“O Rosto Humano...” (1)
Antonin Artaud, junho de 1947
O rosto humano
é uma força vazia,
um campo de morte.
A velha reivindicação
revolucionária de uma forma
que nunca correspondeu a
seu corpo, que começou
sendo outra coisa que
não um corpo.
Portanto é absurdo
condenar o academicismo
de um pintor
que atualmente
persiste em reproduzir
os traços do rosto humano
tal como são; porque tal
como são eles ainda não
encontraram a forma que
prometem e indicam;
e fazem mais que esboçar
martelando da manhã à noite,
e no meio de dez mil sonhos,
como no cadinho de uma palpitação
passional nunca cansada.
O que significa
que o rosto humano
ainda não encontrou sua face
e que cabe ao pintor
encontrá-la em seu lugar.
O que significa contudo
que o rosto humano
tal como é ainda procura
por si com dois olhos um
nariz uma boca
e duas cavidades
auriculares
que respondem aos buracos
das órbitas como
as quatro aberturas
da câmara mortuária da
morte iminente.
De fato, o rosto humano
carrega uma espécie
de morte perpétua
em seu rosto
que cabe justamente ao pintor
salvar dando-lhe
seus próprios traços.
De fato, por milhares e milhares de anos,
o rosto humano falou
e respirou
e ainda temos a impressão
de que ele não começou a
dizer o que é e o que sabe
e eu não conheço um pintor na
história da arte, de Holbein
a Ingres, que tenha conseguido
fazê-lo falar, esse rosto do homem.
Os retratos de Holbein
ou de Ingres são
muros grossos que não
explicam nada da antiga arquitetura mortal
que apóia os
arco das pálpebras
ou se encaixa
no túnel cilíndrico
das duas cavidades
murais das orelhas.
Apenas van Gogh
soube tirar de uma cabeça
humana um retrato
que fosse o
foguete explosivo
de um coração
palpitante.
O dele.
A cabeça de van Gogh com
um chapéu de feltro
torna nulas e vazias
todas as tentativas na pintura
abstrata que possam ser
feitas depois dele, até o
fim das eternidades.
Porque esse rosto de açougueiro
voraz, projetado como se
disparado de um canhão, sobre
a mais extrema superfície da tela
e que é repentinamente
parada
por um olho vazio,
retornando para dentro,
exaure a totalidade dos
mais especiais segredos do mundo abstrato
no qual a pintura não figurativa
pode ter prazer,
portanto nos
retratos que eu desenhei,
por isso evitei
esquecer o nariz a boca
os olhos as orelhas ou
os cabelos, mas procurei fazer o
rosto que falava comigo me dizer
o segredo
de uma velha
história humana que
tem passado por morta
nas cabeças
de Ingres e Holbein.
Às vezes eu tenho reunido
próximo as cabeças humanas
objetos árvores
ou animais porque
eu ainda não estou certo
dos limites dentro dos quais
o corpo de um
ego humano pode parar.
Eu tenho além disso definitivamente
quebrado com a arte
estilo ou talento em
todos os desenhos
que você verá aqui. Eu quero dizer
que ai daquele que
considerá-los como
obras de arte,
obras de simulação
estética da realidade.
Nenhum deles é
propriamente falando uma
obra.
Todos são esboços,
quero dizer
sondagens ou
investigações
em todas as direções
do acaso, da possibilidade,
sorte ou
do destino.
Eu não procurei
refinar meus traços
ou meus efeitos,
mas manifestar
alguns tipos de
de verdades lineares patentes
cujo valor residiria
também em palavras,
sentenças escritas,
e na expressão gráfica
e perspectiva linear.
Assim que alguns desenhos
são misturas de poemas e
retratos
ou interjeições escritas
e evocações plásticas
de elementos extraídos
de materiais
de formas humanas e animais.
Assim é que
esses desenhos devem ser aceitos
na barbárie e desordem
de sua
expressão gráfica “que jamais
preocupou-se com
a arte” mas com a sinceridade
e espontaneidade
do traço.
Texto do catálogo da exibição
Portraits et Dessins par Antonin Artaud,
Galerie Pierre, Paris, 4-20 de julho de 1947
Antonin Artaud, junho de 1947
O rosto humano
é uma força vazia,
um campo de morte.
A velha reivindicação
revolucionária de uma forma
que nunca correspondeu a
seu corpo, que começou
sendo outra coisa que
não um corpo.
Portanto é absurdo
condenar o academicismo
de um pintor
que atualmente
persiste em reproduzir
os traços do rosto humano
tal como são; porque tal
como são eles ainda não
encontraram a forma que
prometem e indicam;
e fazem mais que esboçar
martelando da manhã à noite,
e no meio de dez mil sonhos,
como no cadinho de uma palpitação
passional nunca cansada.
O que significa
que o rosto humano
ainda não encontrou sua face
e que cabe ao pintor
encontrá-la em seu lugar.
O que significa contudo
que o rosto humano
tal como é ainda procura
por si com dois olhos um
nariz uma boca
e duas cavidades
auriculares
que respondem aos buracos
das órbitas como
as quatro aberturas
da câmara mortuária da
morte iminente.
De fato, o rosto humano
carrega uma espécie
de morte perpétua
em seu rosto
que cabe justamente ao pintor
salvar dando-lhe
seus próprios traços.
De fato, por milhares e milhares de anos,
o rosto humano falou
e respirou
e ainda temos a impressão
de que ele não começou a
dizer o que é e o que sabe
e eu não conheço um pintor na
história da arte, de Holbein
a Ingres, que tenha conseguido
fazê-lo falar, esse rosto do homem.
Os retratos de Holbein
ou de Ingres são
muros grossos que não
explicam nada da antiga arquitetura mortal
que apóia os
arco das pálpebras
ou se encaixa
no túnel cilíndrico
das duas cavidades
murais das orelhas.
Apenas van Gogh
soube tirar de uma cabeça
humana um retrato
que fosse o
foguete explosivo
de um coração
palpitante.
O dele.
A cabeça de van Gogh com
um chapéu de feltro
torna nulas e vazias
todas as tentativas na pintura
abstrata que possam ser
feitas depois dele, até o
fim das eternidades.
Porque esse rosto de açougueiro
voraz, projetado como se
disparado de um canhão, sobre
a mais extrema superfície da tela
e que é repentinamente
parada
por um olho vazio,
retornando para dentro,
exaure a totalidade dos
mais especiais segredos do mundo abstrato
no qual a pintura não figurativa
pode ter prazer,
portanto nos
retratos que eu desenhei,
por isso evitei
esquecer o nariz a boca
os olhos as orelhas ou
os cabelos, mas procurei fazer o
rosto que falava comigo me dizer
o segredo
de uma velha
história humana que
tem passado por morta
nas cabeças
de Ingres e Holbein.
Às vezes eu tenho reunido
próximo as cabeças humanas
objetos árvores
ou animais porque
eu ainda não estou certo
dos limites dentro dos quais
o corpo de um
ego humano pode parar.
Eu tenho além disso definitivamente
quebrado com a arte
estilo ou talento em
todos os desenhos
que você verá aqui. Eu quero dizer
que ai daquele que
considerá-los como
obras de arte,
obras de simulação
estética da realidade.
Nenhum deles é
propriamente falando uma
obra.
Todos são esboços,
quero dizer
sondagens ou
investigações
em todas as direções
do acaso, da possibilidade,
sorte ou
do destino.
Eu não procurei
refinar meus traços
ou meus efeitos,
mas manifestar
alguns tipos de
de verdades lineares patentes
cujo valor residiria
também em palavras,
sentenças escritas,
e na expressão gráfica
e perspectiva linear.
Assim que alguns desenhos
são misturas de poemas e
retratos
ou interjeições escritas
e evocações plásticas
de elementos extraídos
de materiais
de formas humanas e animais.
Assim é que
esses desenhos devem ser aceitos
na barbárie e desordem
de sua
expressão gráfica “que jamais
preocupou-se com
a arte” mas com a sinceridade
e espontaneidade
do traço.
Texto do catálogo da exibição
Portraits et Dessins par Antonin Artaud,
Galerie Pierre, Paris, 4-20 de julho de 1947
Notas:
Leia também:
O Rosto no Cinema (II): Prisão do Olhar?
O Rosto no Cinema (V): Joana, Entre Dreyer e Godard
As imagens, do começo para o final:
Auto-Retrato, 11-05-1946
Auto-Retrato, dezembro de 1947
Auto-Retrato, dezembro de 1947
Auto-Retrato, 17-12-1946
Auto-Retrato, 1915
Antonin Artaud ( à direita) atuando no cinema mudo, cena de A Paixão de Jona d'Arc (La Passion de Jeanne d'Arc, direção Carl Dreyer, 1928)
1. Texto e desenhos em ROWELL, Margit (ed.). Antonin Artaud. Works on Paper. New York: Harry N. Abrams, 1996. Pp. 94-7. Catálogo de exposição.