“Uma escola que não ensina como assistir
à televisão é uma escola que não educa”
Joan Ferres
Belíssima, novela da Rede Globo (2005), colocou na Grécia um pequeno núcleo familiar de brasileiros. Apresentou o personagem de um rapaz que ficava em casa lendo, sem namorada e sem vida social. O namorado da irmã dele (ex-menina de rua no Brasil) comenta sobre esse comportamento com outro homem, uma espécie de “Zorba o grego” (personagem de Tony Ramos), insinuando a possibilidade de homossexualismo. Em tempo, o tal namorado odeia injustiças.
Uma das questões a se discutir é uma aparente necessidade de achar que ninguém é sexualmente inativo. É como se a solidão (ou a privacidade) não pudesse ser colocada no mapa. É preferível assumir um estigma sexual a admitir que a solidão fosse uma opção. Ou uma opção saudável, ou por falta de capacidade do indivíduo, ou por incapacidade da sociedade em socializar seus membros.
É como se fosse parte de uma tendência negar que a solidão, ou o ensimesmamento, seja uma opção - sequer uma opção negativa ou patológica. Não se cogitaria que o rapaz ou qualquer um tenha optado pela solidão porque a sociedade é uma merda? Sempre a culpa é do indivíduo, ele é que é um merda, e por isso é estigmatizado como homossexual, viciado, ladrão, ou outra coisa estranha qualquer.
Não vejo essas novelas colocando na mesa o personagem do outsider – preferem justamente classificá-lo dentro de um desvio sexual. Aliás, a definição de outsider no dicionário Aurélio diz muito sobre o “problema” evidenciado pelo isolamento físico: no turfe, é o cavalo que tem o mínimo de possibilidades de vencer. Aliás, o personagem de Lima Duarte, um jogador inveterado, sempre joga no cavalo perdedor.
Este isolamento define o comportamento daqueles que vão além da limitada capacidade perceptiva do cidadão comum. Eles percebem as armadilhas do sistema (social...) onde a maioria só percebe benefícios. O problema do outsider é que esta capacidade não levaria a uma felicidade maior, já que tudo que percebe entra em choque com as crenças dos outros (bem arraigadas nos modelos que a sociedade lhes incutiu). Como a palavra diz, o outsider está fora do mundo. Geralmente ele próprio percebe isso e não faz esforços para estabelecer contatos com os outros, os “normais”.
Ele percebe que as satisfações cotidianas do “normal” implicam em fazer concessões éticas que não suportaria. Embora, para alguns deles, tornar-se este “ser normal” se mantenha como uma espécie de utopia íntima, uma espécie de “útero bovino” para os bovinos, onde a auto-aceitação caminha paralelamente ao abandono e esquecimento de si mesmo.
Temos aí também o preconceito em relação ao ato da leitura. Ou seja, se você fica em casa lendo, deve ser homossexual, ou deve estar se escondendo. O que você está fazendo escondido? está se drogando ou tendo encontros sexuais reprovados pela sociedade? É como se o isolamento fosse o impensável. Se alguém se esconde, ou não têm vida social, deve ser porque está fazendo alguma coisa sexualmente reprovável. Por que a solidão do rapaz não foi interpretada como ágorafobia? No futebol só tem homem pra lá e pra cá. Suados, fortes, se esmurrando, se beijando, se abraçando, se tocando… Um monte de homens se junta para ver outro monte de homens. Por que gostar de futebol não é considerado tendência homossexual?
A questão não é defender o isolamento físico, mas o direito a momentos de privacidade, de descanso físico e mental. Estigma em relação à privacidade, à auto-reflexão, e também um preconceito contra o próprio ato de ler. Bolas! Por que ficar em casa lendo é esquisito? O que esse personagem da novela era realmente? O que ele é talvez importe menos do que fazer com que copie os comportamentos indicados pelos esteriótipos. Ser considerado “normal” permite que ele seja visível; mas tornar-se imagem garantirá apenas que ele seja mais controlável – não por si mesmo, mas pelo sistema. A solidão talvez seja um imponderável muito grande para a Sociedade de Controle em que vivemos.
Do ponto de vista da Sociedade de Controle, você deve ser levado a desempenhar tarefas que permitam uma vigilância do seu comportamento. Você tem de ser visível em todas as suas atividades. Se ficarmos sozinhos, fechados, solitários, ensimesmados tanto física quanto psicologicamente, a sociedade não consegue estabelecer nossa identidade - portanto não consegue jogar as redes de controle sobre nossa auto-identidade. Daí talvez a necessidade de estipular, mesmo que seja um comportamento considerado patológico, para alguém que esteja se isolando – como quando não sabemos o que esperar de alguém e tomamos uma atitude aleatória só para poder mapear as possibilidades a partir da reação.
Como no caso desse rapaz da novela. Mesmo que o personagem não seja homossexual, a opinião dos outros dois homens já serve como mensagem para os telespectadores: ensimesmamento ou solidão leva ao estigma – eventualmente sexual. Somos empurrados de volta, não ao convívio social, mas a um convívio que permita que sejamos vigiados pela Sociedade de Controle. Não importa nem um pouco se reafirmamos uma masculinidade ou se a partir dessa pressão se assume uma homossexualidade.
O controle do sistema não quer nosso bem, ele só quer saber onde nós vamos ficar. Ele não vai mexer conosco, contanto que não fiquemos no ponto cego onde o sistema não consegue definir quem somos. A vida não é para Viver, é só para você procurar e seguir os esteriótipos e clichês da vez, da hora e da moda, e ser feliz, aí sim, ser feliz!
Torna-se fácil denegrir a solidão nesta sociedade porque entre nós ela já carrega um sinal negativo. Na sociedade contemporânea, onde tudo é cada vez mais exterior e superficial, quando alguém opta por não sair e ler um livro, é como se optasse por não fazer nada! Ficar só, meditando, ou lendo, é sinônimo de perda de tempo ou tempo livre.
Talvez tenhamos aí uma distorção de conceitos como Ação e Pragmatismo. Como se agir fosse não refletir ou pensar, ou como se comportamento pragmático fosse não refletir sobre os desdobramentos das atitudes que se pretende tomar. Deixamos para trás o fato de que adotamos uma postura pragmática em função de certas circunstâncias. Não se devem aplicar, sob pena de diminuição da eficácia, conceitos genéricos e sempre iguais de Pragmatismo ou Ação em qualquer circunstância.
Afinal, voltando à novela, o rapaz foi mandado ao bordel. Lá havia uma prostituta brasileira. Na hora H ele ficou com medo e saiu correndo. Em princípio, a novela sugeriu que era apenas um garoto virgem. Pelo menos a novela deu atenção ao fato de que essa brasileira, e muitas outras, são exemplos do tráfico de escravas brancas – um dos desdobramentos do turismo sexual no Brasil, um de nossos produtos de exportação. Ainda assim, a personagem não foi caracterizada como uma prostituta, mas alguém de coração puro que foi enganada por uma falsa oferta de emprego. Não esqueçamos, é claro que a coisa tem de ser esticada se está dando audiência, ibope.
Momento de ironia: Afinal de contas, os canais de televisão no Brasil não parecem ser uma concessão pública, mas propriedade privada que tem que faturar, tem que dar lucro. Os critérios de informação seriam outros se fosse uma concessão pública de fato.
Quanto tempo para levantar a hipótese de que não é porque o rapaz lê que ele seria homossexual? Se ficar como está, agora que ele arrumou uma mulher, vai parar de ler e se tornar uma pessoa “normal”? Se a Rede Globo for por este caminho a coisa vai ficar ruim – ou, na verdade, continuar ruim. Por quê? Vivemos num país que não lê, mas que de vez enquando são veiculadas na televisão campanhas de incentivo à leitura entre crianças. Aí o garoto assiste novela, fica em casa e não namora. Quando os parentes acharam que estava se tornando homossexual, o mandaram para um bordel. No final, o cara arrumou uma mulher e ficou normal!
Em tempo, o tal namorado da ex-menina de rua e que “salvou” o irmão dela da homossexualidade tinha uma avó, empresária de moda, rica, preconceituosa e com delírio de dominação. É o personagem de Fernanda Montenegro, que, por sua vez hostiliza o irmão, o qual ficava administrando a casa e vendo filmes de cinema o dia todo. Ela critica o irmão, diz que ele é um doente e que se não largar esse negócio de filmes vai acabar num asilo de loucos. Esse irmão, ao contrário do rapaz que está na Grécia, tem uns trejeitos verbais que poderiam ser caracterizados como uma insinuação de homossexualidade.
Infelizmente, até ao final da novela o cinéfilo (se não foi expulso, ou morto, ou internado pela irmã) não citou aquele filme, o Fahrenheit 451. Dirigido por François Truffaut (um cineasta francês que não interessa a quase ninguém, porque a maioria bovina acredita que é só nos Estados Unidos que se faz cinema) e lançado em 1966, o filme apresenta uma sociedade controlada, onde os livros eram proscritos. Num futuro próximo, os bombeiros locais têm por função queimar todo tipo de material impresso, pois foi convencionado que literatura é um propagador da infelicidade. Tudo vai “bem” até que alguém parou para… refletir! Quando vê uma mulher preferir ser queimada com sua vasta biblioteca ao invés de permanecer viva sem ela (atitude que não faz nenhum sentido para a maioria dos brasileiros), um dos bombeiros começa a questionar os motivos de sua tarefa. O título do filme é uma referência à temperatura em que os livros são queimados (o que equivale a 233 graus Celsius – informação para os incendiários de plantão).
Seria engraçado se não fosse trágico, mas, nesta sociedade em que estamos “vivendo”, se você tem o hábito da leitura pode ser considerado homossexual (sendo que estes são considerados doentes e degenerados). Se assistir filmes (que estejam fora do padrão do filme de entretenimento nazista-holliwoodiano) você é um alienado – e um homossexual. Entretanto, se vocês têm delírios de poder, se pretendem dominar o mundo (ou o tráfico de drogas do seu morro ou do seu bairro), se destruírem a vida das pessoas, pisarem nos sentimentos delas, se fizerem tudo pelo dinheiro... Então tudo bem, vocês serão considerados normais. Se vocês fizerem tudo isso, sendo homossexuais ou não, vão achar que vocês são o máximo!