela mesma, eles queriam uma mulher loira, não muito inteligente, agradável e ariana. O filme, dirigido por Veit Harlan, se chamou Judeu Süss. (imagem ao lado, o famoso Portão de Brandemburgo, em Berlim. Cartão postal da cidade, até 1989 só poderíamos vê-lo parcialmente, pois a nossa frente erguia-se o muro de Berlim)


Tratava-se de um drama histórico sobre um judeu que se infiltra na sociedade aristocrática do século dezoito em Wurtemberg. Através de um ardil ele consegue colocar na prisão o marido da mulher ariana perfeita que ele quer seduzir. Ela ouve os gritos do marido, sendo torturado, até que concorde em se submeter. No final, o judeu é preso e executado. O filme foi um sucesso, pesquisas feitas pelos nazistas mostraram que quase todos faziam uma conexão entre a Wurtemberg do século 18 e a Alemanha do século 20. Goebbels conseguiu fazer um filme que era bem aceito pelo público e ao mesmo tempo justificava a remoção dos judeus de suas casas.

Em 1943 Goebbels percebeu que nem a propaganda convenceria os alemães de que estavam realmente vencendo a guerra. Um filme escapista foi produzido, O Barão de Münchausen, repleto de haréns e frutas exóticas. Tudo estava em ruínas e as pessoas continuavam fazendo filas para ver filmes que criavam um mundo bonito e elegante.

Em 1944, Goebbels se concentrou no filme que considerava seu maior legado. Um drama histórico sobre a heróica resistência dos alemães em inferioridade numérica contra o exército de Napoleão em Kolberg – também dirigido por Veit Harlan. O Ministro chegou a desviar cem mil soldados da linha de frente para atuarem como figurantes. O que Goebbels escondia dos alemães é que, naquela altura da guerra, a cidade real já havia caído nas mãos do exército soviético. Kristina Söderbaum fazia a moça do vilarejo. No diálogo final vemos a tentativa de dar dignidade à derrota alemã iminente. Kristina se junta a um senhor que vem confortá-la: ela diz, “Schill saiu de lá.” Então, a resposta: “Sim, você deu tudo de si Maria. Mas não foi em vão. Morte e vitória estão interligadas. É assim. A grandeza só nasce da dor” (11).


Goebbels parecia considerar-se um personagem perfeito e relevante da história alemã. Projetava-se num ator imaginário que viria representá-lo no futuro - num filme histórico. Dias antes do final da guerra, assistindo Kolberg em companhia de alguns oficiais, dirige-se a eles dizendo…


“Cavalheiros, vocês não querem fazer parte desse filme? Serem revividos daqui a cem anos? Posso assegurar-lhes que será um filme belo e edificante, e a partir dessa perspectiva é que vale a pena resistir. Resistam e daqui a cem anos o público não irá assobiar e vaiar quando vocês aparecerem na tela”. (12)





"O fundamento da autoridade reside
na popularidade"
 

Adolf Hitler





Leia também Isto é Hollywood!


Notas:

(*) " Propaganda Política nos Estados Unidos" In 4º Poder, série O Poder e a Mídia, TVE, Canal 2, RJ. 13/09/1996. Original BBC.

1. WYKES, Alan. Hitler. Tradução Edmond Jorge. Rio de Janeiro: Renes, 1973. P. 37.

2. __________ . Goebbels. Tradução Edmond Jorge. Rio de Janeiro: Renes, 1975. P. 58.
3. “Goebbels, Mestre da Propaganda” In 4º Poder, série O Poder e a Mídia, TVE, canal 2, RJ. 05/09/1996. Original BBC.
4. KAES, Anton. From Hitler to Heimat. The Return of History as Film. USA: Harvard University Press, 1989. P.63.
5. ELSAESSER, Thomas. Weimar Cinema and After. Germany´s Historical Imaginary. New York: Routledge, 2000. P. 7.
6. “Goebbels, Mestre da Propaganda”. Op. Cit., nota 3.
7. Idem.
8. WYKES, Alan. Op. Cit., nota 2.
9. “Goebbels, Mestre da Propaganda”. Op. Cit., nota 3.
10. ELSAESSER, Thomas. Op. Cit., p. 399
11. “Goebbels, Mestre da Propaganda”. Op. Cit., nota 3.
12. Idem.

1 de nov. de 2009

Isto é Hollywood!


“Se pudermos ter shows
de televisão e filmes que
mostram a excitação e a
importância da vida militar,
eles podem ajudar a gerar
uma atmosfera favorável
para o recrutamento”
(1)

Kenneth Bacon,
porta-voz do Departamento
de Defesa dos Estados Unidos
(Pentágono) durante o
governo Bill Clinton



O cineasta Theo van Gogh (bisneto do irmão de van Gogh) apoiou a invasão do Iraque e teve problemas com os judeus por suas posições em relação ao Holocausto. Em 2004, Mohammed Bouyeri assassinou o cineasta em Amsterdam, na Holanda. Aparentemente, porque ele também nutria inimizades entre os judeus, o motivo foi um filme onde denunciava os maus tratos às mulheres no Islã. Tudo se encaixa, um muçulmano fanático mata um ocidental civilizado (e branco). Seria apenas mais uma manchete de jornal se não escondesse uma questão mais complexa. (imagem acima, grafite comum em casas de palestinos em Hebron, na Cisjordânia, 2002; abaixo, à direita, cataz do pusilânime O Judeu Eterno, filme produzido por Hitler para denegrir a imagem dos judeus; à esquerda, em seguinda, cartaz de O Judeu Süss, filme anti-semita patrocinado por Goebbels; logo a seguir, à direita e também no final do artigo, imagem de árabe em Aladin, desenho animado produzido por Walt Disney, 1992)

Jack Shaheen nos lembra que tudo em nossa vida começa com a repetição. Quando estamos estudando, até que possamos responder a tabuada sem pensar. Para decorar o alfabeto, datas históricas e fórmulas matemáticas. Poderíamos somar mais exemplos, como o condicionamento pela repetição que nos faz utilizar talheres nas refeições. Repetimos orações, repetimos nossa fala quando não somos compreendidos. Repetimos, repetimos, repetimos, repetimos, repetimos, repetimos, repetimos, repetimos. Há muito tempo que os brasileiros repetem que são brancos, que não vivemos num país racista. Estamos, aqui no Brasil, começando a repetir a idéia de que pobre e bandido são a mesma coisa! (Uma rápida olhada no Congresso Nacional seria suficiente para provar o contrário). Josef Goebbels, o Ministro da Propaganda de Hitler, disse certa vez: “Minta, minta que alguma coisa fica”. Todos os políticos e caluniadores em geral sabem disso, uma mentira repetida milhares de vezes acaba virando uma verdade. Aliás, Goebbels ajudou muito a disseminar a idéia de que o problema maior da Alemanha eram os judeus.

Ele não inventou isso, apenas reforçou um sentimento xenofóbico presente entre os alemães. Deu no que deu. Atualmente, é o governo de Israel que repete a idéia de que os palestinos nunca têm razão quando reclamam ou atacam aquele país. Aqui e ali, alguns tentam repetir a idéia de que o Holocausto não aconteceu. Aconteceu! É um fato! E agora acontece com os Palestinos. É um fato! Onde, então, encontrar uma informação correta sobre os fatos? Na Mídia? Faz tempo que aqueles que deveriam informar estão mais preocupados em prender o público com pílulas de notícias/bobagens até que venha o próximo intervalo – o que parece importar é o dinheiro do patrocinador. Aquilo que se chama comumente de consciência crítica deixa cada vez mais de ser vista como um elemento básico do ser humano, algo que o diferencia das baratas... Cada vez mais, o que parecem repetir é: sejam baratas, esse é que é o certo, o que está na última moda! Nada de reflexão, apenas repetição!

De acordo com Shaheen, por mais de cem anos Hollywood utiliza a repetição como instrumento de aprendizagem-doutrinação das platéias mundo afora. Ele prova isso, é um fato! Shaheen se refere especificamente a como os árabes são retratados por essa parte (hegemônica) da indústria norte-americana do cinema. A difamação é sistemática, os estereótipos e os clichês são tão abundantes que contaminam até as pessoas honestas e as políticas públicas norte-americanas. Essa capacidade de desumanizar um povo, já vista na Alemanha de Hitler, parece não incomodar ninguém, ocupados que estão a... entreter-se. Sim! Cinema é entretenimento...

No Brasil, cuja indústria cinematográfica é sistematicamente sufocada, nem temos muita chance de fazer isso. No caso dos pobres no Brasil, nós, os espectadores, os entregamos ao sadismo pedante dos noticiários de uma tv que não esconde os interesses financeiros e políticos que fazem mais esse crime compensar. Existem alguns filmes brasileiros que mostram a pobreza. Que problematizam a pobreza e mostram (para quem ainda tiver neurônios funcionando) o que está por trás da desumanização do pobre/negro. Muitos não gostam desse tipo de filme, acreditam que denigre a imagem de nosso país. Mas, o que é um país? O que faz de nós um país? Porque incomoda tanto que tenhamos coragem de mostrar nossas entranhas? (imagem abaixo, grafite no muro que Israel está construíndo em torno dos palestinos na Cisjordânia; terra palestina que o Estado judeu invadiu há décadas e de lá não saiu )

O cinema italiano do pós-guerra mostrou muito das mazelas sociais daquele país. Desemprego, déficit habitacional, corrupção, banditismo, machismo, ausência de políticas públicas para os idosos e para os jovens... Em filmes como Vítimas da Tormenta (Sciuscià, direção Vittorio De Sica, 1946), Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, De Sica, 1948), Milagre em Milão (Miracolo a Milano, De Sica, 1950), Umberto D (De Sica, 1952), A Terra Treme (La Terra Trema - Episodio del Mare, direção Luchino Visconti, 1948), Rocco e Seus Irmãos (Rocco e i Suoi Fratelli, Visconti, 1960). Outros poderiam ser citados, o que importa é que aquele país contava com uma ampla cultura cinematográfica na população, que se enxergava na tela.

Outra atitude possível seria falar apenas dos outros. Se você puder manipular a imagem dos outros e ainda por cima transformar tudo em... entretenimento, melhor ainda! Aparentemente, é isso que uma boa parte do cinema de entretenimento norte-americano decidiu fazer. O árabe, explica Shaheen, foi construído como o “outro”, aquele que os norte-americanos devem usar como modelo para marcar sua diferença. Todo o problema é que essa diferença foi construída artificialmente em torno de estereótipos e clichês que não correspondem à realidade.

“(...) Visto através das lentes distorcidas de Holllywood, os árabes parecem diferentes e ameaçadores. Projetado junto com linhas raciais e religiosas, os estereótipos estão profundamente impregnados no cinema [norte-]americano. De 1896 até hoje, os cineastas acusaram coletivamente todos os árabes como inimigos públicos nº 1 – brutais, cruéis, fanáticos religiosos incivilizados e ‘outros’ culturais loucos por dinheiro propensos a aterrorizar ocidentais civilizados, especialmente cristãos e judeus. Muito aconteceu desde 1896 – o sufrágio das mulheres, a Grande Depressão, o movimento por direitos civis [nos Estados Unidos], duas guerras mundiais, as guerras da Coréia, do Vietnã e do Golfo, e o colapso da União Soviética. Durante tudo isso, a caricatura do árabe em Hollywood rondou a tela prateada. Ele está lá – repulsivo e não representado como sempre.

O que é um árabe? Em incontáveis filmes, Hollywood responde: árabes são assassinos cruéis, estupradores sujos, fanáticos religiosos, milionários do petróleo estúpidos, e que maltratam mulheres. ‘Eles [os árabes] todos se parecem para mim’, ironiza a heroína [norte-]americana no filme The Sheik Steps Out (direção, Irving Pichel, 1937). ‘Para mim, todos os árabes se parecem’, admite o protagonista em Commandos (direção, Armando Crispino, 1968). Décadas depois, nada mudou. Ironiza o embaixador [norte-]americano em Hostages (direção de Hanro Möhr e Percival Rubens, 1986). ‘Eu não posso diferenciar um [árabe] de outro. Embrulhados naqueles lençóis, todos parecem iguais para mim’. Nos filmes de Hollywood, eles certamente se parecem” (2)


“Por repetição
até os asnos
aprendem”


Provérbio Árabe




Notas:


1. SHAHEEN, Jack G. Reel Bad Arabs. How Hollywood Vilifies a People. Massachusetts: Olive Branch Press, 2º ed., 2009. P. 22.
2. Idem, p. 8.

3 de out. de 2009

Puritanismo e Ficção Científica (final)


Guerra nas Estrelas


Há Muito Tempo Atrás, Numa Galáxia Muito, Muito Distante...

Mary Henderson contou a estória de Guerra nas Estrelas seguindo a trilha de Joseph Campbell, o renomado estudioso de mitologia. Ele vê na série idealizada por George Lucas a transcrição de um tema mítico (a saga do herói diante da luta do Bem contra o Mal) que ocupa um importante espaço em nossa cultura desde suas origens na Grécia Antiga. Campbell se apóia na teoria dos arquétipos de Carl Jung para sugerir que os temas principais dos mitos são sempre os mesmos, o que muda é a forma como se manifestam a partir do inconsciente humano, em cada cultura ou momento histórico (1). (ao lado da esquerda para a direita, Luke Skywalker, princesa Leia e Han solo. O trio ternura da primeira trilogia)

Falando como uma norte-americana, Henderson sugere que desde o primeiro filme Lucas foi ao âmago de uma sociedade americana que estava perdendo a trilha do caminho iluminado. Mais especificamente, ela se refere aos problemas que os Estados Unidos enfrentavam quando o primeiro filme da série surgiu. O filme tinha como subtítulo Uma Nova Esperança. Problemas na economia do país, a derrota na guerra do Vietnã, a Guerra Fria, e o caso Watergate (que terminou levando o presidente Richard Nixon ao Impeachment, que muito tempo depois levou o Fernando Collor também), estavam afastando o americano dos símbolos mais profundos que forjaram sua cultura. Portanto, uma “nova esperança” era tudo que faltava naquele momento do país (2).

Henderson nos conta que, no meio dessa década desiludida (ela se refere aos americanos e não aos povos do resto do mundo que eles oprimiram), as platéias americanas frequentemente interrompiam o filme para aplaudir. Nessa época, o que surgiu foram os filmes da primeira trilogia: Uma Nova Esperança (1977), O Império Contra-Ataca (1980) e O Retorno de Jedi (1983). O livro em que Henderson conta a estória do herói-santo modelo para os americanos aparece como um resumo dessa trilogia, acompanhando uma grande exposição sobre o tema em 1997, que surge como uma rememoração da trama para aguçar o paladar dos aficionados. A segunda trilogia, que surge a partir de 1999 com A Ameaça Fantasma, seguido de O Ataque dos Clones (2002) e A Vingança dos Sith (2005). A segunda trilogia conta a estória dos personagens antes de chegarem à idade que tem na primeira trilogia. Ou seja, o vilão da primeira trilogia, Darth Vader, aparece ainda criança na segunda trilogia. Resumindo, a segunda trilogia é, do ponto de vista da trama, anterior à primeira. O projeto total pretende produzir uma estória com 9 partes. Portanto, e para encerrar, a segunda trilogia corresponde aos episódios 1, 2 e 3, enquanto a primeira trilogia corresponde ao meio da estória, com os episódios 4, 5 e 6.

Na perspectiva de Mary Henderson e Joseph Campbell, não existe espaço para perversões sexuais. Tudo gira em torno de uma clara oposição entre Bem e Mal, um maniqueísmo que naturalmente sugeria que os americanos deveriam erguer a cabeça porque estariam do lado do Bem. Numa época em que os Estados Unidos haviam assassinado uns dois milhões de civis no Vietnã, e davam mesada para uma série de ditaduras pelo mundo (inclusive no Brasil), é difícil de acreditar que poderiam ser uma encarnação da dinastia do santo-herói Luke Skywalker – na verdade, estavam mais para Darth Vader!

A partir do interesse de George Lucas nos trabalhos de Campbell sobre mitologia, o que ele fez foi transferir os grandes temas da mitologia para uma época situada no futuro e no espaço sideral. Campbell cunhou o termo “mitologia criativa” para designar o processo a partir do qual um artista coleta elementos de sua experiência no mundo e os transforma numa metáfora que revela algo dos mistérios da existência humana. Se a experiência do artista for suficientemente profunda, ele poderá alcançar os valores e a força da mitologia tradicional. Foi a partir dessa perspectiva que Joseph Campbell se interessou em saber como Guerra nas Estrelas capturou certos temas mitológicos (3).

A Pureza do Herói Puro-Puríssimo e Sua Pura Heroína


Do ponto de vista de Alexandre Hougroun, o mundo do herói-santo não é tão heróico assim. O herói não seria tão puro e nem tão heróico. As poucas mulheres das duas trilogias seguiriam o padrão da ficção científica até então: o mínimo de personagens femininos e ausência de sexualidade descontrolada nas telas. Na opinião de Hougron, no fundo o próprio Lucas não estaria interessado em mulheres e sexualidade, já que ele seria mais um dos aficionados de ficção científica que se recusam a abandonar a infância e adentrar o mundo adulto. A mulher e a sexualidade estão ausentes da maior parte das obras de ficção científica. Henderson até mostra que dentre os arquétipos mais recorrentes estão a luta entre homens e mulheres (4). Entretanto, em seu livro ele diz que só vai seguir a trilha de dois deles em sua analise de Guerra nas Estrelas: a saga do herói e a luta do Bem contra o Mal. Muito conveniente!

Hougron já nos falou do quase incesto entre a princesa Leia e Luke Skywalker, mas, assim que ele descobre seu parentesco, Luke sai do caminho. Então Han Solo, seu amigo e protetor, entra em cena como pretendente hesitante (eles estão quase lá na imagem acima, à esquerda). Henderson refere-se ao caso entre Han e Leia como um “casamento místico”. Tudo que ela consegue fazer é buscar nos trovadores do século XII, e nas estórias sobre o casal Tristão e Isolda, as regras do amor cortês. Nas lendas da Idade Média, as forças vitais que são mantidas prisioneiras pelo dragão são simbolizadas pela mulher. Como o herói empreende uma busca de conhecimento e descoberta, ele deverá conhecê-la. Nas palavras de Campbell, a mulher é o ápice da aventura sensual. Entretanto, pelas regras do amor cortês, o herói terá que merecer sua donzela. No curso de Guerra nas Estrelas, vemos Han Solo desempenhar três típicas tarefas para sua princesa: lutar para ficar a seu lado, salvá-la, e trabalhar sob as ordens de seu pai na rebelião. É assim que Han mostra a Leia seu “coração gentil”, e o amor entre eles florescerá (5). Até temos um beijo! Mas Leia continua a imagem da pureza. Este é o sentido induzido e pretendido por George Lucas.

Entretanto, objeta Hougron, existe um problema para o homem ocidental do século XIX: a identidade da pureza. Essa recusa das pulsões e da sexualidade se traduz por um EU incompleto e incomunicável. São essas as bases de um autismo neurótico: medo do outro, medo da mulher, medo de “tudo”. Isso se reproduz gerando defesas. Os monstros da ficção científica surgem daí. A própria psicanálise encontra sua força aqui: aquilo que é evitado tornando-se uma obsessão (6).

Talvez por essa razão a apresentação de uma heroína por Mary Henderson seja tão acanhada. Henderson fala das mulheres norte-americanas indo trabalhar nas fábricas durante a Segunda Guerra como um grande avanço, mas se esquece de falar das mulheres aviadoras que lutaram e morreram nos campos de batalha – um tema insistentemente evitado até hoje pelos militares de vários países. Como se o desempenho das mulheres (para além da cozinha) fizesse os machos sentirem-se menores em seus “clubes do bolinha” dos jogos de guerra. Depois ela aponta a melhora do status feminino na ficção científica da década de ’60 do século 20 em séries como Perdidos no Espaço e Jornada nas Estrelas.

Henderson lembra do Movimento Feminista da década de ’70 e do aniversário de 50 anos da permissão para o voto feminino nos Estados Unidos. Cita também o direito ao aborto a partir de 1972. Então começa a discorrer sobre o aumento da força de trabalho feminina. Para Henderson, Leia é uma heroína dessa época: atitude, atrevimento, foco na carreira e medo de mergulhar numa relação romântica. Henderson termina dizendo que Leia foi a primeira mulher americana no espaço – isso foi em 1977, enquanto em 1963 os soviéticos já haviam mandado Valentina Tereshkova, uma mulher de verdade, para o espaço sideral fora das telas de cinema(7).

Quando Hougron escreveu sua crítica, ele tinha apenas a primeira trilogia. Afirmou então que a trilogia de Guerra nas Estrelas nos prova como a ficção científica é o lugar de uma sexualidade puritana e muito problemática, com uma relação bem estranha no que diz respeito à identidade, já que perturbada por uma dificuldade de visualização das relações com o Outro (a mulher, o pai, a irmã, a mãe). Existe sexualidade, mas acontece de forma indireta, associada à agressividade. Isso acontece na ficção científica em geral, embora seja um elemento pouco presente em Guerra nas Estrelas. Nesta série de filmes, a agressividade está canalizada em torno do combate com espadas de raios laser (8).

O puritanismo de católicos e protestantes estigmatiza obsessivamente o que chama de “natureza degradada do sexo”. Na opinião desses grupos, ao enfatizar os prazeres terrestres, o sexo é visto como um obstáculo entre o homem e Deus. No final da Idade Média, entra em operação uma visão anti-sexual e uma ideologia anti-prazer. Durante a Renascença, rejeita-se a materialidade sensual. Seguem-se restrições nos séculos XVII e XVIII, e na segunda metade do século XIX. No século XX, a Segunda Guerra Mundial traz de volta os valores puritanos de purificação de uma forma sem precedentes, “enfim a máscara caiu”: o racismo e o genocídio (9).

Monstros do Bem


Também é no contexto de uma Grande Guerra, agora envolvendo toda a galáxia, que começa a saga de Guerra nas Estrelas. O épico cinematográfico composto de seis filmes (até agora) é considerado o maior triunfo de bilheteria de todos os tempos. Ao longo dos seus 28 anos de história, e incluindo as franquias de produtos relacionados, Guerra nas Estrelas arrecadou o montante de 20 bilhões de dólares - o que explicaria muita coisa, se levarmos os argumentos de Alexandre Hougron a sério.


Nessa luta do Bem contra o Mal, uma espécie de monstro do Bem se destaca. É Chewbacca (imagem à esquerda), habitante da primeira trilogia. Guerreiro, co-piloto da nave espacial do amigo Han Solo e espécie de seu protetor. Ele é gigante e meio indócil, fala urrando e gemendo, mas parece um cachorro bem grande. Peludo, ele não fica longe da identidade visual de urso ou um inofensivo e subserviente animal doméstico. Algo entre um cão pastor inglês peludo e uma espécie cada vez menos rara de poodle (um lavado!).

Chewbacca, às vezes é chamado por um diminutivo, Chewie, o que denota mais ainda uma relação de proximidade com os humanos, que é típica dos animais domésticos. Portanto, Chewbacca é totalmente diferente dos monstros inimigos, que invariavelmente se assemelham aos insetos ou répteis. Mesmo os monstros que eventualmente ajudam os heróis são relacionados a formas de vida classificadas como inferiores do ponto de vista dos humanos. Esse detalhe marca uma distancia intransponível que geralmente sela o destino dessas criaturas na luta heróica para salvar a galáxia – eles podem eventualmente ter atitudes positivas e até heróicas, contanto que morram.

Temos também Yoda (ao lado), mestre espiritual de Luke Skywalker e Jedi que mostra a Luke os caminhos da Força do universo que ele deve captar. Monstrinho mistura da batráqui e lagarto, Yoda tem toda a esperitualidade que falta à maioria dos seres humanos. Tão importante quanto isso, Nem Yoda nem Chewbacca babam ou possuem tentáculos fálicos. Darth Vader também captou essa força, só que ele é um Jedi "decaido", pois optou pelo lado negro da Força.

George Lucas: Maniqueísta de Hollywood


Mark Rowlands também não se deixa seduzir pelo jeito de bom moço do herói-santo Luke Skywalker, destacando o maniqueísmo da estória de George Lucas (10). Seguindo esta trilha, Lucas adota uma postura em franca oposição à igreja cristã. Historicamente, o maniqueísmo foi uma seita banida pelo cristianismo já nos primeiros tempos. O motivo foi o fato de que para o maniqueísmo existem tanto o Bem quanto o Mal. Já para o cristianismo, o que existe é o Bem. O Mal não passaria de algo que invade o espaço quando o Bem deixa de existir. (imagem ao lado, Mal x Bem. Luke Skywalker tira a máscara do seu vilão/ pai Darth Vader). Essa hipótese cristã foi sistematizada por Platão no século 4 antes de Cristo. Há controvérsias se essa idéia já existia antes de Platão.

O famoso Mito da Caverna, ou Alegoria da Caverna, falava sobre isso. Segundo essa proposição, existe um mundo real e um irreal. O mundo físico é o mundo irreal, enquanto um mundo imaterial é aquele que se considera real “realmente”. Lá, nesse mundo imaterial, estariam as formas das coisas e seres cujo reflexo falho e limitado pode ser visto no mundo físico. Na opinião de Platão a Forma do Bem constitui o ápice da perfeição daquilo que se pode encontrar nesse mundo imaterial, ou mundo das idéias. Nesse universo, o Mal não existe. Portanto, o Mal é considerado irreal, enquanto o Bem é real.

No universo de George Lucas, o Mal é bem real. Darth Vader, o vilão, ainda que escondido sob uma capa e um capacete pretos, é bem real. Sua maldade também é real. É curioso, portanto, que não tenha havido protestos da Igreja Católica contra esta postura da estória de Lucas. Inclusive porque essa temática maniqueísta se adequada perfeitamente ao universo dos temas mitológicos. Temas que remetem às crenças pré-cristãs e indígenas, em oposição às quais o cristianismo se firmou desde seu início – elas constituem aquilo que o cristianismo chama de crenças pagãs. A única diferença é que Rowlands não chamaria Luke Skywalker ou Han Solo de santo-herói no singular, mas no plural – já que essas crenças são naturalmente politeístas.

O cristianismo não pensava em realidades não-físicas. Foi a incorporação da hipótese platônica por Santo Agostinho (534-430 depois de Cristo) que mudou a metafísica cristã. O Mundo das Formas (também conhecido como Mundo das Idéias) de Platão passou a ser entendido como o Paraíso. Nossos corpos físicos teriam que ser purgados de todo Mal para chegar lá. Se antes de Santo Agostinho o que existia para o cristianismo era a ressurreição do corpo físico no Dia do Julgamento, agora temos de nos preocupar com a sobrevivência de uma alma não-física.

Rowland, contrariando a maioria absoluta dos comentadores de Guerra nas Estrelas, prefere discorrer sobre Darth Vader ao invés de Luke Skywalker. Partindo da recusa do pensador alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) em relação às doutrinas cristãs, Rownland mostra que Darth Vader era mais potente que Luke Skywalker, embora não chegasse a ser capaz de se tornar um Super-Homem nietzschiano.

Portanto, nem Luke Skywalker nem Darth Vader chegariam a atingir uma vida produtiva. Luke porque está concentrado numa tentativa suicida de renunciar a seus desejos primitivos, e Darth Vader porque não conseguiu sublimar seus desejos em algo mais grandioso. Parafraseando o que disse Nietzsche a respeito de Napoleão, Darth Vader foi corrompido pelos meios que teve de empregar, e perdeu a nobreza de seu caráter. Entretanto, conclui Rowland, “é difícil ver este conceito [do super-homem de Nietzsche] fazendo incontáveis milhões de dólares para [George] Lucas”.(...)”Ser imperfeito é, claramente, muito mais divertido” (11).

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Notas:

1. HENDERSON, Mary. STAR WARS. The Magic of Myth. New York: Bantam Books, 1997. P. 17.
2. Idem, p. 5-6.
3. Ibidem, p. 12. Recentemente foi lançado no Brasil o dvd O Poder do Mito (Log On Editora Multimídia, 2005), contendo entrevistas feitas em Skywalker, o rancho de George Lucas, entre 1985 e 1986. Joseph Campbell fala sobre mitologia e discute suas interpretações de Guerra nas Estrelas.
4. Ibidem, p.18.
5. Ibidem, p. 65.
6. HOUGRON, Alexandre. Science-Fiction et Société. Paris: Puf, 2000. P. 126.
7. HENDERSON, Mary. Op. Cit., 159.
8. HOUGRON, Alexandre. Op. cit., p. 128.
9. Idem, p. 129.
10. ROWLAND, Mark. SCIFI-SCIFILO. A filosofia explicada pelos filmes de ficção científica. Tradução Edmo Suassuna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005. Capítulo 8. Se você quiser outro livro que misture história da filosofia e Guerra nas Estrelas, mas que NÃO tenta provar que seus heróis-santos são degenerados (sugerindo assim que Hollywood só deseja o Bem de todos nós), então procure STAR WARS e a Filsofia (2005, Madras Editora Ltda), de Kevin S. Decker e Jason T. Eberl.
11. Idem, p. 203. 

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