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Roberto Acioli de Oliveira

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28 de fev. de 2010

Yasujiro Ozu, o Tempo e o Vazio




(...) A obra de Ozu
é daquelas cuja descoberta, mesmo tardia, nos obriga
de certa forma a repensar
o cinema
(...)

Alain Bergala (1)




Entre Olhar e Ver

No cinema clássico, a técnica (a forma como a cena é filmada) precede a ação (aquilo que vemos acontecer na tela). Isto também é verdade para o cinema de Yasujiro Ozu. Por outro lado, ao contrário do cinema tradicional (que chamava de cinema-engodo), Ozu não se preocupa em esconder essa verdade (esconde-se para se dar ao espectador a ilusão de que é o filmado que precede a forma como se está a filmá-lo). Esta é a opinião de Alain Bergala, para quem degustar o cinema de Ozu é privilégio de poucos – Bergala exclui especificamente os críticos franceses que no século passado se contentaram em repetir clichês sobre Ozu definiram sua obra com um desdenhoso: “quem viu um, viu todos” (2). (imagem acima, Também Fomos Felizes)


Bergala enumera uma série de exemplos, que mostram também uma série de procedimentos do cinema tradicional que Ozu rejeitou em seu cinema. Como a panorâmica de acompanhamento (travelling), que subordina o movimento da camera ao do personagem. Ozu repudiou essa prática e, em Eu Nasci, Mas... (Umarete wa mita keredo, 1932), se ele faz um travelling acompanhando os funcionários de um escritório (que bocejam assim que entram no enquadramento da câmera), rompe a seqüência quando volta a um que não havia bocejado quando a câmera o enquadrou. Um efeito cômico fruto dessa precedência da filmagem sobre o filmado.


Noutro exemplo, Bergala deixa evidente o desprezo de Ozu pela questão do foco da imagem. Em Capricho Passageiro (Dekigokoro, 1933), por duas vezes, um personagem se afasta da câmera e fica fora de foco - mas Ozu não se preocupa em fazer a correção. Um exemplo recorrente nos filmes de Ozu são as cenas em que um personagem está sentado e dentro do foco, mas quando ele se levanta a câmera não o acompanha no enquadramento do rosto e parte superior - veremos apenas suas pernas. Apenas num segundo plano, a seguir, a parte superior de seu corpo entra no quadro. Em Capricho Passageiro também encontramos a tendência a romper com o jogo de campo-contracampo quando personagens estão conversando.



Os olhares entre os personagens não se cruzam, estão sempre paralelos e ligeiramente fora da objetiva. A propósito de Pai e Filha (Banshun, 1949), Kiju Yoshida nos dá um exemplo extremo do ele chama de "humor de Ozu" - e que deve muitas vezes ter sido considerado como erro de continuidade. Pai e filha estão no trem entre Kamakura e Tóquio quando ele consegue um lugar. Olha para cima, e para a direita, e pergunta se ela deseja sentar-se. Sorridente, a filha olha para baixo, e também para a direita, respondendo que não. Pela lógica narrativa do cinema tradicional, e já que os dois estão cara a cara, ela deveria estar virada para a esquerda - mas aqui é como se o pai estivesse falando para as costas dela. (imagens acima e ao lado, à direita)


Não há duvida de que os dois estão se olhando, mas com ambos virados para o mesmo lado os espectadores duvidam de seus olhos. Como admitiu o próprio Ozu, ele ignorou padrão do cinema clássico que demanda que haja um cruzamento entre os olhares dos personagens com o do espectador. Mesmo assim, ressalta, a sensação de interlocução existe. Mais uma vez Ozu faz uma crítica aos engodos do cinema. E afirma em 1959, “já faz trinta anos que inventei esse modo de filmar” (3). É necessário notar, por via das dúvidas, que os japoneses raramente se olham diretamente nos olhos (4).(imagem abaixo, Fim de Verão)

O Ponto de Vista Descentrado 




“Os antigos colaboradores
de Ozu têm todos uma anedota
para contar acerca da tirania do tudo pelo enquadramento no trabalho do cineasta (...) (5)






O posicionamento da câmera é uma das primeiras coisas que salta aos olhos nos filmes de Ozu: ela esta sempre próxima ao chão. Seria o ponto de vista de alguém sentado no tatame? Seria o ponto de vista de uma criança? Como sabemos, a câmera baixa de Ozu é capaz de mostrar alguém apenas da cintura para baixo a ter de acompanhar o rosto do personagem enquanto se levanta. Se o cineasta estivesse filmando do ponto de vista de uma criança, outras crianças seriam mostradas de frente. Entretanto não é isto que acontece, Ozu geralmente posiciona a câmera mais baixa ainda do que quando filmava adultos. Portanto, conclui Bergala, não é possível naturalizar o procedimento da câmera baixa como o ponto de vista de um japonês sentado no chão ou como o ponto de vista de uma criança.


No cinema clássico, o espectador está no centro, tudo na tela acontece em função de sua localização e ponto de vista. Se o espectador é excluído de uma troca de olhares entre os personagens, é porque se trata de uma câmera subjetiva. No cinema de Ozu, isso raramente acontece, até porque os personagens raramente se olham. Eles sempre parecem estar focados num ponto difícil de deduzir. É um efeito de “olhar no vazio”, um olhar para o infinito, acentuado pelo paralelismo do olhar dos personagens (imagem abaixo, O Sabor do Chá Verde Sobre o Arroz, Ochazuke no Aji, 1952). Esses olhares-Ozu, diria Bergala, não devem ser costurados pelo espectador – articulados com ele, com sua posição fora da tela. O espectador nunca tem a impressão de que a coisa toda esteja direcionada para ele, mas que funciona através dele.



“(...) O espectador
está em alguma parte
desse vazio, desse nada que
parece olhar os atores, um

pouco abaixo da linha de fuga
dos olhares; é um espectador
flutuante, ligeiramente descentrado,
nunca absorvido pela ficção,
mantido
de certa forma
na periferia” (6)



A identificação com o cinema de Ozu é ainda mais complicada pelo fato de que o cineasta não se afirma como Autor frente ao espectador, permitindo que este se agarre a elementos do “eu” do cineasta que definam “o que ele escolheu para mostrar”. É apenas um estar-aí das coisas e corpos. A enunciação (a técnica que precede a ação, a maneira de olhar que precede o que se vê) não tem origem. Essa pura anterioridade do quadro, em Ozu, não inaugura o sentido. Em função disso, Bergala ressalta a propósito de Ozu que “planos vazios” (que pontuam a passagem de uma seqüência a outra) constituem uma expressão totalmente enganosa (7). Na verdade, Ozu vivia preenchendo os espaços vazios com pequenos objetos nos cantos do plano. “Não colocar nada e deixar o espaço vazio era insuportável para sua composição”. O espaço vazio que de fato existe nesses planos não é a imagem, mas os planos de enunciação – sua anterioridade. A ausência de personagens, associada à presença forte da câmera, do quadro, do “isto aqui”, é o que causa a forte sensação dos “planos vazios”. Como os tempos mortos dos filmes do cineasta italiano Michelangelo Antonioni?

Ozu e o Vazio Pleno 




(...) A forma do
que muda não muda
,
não passa (...)

Gilles Deleuze (8)




Existe uma estratégia de “desenquadramento” na obra de Ozu. Gilles Deleuze resgatou uma hipótese de Pascal Bonitzer em relação ao quadro (e/ou plano cinematográfico) na modernidade para qualificar os planos vazios do cineasta japonês. “Desenquadrar” não significa necessariamente apenas deslocar objetos e corpos para a lateral do quadro, mas também simplesmente “enquadrar o vazio”. Neste sentido, Ozu seria a vanguarda deste cinema moderno, que inclui, por outras formas de desenquadramento (ou, talvez mais especificamente, “descentramento”), Robert Bresson e Carl Theodor Dreyer (9).


Cinema, Bonitzer ressalta, é movimento. Por sua vez, o movimento implica que um filme não é um quadro, que um plano não é um quadro. Entretanto, é a partir da noção de plano, do corte (decupagem) no tempo e no espaço que esta noção supõe, que os cineastas podem se comparar aos pintores. O plano guarda a consciência do cinema. Entretanto, enquadrar implica um corte parcial da realidade (10). Seja como for, no que diz respeito à rubrica pintura e cinema, Deleuze sugeriu que no caso dos planos vazios de Ozu não se pode fazer comparações com naturezas-mortas – Kiju Yoshida viria a defender a mesma idéia (11). (acima, Ervas Flutuantes, 1959; ao lado, O Que Foi Que a Senhora Esqueceu?, 1937)


De acordo com Deleuze, Ozu introduz uma “imagem puramente visual e sonora” do que é uma personagem. Isto serve para definir os enquadramentos de objetos também. Isto faz com que os planos vazios, que Deleuze nomeia claramente de “tempos mortos”, proliferem. Nem mesmo com o desenrolar do filme os tempos mortos adquirem um sentido dramático qualquer. Por outro lado, ao contrário do que revelou Yoshida, Deleuze acreditava que cenas como a da filha em Pai e Filha, que sorri de leve enquanto olha o pai dormindo e depois se vê prestes a chorar (imagem intercalada com a do vaso), não implica a emergência de uma emoção ou irrupção de um desfecho dramático. (imagem ao lado)


Entretanto, Yoshida revelou que nesta cena Ozu utilizou sim elementos do mesmo cinema-engodo (cinema clássico) que ele sempre detestou. A inserção da imagem do vaso entre as tomadas do rosto da filha foi, na conclusão de Yoshida, um momento em que Ozu quebrou as regras do próprio jogo (12). Mas Deleuze percebe que de fato a proposta de Ozu era de um cinema que não se preocupava em estender uma linha entre momentos decisivos (ele evitava o estabelecimento de uma linha narrativa), o que o distanciava do cinema dos japoneses Kenji Mizoguchi e Akira Kurosawa (13). Deleuze admite que entre um espaço ou paisagem vazios e uma natureza-morta existe certa similaridade, mas os dois não são a mesma coisa. Uma natureza-morta não se confunde com uma paisagem. Um espaço vazio vale pela ausência de conteúdo possível, enquanto a natureza-morta se define pela presença e composição de objetos que se envolvem em si mesmos. A distinção entre os planos vazios de Ozu e a natureza-morta é, respectivamente, o mesmo que entre o vazio e o pleno. (imagens abaixo, Os Irmãos da Família Toda, 1941; Pai e Filha)


Entre os olhares da filha naquela noite e o vaso que se intercala entre eles existe um devir, uma passagem, uma mudança. “Mas a forma do que muda não muda, não passa”. A natureza-morta é o tempo, tudo que muda está no tempo, mas o próprio tempo não muda. A imagem do vaso, ou de bicicletas paradas, dirá Deleuze, são as naturezas-mortas de Ozu. Elas têm uma duração, os dez segundos da imagem de um vaso marcam, precisamente, a representação daquilo que permanece através da sucessão dos estados mutantes. “Também uma bicicleta pode durar, quer dizer, representar a forma imutável daquilo que se move, com a condição de permanecer, de ficar imóvel (...)” (14).


A bicicleta, o vaso, as naturezas-mortas, são imagens puras do tempo. “Cada uma é o tempo, cada vez, sob estas ou aquelas condições do que muda no tempo. O tempo é pleno, quer dizer, a forma inalterável preenchida pela mudança”. Antonioni referiu-se a um “horizonte dos acontecimentos”, “(...) um mesmo horizonte que liga o cósmico e o cotidiano, o durável e o mutante, um só e mesmo tempo como forma imutável daquilo que muda” (15). Certas imagens criadas por Ozu põem os sentidos do espectador em contato direto com o tempo e o pensamento. Na opinião de Deleuze, Yasujiro Ozu foi o inventor de signos que tornam sensíveis (visíveis e sonoros) o tempo e o pensamento.
Notas:

1. BERGALA, Alain. O Homem que se Levanta (Tradução Bernardo Carvalho) In PARENTE, André; NAGIB, Lúcia (orgs). Ozu. O Extraordinário Cineasta do Cotidiano. São Paulo: Marco Zero, 1990. P. 97.
2. Idem, p. 97.
3. YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução do Centro de Estudos Japoneses da universidade de São Paulo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. Pp. 124-6.
4. HASUMI, Shiguéhiko. Yasujirô Ozu. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1998. Pp. 151-5.
5. BERGALA, Alain, Op. Cit., p. 101.
6. Idem, p. 105.
7. Ibidem, p. 106.
8. DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A Imagem-Tempo. Tradução Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990. P. 27.
Também se pode encontrar uma parte das observações de Deleuze a respeito da obra de Ozu em PARENTE, André; NAGIB, Lúcia (orgs). Ozu. O Extraordinário Cineasta do Cotidiano. São Paulo: Marco Zero, 1990. Pp. 57-62.
9. DELEUZE, Gilles. Cinema 1 - A Imagem-Movimento. Tradução Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. P. 26.
10. BONITZER, Pascal. Peinture et Cinema. Décadrages. Paris: Cahiers du Cinéma/Éditions de l’Étoile, 1995. Pp. 29-30 e 63.
11. YOSHIDA, Kiju. Op. Cit., p. 155.
12. Idem.
13. DELEUZE, Gilles, 1990. Op. Cit., pp. 24 e 26.
14. Idem, pp. 27-8.
15. Ibidem, p. 28. 


19 de fev. de 2010

Yasujiro Ozu e Seu Japão



Seria um
erro  pensar
em Yasujiro Ozu
como cineasta
tipicamente
japonês





Mitos e Lendas

Ozu começou a trabalhar na época dos filmes mudos e foi um daqueles cineastas que resistiu até o último momento para aderir ao cinema falado. No início de sua carreira, seu trabalho procurava imitar o cinema norte-americano. Ao contrário do que possa parecer, Yasujiro Ozu não fazia nenhuma questão de retratar o Japão. Chegou mesmo a dizer que seu país não era cinematográfico. Como o próprio Ozu afirmou em 1933:


“A vida dos japoneses é absolutamente não-cinematográfica. Por exemplo, ainda que seja para simplesmente adentrar uma casa, é preciso abrir a porta corrediça, sentar-se no vestíbulo, desamarrar os sapatos, e assim por diante. Não há como evitar estagnações. Por isso, o cinema japonês não tem outra saída senão retratar essa vida propensa à estagnação por meio de mudanças que a adaptem à linguagem cinematográfica. A vida no Japão precisa tornar-se muitíssimo mais cinematográfica” (1)


Ozu foi bastante criticado. Mas Kiju Yoshida o defende afirmando que são palavras de alguém que ama o cinema, que acredita que ele pode desprender-se da realidade e isolar-se na tela. Não há fundamento, salienta Yoshida, na crença de que Ozu havia construído um mundo totalmente nipônico na tela. O fato de que ele passou a retratar a família japonesa, mostrando seu dia-a-dia, não aconteceu porque tenha aderido à estética japonesa. Pelo contrário, enfatiza Yoshida, desvinculou-se totalmente dela.

Nevoeiro, Chuva, Sol 

Pensemos na trilogia dos grandes cineastas japoneses, Yasujiro Ozu, Akira Kurosawa ou Kenji Mizoguchi. Assim como não se pode pensar no último sem as imagens de nevoeiro, ou pensar em filmes de Kurosawa sem chuva, em todos os filmes de Ozu faz tempo bom. Este detalhe, Shiguéhiko Hasumi nos ensina, afasta completamente Ozu de uma estética japonesa. Nada é mais anti-japonês do que uma natureza onde a chuva e o frio estejam ausentes (2). É raro que os personagens de Ozu estejam de casaco, a maior parte está de camisa e colarinho aberto. Hasumi jamais viu alguém com cachecol. Mas é verdade, admitiu que em Bom Dia (Ohayô, 1959) os personagens estão de pulôver e casaco.


Por outro lado, é o filme onde talvez mais se comente sobre o tempo bom. Também é verdade que em Viajem a Tóquio (também conhecido como Era uma Vez em Tóquio, Tokyo Monogatari, 1953) Chishu Ryû leve seu guarda-chuva, mesmo que o tempo jamais justifique seu uso. Aliás, Ervas Flutuantes (Ukigusa, 1959) é um dos raros filmes onde chove.


Hasumi reprova totalmente comparações entre a obra de Ozu e o Haiku, ou noções japonesas como sabi, wabi, yûgen ou mono no awaré. A iluminação em seus filmes não convida a este tipo de consciência estética. Não há mundo insondável, ilusório e sutil nas imagens de Ozu, tudo é revelado pela luz de dias ensolarados. Embora Hasumi afirme também que a ambigüidade que se pode encontrar em Ozu não diz respeito ao contorno dos objetos (3), lembramos imediatamente do vaso em Pai e Filha (Banshun, 1949).


Hasumi reprova a abordagem de Donald Richie, crítico norte-americano radicado no Japão, uma tentativa de encontrar em Ozu uma representação da ética cotidiana própria ao Japão - Mono no awaré: expressão de origem clássica, designando a complexidade de uma emoção comprovada numa situação poética ou psicológica (4).

A Dificuldade de Ver 


Todo o
problema em
captar os filmes
de Yasujiro Ozu é
que nossos olhos se
desacostumaram
a olhar




Embora o próprio Hasumi tenha dito que nada é mais anti-japonês do que os filmes de Ozu onde uma natureza em que frio e chuva estejam ausentes, o cineasta é japonês. Ele não é anti-japonês, apenas não é tipicamente japonês! O que Ozu fez foi libertar seus personagens, sem dúvida tipicamente japoneses, no plano sociológico – ao afastá-los da chuva, da sombra, da umidade, da névoa, colocando-os sob luz clara. Agindo assim, esclarece Hasumi, Ozu não se tornou menos japonês.


Esta confusão sobre Ozu ser tipicamente japonês seria fruto do que Hasumi chamou de uma crueldade do cineasta. Tudo nas imagens de Ozu é muito claro e compreensível, esta é paradoxalmente a grande dificuldade imposta por seus filmes. Tudo está na superfície da tela. Impedido de gozar da ilusão de ir além da tela, conclui Hasumi, o olhar se sente obstruído pelas imagens. “Esta é a crueldade de Ozu. Podemos imaginar uma experiência mais penosa do que olhar um filme onde só encontramos imagens?” O resultado, ainda de acordo com Hasumi, é que o olho renunciará a seu direito à imagem – abandonando a própria visão (5). (todas as imagens destes artigo pertencem a Pai e Filha)


Leia também:

Yasujiro Ozu, o Tempo e o Vazio
Yasujiro Ozu e Suas Ironias
Isto é Hollywood!

Notas:

1. YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução do Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. P. 43.
2. HASUMI, Shiguéhiko. Yasujirô Ozu. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1998. P. 187.
3. Idem, p. 188.
4. Ibidem, p. 28.
5. Ibidem, p. 205-6 e 216. 


14 de fev. de 2010

Yasujiro Ozu e Suas Ironias





O cinema de Ozu é antinarrativo   porque consiste numa tentativa
de  copiar  e  repetir 
a
experiência humana
como ela é



 

O Cotidiano: Entre o Tudo e o Nada

Um pai e sua filha moram sozinhos. Ele está preocupado com ela, pois passou o tempo que no Japão se considera a idade ideal para casar. Durante esse tempo, o país estava em guerra e ela pegou uma pneumonia. A filha está sempre sorridente e idolatra o pai e faz tudo para ele. O pai insiste que ela deve se casar, mas a filha parece totalmente desinteressada nisso. Então o pai finge que pretende se casar, sugerindo que não precisará mais da presença dela. A estratégia dá resultado, ao final assistimos o pai e sua filha vestida de noiva deixando a cena. (imagens acima e ao lado, nas vésperas do casamento dela, pai e filha conversam e ela resolve confessar-lhe um sentimento, mas ele já dormiu - ou assim deseja que a filha e nós pensemos)


No Meio do Caminho Tinha um Vaso 

Em  Pai  e  Filha  o
cinema-eng
odo coexiste
com a ironia de Ozu

Pai e Filha
(Banshun, 1949), filme dirigido pelo cineasta japonês Yasujiro Ozu, é considerado um exemplo clássico de sua obra. Reconhecido pelos dramas familiares que levou a tela, os filmes de Ozu são cheios de pais, mães, filhos, filhas, amigos dos filhos, tias, tios, casas familiares, casamentos e enterros. O choque entre o antigo e o moderno também tem lugar em sua filmografia, esbarram-se o tempo todo.


Entretanto, ao contrário do que possa parecer, Pai e Filha não mostra apenas os acertos de Ozu. Kiju Yoshida explica que o filme está cheio de elementos do que Ozu chamava desdenhosamente de cinema-engodo. Por outro lado, isto não é um demérito. Não que Ozu se utilize dos engodos conscientemente, mas sabia que não é tão simples livra-se das armadilhas. Algumas vezes, o cineasta caiu nelas justamente quando pretendia ironizar o cinema-engodo. Uma destas oportunidades foi na famosa cena do vaso, em Pai e Filha – ela concordou em casar, eles viajaram até Kyoto para comemorar e lá passam uma noite juntos no mesmo quarto; coisa rara entre pessoas do mesmo sexo no cinema de Ozu (1).


Começando pelo recurso à montagem nos moldes da narrativa linear e sem ambigüidades. Não que Ozu fosse interessado em ambigüidades, ele apenas procurava não tornar a narrativa facilmente acessível. Ele queria frustrar aqueles que buscam apreender o enredo rápido demais. Seus filmes, em maior ou menor grau, são fragmentários, uma coleção de cenas sem muita conexão entre si. Era neste sentido específico que o cineasta buscava ambigüidade – certas coisas acontecem e não chegamos a entender por que, já que muita coisa some em elipses. Ozu queria frustrar os que não duvidam do que vêem na tela e acreditam que o cinema tudo narra de modo coerente. Coerência que considerara o engodo maior do cinema (2). Uma estratégia anti-narrativa que, na opinião de Ozu, reproduz o caráter anti-narrativo de nossas próprias vidas.

Um Vaso Vazio e o Tudo ou Nada 


“Alguns olham um
filme  de  Ozu e não
vêem nada, enquanto
outros vêem o mu que, 
embora   possa   ser
traduzido por nada,
é na verdade
, tudo”

Marvin Zeman (3)



Na seqüência do vaso, entre os comentários e olhares da filha para o pai que já estava dormindo (ou talvez assim quisesse fazê-la pensar), subitamente somos assaltados pela imagem de um vaso. Seria um vaso que a filha olhou? Qual seria o significado daquele elemento? Deveria necessariamente haver um significado oculto, não? Ozu detestava fazer isso – criar imagens que carregassem um significado simbólico oculto, algo a ser desvendado. Uma metáfora foi o que os espectadores procuraram. Entretanto, Ozu teria colocado aquele vaso ali por um motivo mais mundano do que estético.


“Quando opera uma grade cultural de interpretação, os olhos não vêem mais. Vamos dar-lhes de volta o direito de ver, e para isso é preciso fixar a tela e passar de uma imagem à outra sem privilegiar nenhuma. Assim nos encontramos no coração mesmo das imagens, que se refletem entre si. Esta experiência é dolorosa. Num filme, o nada não é representado, mas o sujeito olhando que se arrisca a ser nadificado [destruído]. Temos de reconhecer que é à crueldade de Ozu que devemos esse prazer vizinho do sofrimento” (4)


Parte das ironias de Ozu neste filme foi criar uma oscilação entre as representações de pai e filha por um lado, e homem e mulher por outro. De acordo com Kiju Yoshida, os olhares da filha, suas palavras e seu pai deitado junto a ela, teriam deixado no ar a insinuação de incesto. Foi então que Ozu “jogou” aquele vaso no meio daquilo tudo, desviando o pensamento dos espectadores de tal direção. Procedimento este que, por sua vez, era típico do que o cineasta japonês chamava de cinema-engodo. Portanto, definitivamente, aquele vaso tão enigmático nada tem a ver com a estética de Ozu. (imagem ao lado, ao ver a suposta pretendente do pai, a filha muda sua expressão; a estratégia do pai soaria para os espectadores como rejeição entre homem e mulher?)


“Certamente, Ozu se comportava de modo duplamente irônico, ao jogar com os engodos do cinema e ao mesmo tempo violar as regras que sustentavam o universo de sua obra. Ciente do caos do mundo e da realidade e confiante de que a razão do homem é resistir a ele, tentou, embora em vão, encontrar a Ordem. Esse é o sentimento oculto nos filmes que o tornaram peculiar, o que não significa que Ozu deixou-se reduzir a essa Ordem ou às próprias regras que criara” (5)


No dia seguinte à ”noite do vaso”, o pai e seu amigo estão sentados em silêncio em frente a um jardim zen. Se o vaso era obra humana, as pedras do jardim são naturais. E, ao contrário do vaso (que não nos olha), as pedras nos olham. “Defronte às pedras, eles não as viam, mas eram apenas vistos pelos olhares delas”. Ou melhor, o assunto do qual falam (que a filha deveria ter um filho e não uma filha), nada tem a ver com as pedras. Esta cena, Yoshida sugere (6), ainda seria uma tentativa de Ozu para sublimar a hipótese do incesto.

Os Olhares na Noite, Tudo e Nada 


(...) O preço que
as  pessoas  pagam
por não ver e não ter
visto é, precisamente,
o de pensar  e  falar
sobre a imagem”


Shiguéhiko Hasumi (7)




Na opinião de Yoshida, perguntar o que esconde o rosto da filha não faz sentido no universo de Ozu. Os próprios olhares da filha para o pai são transgressões de Ozu em relação a sua própria visão do mundo cinematográfico. Os objetos e paisagens em seus filmes, chaminés, roupas no varal, letreiros, corredores e escadas, tudo isso é ambíguo, não permite a elaboração de um significado claro. Não que Ozu busque a ambigüidade, no sentido de um significado oculto, mas porque ele pretende fugir dos clichês do cinema-engôdo. Os closes do rosto da filha são por demais comprometidos com esse tipo de cinema que ele detestava.


Embora Hasumi tenha sugerido que o diálogo entre filha e pai na manhã do dia seguinte seria suficiente para tirar qualquer suspeita de incesto da mente dos espectadores (8), Yoshida insistiu que Ozu neutralizou a suspeita de incesto através de outra imagem-engodo – o vaso. É como um clichê neutralizado outro. Apenas com o detalhe que o vaso sozinho (alguém até poderia sugerir que simboliza um útero), inserido como plano vazio (tempo morto?), agrega um elemento de profundeza simbólica. Se para olhos ocidentais tal procedimento parece eloqüente e profundo, para Ozu não passa de mais uma evidência de que cinema é engodo.


No cinema de Yasujiro Ozu, as coisas nos olham. Mas o vaso não parece, essa é a opinião de Kuji Yoshida, olhar a filha – nem a nós, os espectadores. Se ele tem como função apenas interromper o close do rosto dela, somos nós que olhamos para o vaso... Vendo nele apenas a beleza de um quadro retratando uma natureza morta. O vaso está em oposição ao travesseiro inflável de Era Uma Vez Em Tóquio (também conhecido por Viagem a Tóquio, Tokyo Monogatari, 1953). O travesseiro é um objeto utilitário, que será guardado e esquecido quando não for mais útil. O vaso é um objeto inútil, mas quando é visto pelos olhos de um apreciador, assume significado de objeto útil, artístico. Assim como o travesseiro, muitas paisagens são representadas em Ozu de modo a converter o útil em inútil.


“(...) Em outras palavras, é o próprio vaso que nos convida a decifrá-lo, desejando que cada espectador encontre nele seu próprio significado. Por conseguinte, apesar de Ozu jamais descuidar do significado ambíguo das imagens, é inevitável reconhecer, nesse caso, que a tomada do vaso constitui uma extrema violação das regras de seu próprio jogo” (9)


O vaso resgata a imagem da filha enquanto ela fala sozinha... “Sabe, pai... eu... estava com muita raiva de você...”- no dvd lançado no Brasil, a frase é um tanto diferente da que transcrevi acima, direto do livro de Yoshida: “Pai... mesmo no seu caso eu achei a idéia detestável”; eles estavam comentando sobre o casamento do amigo do pai. Mas o pai já está dormindo, ou pretende que ela pense assim. A imagem do vaso surge. O sorriso dela desaparece de repente, transformando-se em expressão de abandono. Aquele vaso, Yoshida insiste, é capaz de suspender o pensamento do espectador e o tempo da ação. Embora, no final, Yoshida pareça elogiar a inserção do vaso, o que ele elogia na atitude de Ozu foi a ousadia deste, que, apesar de suas preferências estéticas e sua crítica ao cinema-engodo, é capaz de se deixar patinar entre aquilo que acredita e aquilo que abomina no cinema – convicto de que o caos na raiz do mundo mostra sua cara quando o cineasta, ao supor afastar-se do cinema-engodo, está mergulhando nele.


“O vaso que rouba por alguns instantes a atenção do espectador nada mais é que outra existência a ser observada, e nada significa em si. A efemeridade desse intervalo de vazio [mu] libera nossa imaginação e nos transporta a todo um horizonte de significações. Ao mesmo tempo provoca em nós um estado de incerteza permanente, que nos faz recordar que o desconhecido da vida é o que a torna valiosa. E é isso o que vislumbramos, cheios de prazer, ao fixarmos atentamente nosso olhar na tela que flutua na escuridão do cinema. Na imagem do vaso envolto em luar, Ozu presentificou de modo esplêndido a alegria de ver cinema, e, talvez, por temor ao caos que provocara, jamais externou outra vez uma ironia perigosa como a do quarto em Kyoto” (10)


Leia também: 

Yasujiro Ozu e a Dissolução da Família
Yasujiro Ozu, o Tempo e o Vazio
Isto é Hollywood!Isto é Entretenimento!
Puritanismo e Ficção Científica (I), (II), (final)
O Passado Nazista do Cinema de Entretenimento

Notas:

1. HASUMI, Shiguéhiko. Yasujirô Ozu. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1998. P. 223.
2. YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução do Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. P. 132.
3. ZEMAN, Marvin. A Arte Zen de Yasujiro Ozu, o Poeta do Cinema Japonês (Tradução Liana Martins do Amaral) In Ozu. O Extraordinário Cineasta do Cotidiano. São Paulo: Marco Zero, 1990. P. 126.
4. HASUMI, Shiguéhiko. Op. Cit., p. 228.
5. YOSHIDA, Kiju. Op. Cit., pp. 152-3.
6. Idem, p. 162.
7. HASUMI, Shiguéhiko. Op. Cit., 221.
8. Idem, p.226.
9. YOSHIDA, Kiju. Op. Cit., p. 155.
10. Idem, p.159. 


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Quadro de Avisos

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