Seria difícil acreditar que uma cultura como a ocidental não teria problemas com a questão das práticas sexuais. Sim, posto que exista uma dificuldade extrema em se discutir sobre sexualidade entre nós. Evidentemente a televisão, o cinema e a internet, nos oferecem cada vez mais sexo explícito. Porém, e este é o ponto, muito sexo (seja ele visto na tela ou praticado) não significa necessariamente maior compreensão em relação à própria sexualidade, e muito menos em relação à sexualidade como elemento de cultura.
Portanto, simplesmente censurar a programação da televisão, da internet ou do cinema, não surtiria efeito neste caso em particular - naturalmente, limites são bem vindos. Não estou sugerindo que a pornografia generalizada em torno da qual vivemos seja natural e sem maiores problemas. Insisto apenas em que reprimir simplesmente poderia redundar em aumento da incidência daquilo que se deseja evitar. Devemos reprimir a pedofilia, mas devemos também aprofundar a discussão a respeito da sexualidade humana. Uma sociedade que não discute o que é a sexualidade, não saberia definir as práticas que elegeu como lícitas, ilícitas, normais, anormais. O que é a sexualidade?
Em antropologia, é famosa a discussão do francês Claude Lévi-Strauss. Em seu livro, As Formas Elementares do Parentesco (1949), mostra como a proibição do incesto é uma chave para entender a formação da cultura humana. Ou seja, um pai não pode manter relações com sua filha, o mesmo serve para a mãe em relação ao filho. Desta forma, na busca de parceiros, as pessoas são forçadas a estabelecer relações com outros grupos familiares. Cresce a partir daí uma rede de alianças e de interdições dos corpos daqueles que se tornam parentes. Porém não é tão simples assim, lembremos do exemplo dos antigos esquimós, que ofereciam suas esposas aos forasteiros como cumprimento de boas vindas. E não seria de bom tom que o forasteiro recusasse; seria de fato um insulto! Outro ponto é que a definição de “família” difere muito entre as sociedades humanas.
Entre nós, temos mãe-pai-filhos. Entretanto, noutras sociedades os papeis podem ser mais complicados, se analisarmos sob nosso ponto de vista. O pai, a mãe, os filhos, os tios, as tias e avós, podem não manter o mesmo tipo de vínculo afetivo e/ou separação sexual que existe entre nós. Nem por isso devemos concluir que eles são pervertidos. Como entre nós, trata-se apenas de outra forma de organização social baseada nas relações sexuais. O ponto comum entre todas elas é a proibição do incesto. Esta proibição é uma regra (portanto denota caráter normativo que indica a existência de uma cultura humana) que possui um caráter universal (da ordem da natureza, pré-social). Conclui Lévi-Strauss que a proibição do incesto é uma regra tanto social quanto pré-social.
Que tipo de orientação sexual (direta ou indireta) os pedófilos receberam de suas famílias? Alguém perguntou? O fato de o Brasil fazer parte da chamada “cultura ocidental” permite concluir que nossa compreensão do papel da sexualidade é idêntica? As sociedades tribais são reconhecidas como “sociedades simples” porque tendem a obedecer apenas a um código de conduta. A Cultura Ocidental engloba muitas sociedades (e muitos códigos), por essa razão é chamada de “sociedade complexa”. Isto significa que aqui existe uma pluralidade de códigos de conduta, além dos hibridismos entre vários códigos. A pergunta então poderia ser: como opera o código que rege a sexualidade entre nós? Existe apenas um código? Qual? Quem decide?
Eis, portanto, a questão principal: a sexualidade é um tabu entre nós. Bancas de jornal abarrotadas de mulheres peladas, milhares de sites pornográficos na internet, sexo praticamente explícito nas novelas da televisão, programas de auditório também na televisão que se especializaram em mostrar aleatoriamente corpos seminus de homens e mulheres - que se submetem a este expediente porque é a condição para divulgarem seus produtos artísticos. É tanto corpo, é tanto erotismo, é tanto sexo explícito que um extraterrestre que aqui chegasse deduziria que esta é uma sociedade onde corpo e sexualidade não seriam problemas. O que é erotismo? O que é pornografia? Qual é sua função social? Quantos pais conseguem substituir essa indústria por diálogo e informação?
Não se discute que muitas crianças pelo Brasil afora sofram abuso sexual sistematicamente. Não se questiona o fato de que é degradante a prática corrente nas estradas brasileiras de venda de meninas de menos de quinze anos para satisfazer favores sexuais de caminhoneiros. Repito que não discordo que essa situação é calamitosa e merece atenção por parte tanto das autoridades quando da sociedade. O que questiono é a incapacidade da sociedade brasileira perceber que reprimir atos considerados bestiais não é o suficiente. O que questiono é a incapacidade da sociedade brasileira perceber que o problema é mais profundo. Portanto, reprimir os desvios e abusos sem discutir porque eles ocorrem é apenas empurrar com a barriga a responsabilidade em relação ao problema. É como acreditar que basta reprimir o tráfico para acabar com o problema das drogas.
Agindo desta forma em relação à pedofilia, a sociedade brasileira se transforma ela própria em pedófila. A esposa que descobre que seu marido abusou de sua filha, e expulsa a filha de casa, demonstra uma incapacidade patológica em lidar com sua sexualidade e seu corpo. A esposa que, no mesmo exemplo, expulsa o marido, é capaz de salvar sua filha. Mas talvez isso não seja suficiente, essa esposa teria também de perguntar a si mesma se sua própria maneira de lidar com sua sexualidade não teria sido um catalisador dessa situação. Claro que eu não esqueci do marido. Vivemos numa sociedade que, além de reprimida sexualmente, é machista. Entretanto, e aqui vai mais uma pergunta, não seria simples demais para um homem esconder sua ignorância (a respeito de como lidar com o sexo feminino) aplicando a força física e agindo como dono do corpo da mulher? Ou melhor, quando se vai discutir o estereótipo do machão como uma máscara que esconde um ignorante sexual? O que é o machismo?
O que é o homossexualismo? Naturalmente, o impulso homossexual também está presente nesse universo da pedofilia. O machismo no Brasil é tão intenso que a pedofilia heterossexual tem muito menos impacto nas manchetes do que quanto se trata de homossexualismo. Um marido tem uma esposa, mas estupra seu filho pequeno habitualmente. Será que basta expulsá-lo de casa? Expulsar quem, o menino ou o pai? Quem decide? Uma mãe que pode ser reprimida sexualmente? E os outros filhos que existem por aí como vítimas potenciais? Será que a falta de discussão na mídia sobre a sexualidade não está assinando uma sentença contra essas crianças? Não esqueçamos, não é só o pai que vai abusar dos filhos e filhas, a mãe também. Mas e aquele pedófilo que abusa de bebês? Como pode alguém sentir atração sexual por um bebê? Afinal, o que é sexualidade? Quais são seus mecanismos?
O que falta não é apenas coibir a pedofilia, mas compreender melhor os mecanismos da sexualidade humana. E também falta dar tanta publicidade a esta discussão quanto se dá à pornografia. Brasileiros e brasileiras tem essa qualidade hipócrita de utilizar pornografia generalizada, erotismo e machismo, como álibis para esconder a ignorância sobre seu próprio corpo. O Brasil finalmente está chegando à conclusão de que o problema da violência urbana e do tráfico de drogas não se resolve apenas com repressão. Falta investir na própria sociedade. Por quanto tempo, e por mais quantos milhares de vítimas vamos ter que esperar para concluir o mesmo quanto à pedofilia. Tanto quanto para a violência urbana ou para as drogas, o remédio para a pedofilia é a informação.
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A proibição do incesto estabelece tanto o ponto a partir do qual a identidade da criança se forma quanto o ato pedófilo. Segundo Patrice Dunaigre, psiquiatra especializado no estudo da pedofilia, a transgressão do incesto está por trás desse fenômeno (1). Como a proibição do incesto foi estabelecida como regra e condição de possibilidade da cultura, o ato pedófilo, que sempre existiu, permaneceu marginal em sociedades como a ocidental. A proibição do incesto estabelece e reforça os laços de parentesco. Desta forma, o prazer sexual deveria ser codificado, para não colocar esse parentesco em risco. Entretanto, além da pedofilia continuar a existir como ato fora da lei e anti-social, acaba presente em rituais - que muitas culturas utilizam justamente para reafirmar a necessidade de excluir tal ato.
Em culturas como a ocidental, pode-se dizer que a mídia trata de manter vivo este comportamento quando, ao noticiar tais eventos, mais desinforma do que informa a respeito desse ato. Tratando a questão como um caso de polícia, invariavelmente caracteriza-se o pedófilo como uma espécie de animal. Silenciando tanto o agressor quanto a vítima, os estereótipos com os quais a mídia trabalha incitam uma histeria em torno do assunto que acaba por impedir um tratamento conseqüente do problema.
Na verdade, aparentemente, a própria sociedade parece preferir que as coisas caminhem nessa direção, já que a espetacularização de um comportamento sexual desviante evita que a questão da sexualidade humana entre na pauta. As pessoas querem enforcar o pedófilo em praça pública, querem se passar por paladinos protetores das crianças indefesas, mas odiariam ter que discutir a própria sexualidade.
A pedofilia é, em princípio, praticada por homens (2). Entretanto, se o elemento chave é a proibição do incesto, nada impede que uma mulher se sinta induzida a assumir comportamento pedófilo. Outro detalhe pouco divulgado é que a vítima precisa ter menos de 13 anos (3) para que seja tipificado como ato pedófilo. Como o incesto é o arquétipo do ato, e ocorre por definição dentro da família, isso determina que a pedofilia também aí surja e se propague.
“O incesto se enquadra no escopo do ato pedófilo, do qual, em última análise é o arquétipo. No entanto, sua execução se recobre de características especiais. O pai incestuoso não sente qualquer atração por crianças em geral, exceto por sua própria criança. O incesto ocorre somente dentro das relações familiares, nunca fora. Os critérios de escolha são restritos às suas próprias crianças, às da esposa ou da companheira. A experiência da vítima é de natureza diferente. É importante notar que tanto meninas como meninos são alvos. E que o adulto transgressor pode ser pai, padrasto, irmão ou tio. Além disso, somente nesse contexto se observam práticas incestuosas da parte de adultos mulheres”. (4)
O pedófilo é uma pessoa que rompeu o elo entre a sexualidade e a legalidade. Este elo determina a dimensão simbólica das relações sexuais. Portanto, a sociedade precisa deter esta pessoa que, “impondo uma sexualidade ilegal, (...) mina totalmente a dimensão simbólica da sexualidade” (5). É neste sentido que a pedofilia é um ato criminoso, pois ameaça um princípio civilizatório fundamental para a sociedade. Resumindo, enquanto efeito colateral da proibição do incesto, a pedofilia constitui uma transgressão que coloca em xeque as regras da sociedade em relação à sexualidade. Por esse motivo, a pedofilia não deve ser reduzida à dimensão do ato em si. Trata-se de um fenômeno mais amplo, que está inserido no limbo em que a sociedade prefere colocar as discussões a respeito da sexualidade.
O problema não está no fato da mídia falar sobre a pedofilia. Ela deve abordar a questão, apenas deveria fazê-lo de maneira mais conseqüente, evitando os estereótipos que mais desinformam do que esclarecem. De fato, ao optarem por utilizar uma linguagem superficial e ligeira, os meios de comunicação de massa tendem a criar uma cortina de fumaça em torno justamente do assunto que desejam dar publicidade – será que desejam mesmo? Agindo desta forma, a mídia desqualifica e infantiliza o público. Neste sentido, a mídia pode acabar como propagadora da pedofilia que pretende ajudar a coibir.
Por exemplo, quando em busca de audiência o jornal enfatiza de alguma forma o caráter bestial desse comportamento sexual, reproduz clichês e estereótipos que, ao mesmo tempo que demonizam o pedófilo, mantém a sociedade ignorante sobre aquilo que realmente importa saber: os mecanismos que desencadeiam tal comportamento. Desta forma, por mais estardalhaço que faça, a mídia acaba silenciando sobre o assunto, o que aprofunda o silêncio imposto pelo próprio pedófilo a suas vítimas. Some-se a isso o fato de que a sociedade não parece sentir-se confortável em discutir temas tabus como o prazer sexual em suas múltiplas formas, manifestações e interdições. Chega-se então ao paradoxo de uma sociedade da informação, mergulhada em pornografia, mas que ao mesmo tempo opta por ignorar as questões que a sexualidade apresenta. Nos termos de Dunaigre...
“No tocante ao pedófilo, não se deve excluir a dimensão penal, mas é essencial que ele não seja reduzido ao ato em si. É preciso se dar a devida atenção aos diferentes aspectos de sua sintomatologia. Esta não pode se restringir ao quadro apresentado pela mídia, que acaba estendendo o silêncio a outros aspectos e termina por contribuir, no contexto social, para o mutismo que circunda a pedofilia. Basta lembrar o silêncio que, até muito recentemente, encobria o assunto. Resta ainda muito a ser feito para entender quem foi tão eficaz em impor tal silêncio”. (6)
Notas:
1. DUNAIGRE, Patrice. O Ato Pedófilo na História da Sexualidade Humana In Inocência em Perigo. Abuso Sexual de Crianças, Pornografia Infantil e Pedofilia na Internet. Tradução Cibele de Souza e Silva e Cláudia Bernadete Kein. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. P. 12.
2. Idem, p. 15.
3. Ibidem.
4. Ibidem, p. 17.
5. Ibidem, p. 20.
6. Ibidem, p. 23.