Sua origem se relaciona com as ilimitadas variações
das máscaras de ursos e monstros, presentes numa variedade
impressionante de formas encontradas por toda a Europa (1)
das máscaras de ursos e monstros, presentes numa variedade
impressionante de formas encontradas por toda a Europa (1)
Peludo Pelado
Referindo-se às metamorfoses entre homem e animal, a mitologia céltica apresenta a saga de alguém que se transformou respectivamente em cervo, javali, águia e salmão, voltando como uma criança para só então, com o tempo, tornar-se homem. Vivendo em cavernas na floresta, com pelos longos e cabelos cobrindo seu corpo inteiro, constitui a típica imagem do “homem silvestre”. Conhecido como metamorfoses de MacCairill, o mito conta a vida de Partholon, único sobrevivente de um grupo de 5 mil pessoas que habitavam a ilha da Irlanda e morreram numa epidemia. Vivendo sozinho durante 22 anos, abrigou-se em cavernas para se proteger dos lobos quando um primo seu (ao qual evitava encontrar) tomou posse do país. A essa altura estava com cabelos longos, unhas compridas e um aspecto acinzentado, decrépito e cansado. Certa manhã se transformou num cervo com um chifre de 60 pontas, recuperando a juventude e alegria de viver. Agora seu pelo era duro e se tornou o líder das manadas. (imagem abaixo, do romanzo di alessandro, manuscrito, sec. XIV)
Ficou decrépito novamente depois que os descendentes de seu primo morreram. Como antes, acordou um dia e agora havia se transformado num javali, recuperando a juventude. Nessa altura, outro humano chega à ilha e deixa seus descendentes. Novamente, o líder dos javalis envelhece e, após três dias de jejum (como acontecia antes das metamorfoses) transforma-se numa águia marinha. Rodou por toda a ilha e certo dia, próximo a um rio, se transformou num salmão. Jovem de novo, foi apanhado e comido pela esposa de um pescador. Abrigado no ventre da mulher, as conversas escuta todas e sabe tudo que acontece. Então nasceu e aprendeu a falar, chamaram-no Tuan, filho de Carell, tornou-se um profeta e mais tarde, com a chegada de São Patrício à Irlanda, foi convertido ao cristianismo (2). (imagem acima, um Wüescht Chläus, Papai Noel Feio, de Urnäsch, Cantão Appenzell, Suíça)
Existem muitas pinturas do século XV, dos carnavais de Nuremberg,
na Alemanha, representando aparições de personagens peludos, ou
cobertos com vegetação, sempre carregando clava ou tronco de árvore
na Alemanha, representando aparições de personagens peludos, ou
cobertos com vegetação, sempre carregando clava ou tronco de árvore
Quase todos os santos selvagens peludos/cabeludos são festejados entre a segunda metade de janeiro e o primeiro dia de fevereiro – entre outros, o eremita Ulphe (lobo) em 31 de janeiro, São João Crisóstomo no dia 20; São Tiago (Santiago?) o Penitente em 26; São João Calibita (do campanário) no dia 15. Enquanto transformado em cervo ele é como uma “floresta que caminha”, transformado em porco o homem está muito mais próximo do impuro – embora alguns sugiram tratar-se de uma simplificação perigosa, o tabu bíblico em torno da carne de porco é recorrente em diversos textos que tratam do assunto. Santo Antônio, festejado em 17 de janeiro, é a oportunidade para que, na ilha mediterrânea da Sardenha, os homens se fantasiem de porco com a ajuda de máscaras articuladas de madeira. (imagem abaixo, Homens Selvagens fantasiados de javali, fotografia Charles Fréger, 2013)
Homem-Flor Britânico
A substituição de chifres por flores poderia fazer do
Homem Carrapicho um ser humano menos selvagem?
Recorrente na Europa continental, o padrão bonito-bom/feio-mal não parece ter nenhuma relação com o Homem Carrapicho (Burry Man). Podemos encontrá-lo um dia antes da feira anual na cidade de Queensferry do Sul, próxima à Edimburgo, na Escócia, ao norte dessa outra ilha que é a Inglaterra – a nordeste da Irlanda. Embora não seja classificado como Homem Selvagem, essa variação britânica do tema é coberta da cabeça aos pés com carrapichos pegajosos de Bardana, coroado com rosas e um buquê em cada mão. Vestido desta forma ele caminha pelos limites da cidade coletando dinheiro pelas casas, guiado por dois auxiliares que sustentam seus braços esticados. Embora geralmente seja recebido por onde quer que vá com uma mensagem de boas vindas, tradicionalmente o Homem Carrapicho se mantém em completo silêncio por toda a duração do ritual, que leva o dia inteiro. A preparação da roupa é muito trabalhosa e tem variado pouco de ano a ano. Primeiramente, milhares de carrapichos são coletados e montados sobre quarenta e dois pequenos tapetes quadrados de papel pardo – o chapéu, um boné de jogador de boliche coberto por uma rede, recebe setenta rosas e uma Dália vermelha. Em seguida, na manhã do desfile, aquele que vai vestir a roupa faz combinações em cima dela, amarra uma bandeira inglesa na cintura e uma máscara de esquiador invertida (a abertura dos olhos para trás da cabeça e furos para os olhos e a boca do outro lado). Então seus auxiliares o cobrem com os tapetes de carrapicho e ajudam a montar os buquês com flores de jardim amarrados com a bandeira inglesa. Finalmente, ele sai para sua ronda após colocar quatro rosas nas costas e quatro na frente (3). (imagem acima, found0bjects.blogspot.com.br [?], Angus Mcdiarmid [?], 2012 [?]; imagem abaixo, Oak Apple Day em Castleton, Derbyshire, fotografia Keith Marshall [?])
Assim como o Homem Carrapicho, o Rei Guirlanda
também parece ser mais um exemplo da articulação entre
os ritos pagãos e o cristianismo na Grã-Bretanha
também parece ser mais um exemplo da articulação entre
os ritos pagãos e o cristianismo na Grã-Bretanha
De acordo com Charles Knightly ainda não existe uma explicação satisfatória para a existência do Homem Carrapicho – desde pelo menos 1740 o costume vem sendo apresentado da mesma forma; não foi possível relacionar este personagem à Jack in the Green, outro personagem envolto por folhagens verdes presente no Festival da Primavera. Alguns sugerem que se trata de uma versão de outro costume, Beating the Bounds (na França do século V era uma procissão religiosa, na Inglaterra do século VIII, precedida por uma cruz ou relíquia, passou a ser uma forma cerimonial de checagem das fronteiras da cidade), enquanto outros acreditam que se trate de uma comemoração do desembarque da rainha Margaret (o que teria gerado o nome da cidade: Queensferry) e cujo marido (rei Malcolm Canmore, 1057-93) teria certa vez se escondidos dos ingleses cobrindo-se com carrapichos. Contudo, tais explicações não levam em consideração que o desfile do Homem Carrapicho já foi relacionado aos pescadores locais, com o objetivo de proteger os cardumes (dois outros portos pesqueiros escoceses mantêm costumes similares). Em 1859 a pesca foi ruim e os pescadores da cidade de Buckie em Banffshire vestiram um dos homens da manutenção de cascos de barcos com uma camisa cheia de carrapichos e o levaram por toda a cidade num carrinho de mão, como uma forma de encanto para multiplicar os arenques – durante a década de 1860 houve costume parecido em Fraserburgh, Aberdeenshire. Contudo, em Queensferry o costume se modificou um pouco, além de trazer sorte para as casas que visitar, parece que seu desfile no dia de Ação de Graças já teve como objetivo agradecer por uma temporada de pesca de sucesso (ao invés de ser cultuado para pedir uma).
“É mais provável que o Homem Carrapicho tenha sido originalmente uma figura pagã – talvez uma representação do deus do mar ou do peixe, responsável pelo aumento dos arenques – e que o costume de desfilar com ele tenha se mantido ‘para dar sorte’ pela comunidade notoriamente supersticiosa. O motivo pelo qual deveria ser coberto de carrapichos, em toda parte claramente uma parte essencial do costume, continua sendo um mistério: não obstante, um comentador sugeriu que seja uma espécie de ‘simpatia mágica’, apresentada na esperança de que o peixe possa ser tão numeroso quanto os carrapichos, e que se prendam as redes tão firmemente quanto os carrapichos ao Homem Carrapicho” (4) (imagem abaixo, strawbear.org.uk)
O Urso de Palha
britânico pode estar relacionado a rituais
similares em lugares tão
longe e tão distantes
entre si como Andorra
e a Alemanha, na
Europa continental
britânico pode estar relacionado a rituais
similares em lugares tão
longe e tão distantes
entre si como Andorra
e a Alemanha, na
Europa continental
Uma ronda também é realizada pelo Rei Guirlanda, levado sobre um cavalo em Castleton, para comemorar a restauração da monarquia (Oak Apple Day), mas é provável que se trate de um rearranjo de ritos pagãos celebrando a chegada do verão. Ao contrário do Homem Carrapicho, o Rei Guirlanda será coberto de flores apenas em parte do corpo e embora também não possa ser considerado como um Homem Selvagem nos moldes, por exemplo, do Tschäggäta, existe uma relação com o mundo natural (pela presença de flores e carrapichos) que talvez suplante o fato de ambos não portarem chifres e feições apavorantes. Visualmente mais próximo do estilo do Homem Selvagem do continente, o personagem que dá nome ao Dia do Urso de Palha parece mais convincente. Desde 1980, o Urso de Palha voltou a aparecer muito mais ao sul do que o Homem Carrapicho e o Rei Guirlanda, em Whittlesey, próximo de Peterborough, Cambridgeshire. Coberto dos pés a cabeça com feixes de palha, ele dança pela cidade coletando dinheiro para a caridade. Até 1909, quando o costumo foi proibido como uma forma de mendicância, o Urso de Palha acompanhava as bruxas do Dia do Arado, mas ele sempre voltava acorrentado durante a noite e passava de casa em casa de quatro, levantam-se quando uma porta abria. Como no caso do Homem Carrapicho e do Rei Guirlanda, suas origens também são obscuras, pode estar ligado a figuras semelhantes encontradas no continente europeu ou derivar dos ursos domesticados que excursionavam pelas cidades inglesas realizando apresentações até o século XX.
Durante muito tempo foi um problema para a Igreja Católica a constatação da sobrevivência de rituais não cristãos (isto é, pagãos) envolvendo máscaras de mulher (usadas por homens), lobo, carneiro e outros animais – uma das maneiras de tentar neutralizá-las foi incorporá-las através de um sincretismo com o cristianismo. Muito longe da Irlanda e da Inglaterra, embora mais próxima da Bulgária, rumando para o sul, a ilha mediterrânea da Sardenha, na costa italiana, apresenta personagens numa das principais festas carnavalescas com máscaras da cidade de Ottana representando touros (boes) (acima, à direita), acompanhados por outros vestidos de pastores (merdules). Espetando, batendo com varas e puxando nos boes, os pastores reúnem forças para mais um ano de labuta ao zombar de sua própria situação enquanto ao mesmo tempo donos e escravos de seus próprios animais (6). Aparentemente, a relação possível entre estes e os elementos irlandeses, ingleses e búlgaros já citados está mais relacionada ao ambiente insular, e/ou a utilização de máscaras, assim como o encontro com a tradição cristã que se expandia.
O Homem Selvagem e seus Outros
Na arte e na literatura da Europa medieval, o urso foi o animal
mais visado, seja como fera domesticada que diverte
as crianças, símbolo de descendência do mundo natural
para reis e guerreiros, ou ainda como personificação do diabo
mais visado, seja como fera domesticada que diverte
as crianças, símbolo de descendência do mundo natural
para reis e guerreiros, ou ainda como personificação do diabo
Sozinho, marcando o ano pelo dia que sai de sua hibernação, ou como animal domesticado acompanhado por um domador, o Urso aparece como semideus dos mitos e lendas de quase todos os povos que o conhecem – descobertas arqueológicas na Europa apontam que os rituais em torno do urso datam de cinquenta mil anos. Está presente na literatura e na arte da Idade Média, nos capitéis, nos brasões, simbolizando o ideal dos cavaleiros, nos manuscritos e nos vitrais. Em muitos contos raptam donzelas que guarda em sua toca, de cuja união nascem os fundadores de linhagens nobres. Claude Gaignebet e Jean-Dominique Lajoux mostram que a etimologia medieval adora reconhecê-lo no nome do rei Arthur. Dentre as várias hipóteses, Edmond Faral em 1969 examinando a hipótese art/artos (urso) e viros (homem), homem-urso. Na Bretanha francesa, departamento de Finisterra, em campo aberto, o Homem Selvagem não está longe: aqui se chamaria Merlin e se refugiaria no campo e na gruta de Arthur; reminiscência do grande rei ou talvez recordação ainda mais remota do urso, art. Embora Faral não chegue a nenhuma conclusão, ao contrario dele Gaignebet e Lajoux acreditam que a lenda deu origem à etimologia, que o homem-urso da tradição indo-europeia esteja armado com uma clava de ferro e que o urso carnavalesco participe do Dia do Arado na Grã-Bretanha, são outros eventos muito anteriores a qualquer justificação etimológica Durante a Idade Média, para os anacoretas e eremitas que viviam nos bosques, o urso era o Diabo. Dentre todas as formas animais das quais o Maligno se disfarça, a pele de urso é a que mais se encontra nos relatos (7).
A lenda do urso sequestrador de mulher que faz dela
mãe de seu filho existe também entre os Aimará e os Quéchua
da cordilheira dos Andes. De aspecto humano, torna-se um
urso-sacristão e pode ser visto em festas como as Diabladas (8)
mãe de seu filho existe também entre os Aimará e os Quéchua
da cordilheira dos Andes. De aspecto humano, torna-se um
urso-sacristão e pode ser visto em festas como as Diabladas (8)
Gaignebet e Lajoux mostraram que ainda no século XIX fábulas populares contavam que debaixo dos pelos e cabelos emaranhados do “homem com a pele de urso”, cortados com tesoura ou a navalha do barbeiro, surgiam, opulentos e radiantes, aquele que soube conservar o vestuário do Diabo Verde, a cor do Príncipe do Mundo. Seu estatuto é ambíguo, duplicidade que se explica facilmente em função das posições que ocupa no calendário. Sua hibernação pode terminar na Páscoa, seu despertar em 2 de fevereiro está sob o signo da ambiguidade: festival de primavera (quando se realizam muitas “danças do urso” com homens disfarçados e mascarados como o animal) ou anúncio de um inverno mais rígido e longo, induzindo os homens a quantificar ansiosamente nessa data suas reservas alimentares. Agitação (rivolgimento) é a noção chave da lenda e das crenças que os preocupam. Espera-se por este dia e o tal se agita, retornando em seus passos ao fugir. Espera-se encontrar um ser peludo, mas ele virou a vestimenta pelo avesso como se faz no carnaval e o que se encontra é um careca. O Homem Selvagem, filho do urso, deixará sua pele de inverno cair para ser substituída pela lanugem da primavera (o que constitui uma natural troca de pelos entre várias espécies de animais além dos ursos), fazendo dele um marcador da passagem das estações. Este ser pertence ao mesmo tempo ao nu (pelo por dentro) e ao felpudo (pelo por fora). Todos os relatos sobre “João do Urso” insistem no aspecto dúplice do herói – que às vezes significa também disfarçado de urso apenas pela metade inferior ou superior. O personagem mascarado (homem-lobo ou cão, homem-urso) de acordo com sua posição no ano resulta de uma transformação que ocorre em datas precisas, seguindo um movimento progressivo que transforma o homem em urso, o felpudo por fora em portador de uma pele virada pelo avesso: do selvagem à cabeça raspada.
“(...) Para a imaginação medieval homem e urso se confundem, e ainda no século XIV o caçador sabe que, apesar de tudo, é violento em relação a um urso monstruoso, porque se trata de um homem reencarnado. Nem se surpreende que este tome a palavra, não mais do que quando Santo Eustáquio e Santo Huberto se surpreenderam quando o cervo que caçavam se revolta e por sua boca fala Jesus a reprovar a fúria deles. A origem dos disfarces animais está toda aí. Não, como muitas vezes se repete, para imitar o animal vestindo dele o chifre ou a pele; ao invés disso: existe um ser cujo nome é talvez o de uma divindade (Kenunnos ou Artio, a deusa Artio de Berna) que aparece sob uma ou outra forma. Mas se um caçador curioso o surpreende no meio da metamorfose e no meio da quaresma ou a metade do Carnaval, ele vê um ser meio homem meio cervo (o cornudo, o bode [?] ou algum centauro) ou meio urso: o homem selvagem” (9) (imagem abaixo, ilustração de Histoire du Noble Valentin et Orson, Lyon, França, 1605; acima, interpretação da lenda de Valentin e Orson de acordo com a inspiração de Pieter Brueghel, o velho, cerca de 1565)
Ou Preto ou Branco
O mito do selvagem peludo atravessou a Idade Média europeia,
sendo também utilizado para representar habitantes de outras terras.
Isso acabou quando o europeu invadiu os outros continentes
sendo também utilizado para representar habitantes de outras terras.
Isso acabou quando o europeu invadiu os outros continentes
Em toda a Europa, frequentemente as máscaras são organizadas em grupos de personagens contrastantes. Oposições não apenas estéticas, com as máscaras “feias” se comportando mal e agressivamente, enquanto seu oposto chega aos extremos de gentileza e afeto. Situada no lado espanhol dos Pirineus, a cidade basca de Ituren apresenta dois personagens durante as festividades do carnaval, o alegre e jovial Yoaldunak (Joaldunak) segue em cortejos de mascarados ao lado do aborrecido e bestial Artza (urso) e seu bando de Homens Selvagens. Em Lötschental, na Suíça, as monstruosas e agressivas máscaras Tschäggäta (imagem abaixo, primeiro da direita, linha superior) contrastam com as atraentes Otschi, enquanto em Urnäsch o elegante Schöni Chläus se opõe ao monstruoso Wüescht Chläus (imagem abaixo, primeira e segunda máscaras a partir da esquerda, linha inferior). Uma oposição entre o Schöneperchten e o Schiachtperchten (Perchten Bonito e Horrível) pode ser encontrada numa variedade de tipos em toda a área cultural do sul da Alemanha, do Lago de Constança até o Tirol, entre a região de Salzburgo e Caríntia Superior até a Eslovênia, onde as máscaras do tipo Perchten são muito difundidas (linha superior, imagem central; linha inferior, primeira a partir da direita). De um modo geral, no carnaval (fasnacht) tirolês, uma oposição marcada polariza os tipos de máscaras Wilder e Schleicher. Se na região alemã o contraste se dá entre tipos humanos bons e maus (tipos animais monstruosos), na área cultural neolatina o contraste frequentemente acontece entre tipos humanos extremamente opostos. Ao norte da Itália, o Friuli apresenta uma oposição entre Bielinis e Brutinis (Bonito e Horrível), o mesmo contraste ocorre nas Dolomitas (os Alpes italianos) e nos carnavais de Schignano, Bagolino e Ponte Caffaro na Lombardia. (imagem a seguir, exemplo da direita) – na Europa, a máscara do Bufão ao mesmo tempo encarna e representa a síntese entre esses dois extremos, assim como a impossibilidade de alcançá-la sem enlouquecer (10).
A representação dos extremos se justifica em função da complexidade dos momentos de transição – o final das colheitas, passagem do verão para a primavera, natal, carnaval, Pentecostes, etc. Como em toda transição, os tempos são críticos naquela hora em que a vida não é mais como, contudo também ainda não é como virá a ser. No universo das máscaras, tudo é possível não porque tudo vale, mas porque os extremos são previsíveis e sua combinação é (ou deveria ser...) um momento de insensatez e loucura. Um vácuo se abre e existe o perigo de regressão ao estado anterior ou uma transformação incompleta que pode comprometer a renovação, a sobrevivência e o crescimento. Por exemplo, as crianças estão ligadas a seus ancestrais através do movimento cíclico entre a vida e a morte (aqui a sucessão das gerações se iguala à passagem das estações do ano), o equilíbrio do cosmos acontece no momento em que o velho morre e o novo nasce. Neste momento, a morte entra em contato direto com a nova geração, estabelecendo uma relação entre as crianças e os ancestrais mortos. Como toda transição este é um momento de crise, quando tudo é feito (daí os muitos e variados rituais) para que os dois mundos se mantenham separados para evitar o caos. Contudo, como acontece há muito tempo no carnaval europeu (o mais significativo evento de máscaras do continente), em algum momento haverá uma demanda pela morte de uma vítima sacrificial, humana ou animal. (imagens abaixo, à esquerda, Charles Fréger, 2013; à direita, Homens Selvagens desfilando em Telfs, Áustria)
Na Roma Antiga, um dos eventos principais do carnaval eram as agoni di Testaccio (antecedentes históricos do carnaval moderno), série de corridas a pé ou a cavalo envolvendo diferentes classes de participantes, onde se destacava uma caçada do urso, do touro e do galo, realizadas na presença do Papa. No século XIII tais caçadas ganharam um significado cristão, embora em Roma (até o século XIX) os criminosos ainda fossem executados no último dia do carnaval (Martedi Grasso, Mardi Gras ou Terça-Feira Gorda), e antes da derradeira mascarada do ano – caso estivessem disponíveis, os judeus da cidade seriam insultados pela multidão. A comunidade judaica era também o bode expiatório da festa, pois era quem pagava por ela ao Senado Romano – a prática foi abolida pelo Papa Pio IX em 1848, mas podemos dizer que um arremedo disso aconteceu quando os nazistas prometeram liberdade aos judeus daquela cidade; naturalmente, não adiantou, foram todos enviados para Auschwitz. No sul da Espanha, o bode expiatório eram os muçulmanos. Em 1960 foi abolido o costume de explodir uma cabeça gigante do Profeta no final da encenação de uma batalha entre cristãos e mouros. Do outro lado da Europa, na Geórgia, a Keyenoba é uma mascarada de carnaval que dramatiza um combate mortal entre o rei e o invasor. Em Castel Tesino, nas Dolomitas do norte da Itália, o centro do carnaval é a encenação da caça, julgamento e execução de Biagio delle Castellare, um senhor feudal do século XIV reconhecido por sua corrupção. Por toda a área cultural europeia o carnaval se mistura com a Quaresma, representado por uma tensão entre a abundância e a abstinência. Na Espanha, França, Itália e Rússia, a vítima sacrificial morta no final do carnaval pode ser uma máscara tipo Homem Selvagem (Alpes), ou Om e Femena dal Bosk (Bomio na Lombardia, Itália), ou Savanel e sua esposa Cavra Barbana (Val di Fiemme, Dolomitas). (imagem abaixo, Homem Selvagem durante desfile em Basel, Suíça - imagem Keystone, 2010?)
“Os tipos Homem Selvagem misturam-se nas variações ilimitadas das máscaras tipo urso ou monstro que aparecem numa variedade impressionante de formas por toda a Europa. Sem dúvida, o padrão ‘Caça do Urso’ é a estrutura narrativa mais disseminada nas mascaradas europeias, dos Pirineus à Romênia. A caça deve ser conduzia pelos homens jovens da aldeia, tornando-se assim parte da demonstração de destreza e habilidade que acompanha a iniciação deles na maioridade. Além disso, o Urso é em si mesmo um símbolo da primavera que se aproxima. Em especial na área cultural francesa, 2 de fevereiro é a data quando se acredita que o urso saia da hibernação para testar o clima em busca de sinais da primavera. Portanto, ‘Caçar o Urso’ pode significar uma metáfora para a intervenção humana na transição das estações, e, ‘matar o Urso’, um gesto de redenção sacrificial. Antes de ser amarrada e morta, se permite que a figura do Urso mascarado – e seus dramáticos equivalentes – perambule selvagem pelas aldeias destruindo, roubando e molestando mulheres, como ocorre com o Tschäggäta de Lötschental na Suíça ou Savanel no Val di Fiemme” (11)
Os Chifres e seus Homens
A cristianização, a urbanização e finalmente a industrialização (e a indústria do turismo) da Europa se apropriaram das festividades populares antigas em torno do solstício de inverno, produzindo uma metamorfose nas manifestações da cultura das máscaras durante aquilo que a partir de então se convencionou chamar de festas de fim de ano. Em vários lugares, desde a Holanda à Polônia, passando por países alpinos em geral como Suíça, Áustria e Alemanha, elementos das antigas tradições foram misturados com as festividades natalinas e são personificados por máscaras diabólicas e terrificantes de Krampus, Perchta (divindade feminina ao mesmo tempo benfeitora e destruidora) e daquela que acompanha o destino humano, a própria Morte “em pessoa” (imagens acima, variações atuais do Homem Selvagem europeu com chifres, fotografados por Charles Fréger, 2013; imagem abaixo, rituais à São Nicolau {Papai Noel} na Eslováquia; as figuras demoníacas se agitam diante da presença do santo enquanto a Morte passa de branco)
Na Inglaterra, poderíamos sugerir que a Dança do Chifre talvez seja uma forma de representação menos evidente ou pitoresca de um Homem Selvagem (imagem abaixo). Mas apenas genericamente, na medida em que mimetiza um animal com chifres. Presente no condado de Staffordshire, para Charles Knightly trata-se não apenas de costume único na Europa, mas talvez seja a mais antiga cerimônia existente na Grã-Bretanha. A celebração se inicia com seis dançarinos em vestes elisabetanas (que ficam guardadas na igreja), cada uma com seu par de chifres de rena, três pares pintados de branco e pontas amarronzadas, e três marrons com pontas douradas. As galhadas são conectadas a cabeças de rena em madeira que ficam apoiadas no tórax do dançarino, de forma a que os chifres sejam sustentados pelos ombros – uma haste sai da parte inferior das cabeças até as mãos do usuário.
Todos seguem em procissão, acompanhados por um Bobo da Corte, um acordeonista, um menino com um triângulo e um homem vestido de mulher (representando Maid Marian), um arqueiro e um mais um homem levando um cavalinho de pau. Subitamente, os chifrudos se dividem em dois grupos e simulam um combate e mais algumas coreografias, que serão repetidas por toda a região até o final do dia. Nos últimos séculos sua motivação passou a ser levantar fundos para a igreja, mas a origem ainda obscura da dança parece ter mais relação com os próprios chifres (pelo menos um deles veio de uma reina que segundo um levantamento científico teria vivido por volta do ano 1000). Portanto, para além da simulação do combate entre homens-renas, ainda não é possível definir qual teria sido a motivação anterior à cristianização em torno desses chifres (13). Ao que parece, a caracterização daquilo que significa ser “selvagem” no folclore europeu se divide entre o verde e a escuridão da mata virgem, mandíbulas aterradoras e a ponta dos chifres.
Todos seguem em procissão, acompanhados por um Bobo da Corte, um acordeonista, um menino com um triângulo e um homem vestido de mulher (representando Maid Marian), um arqueiro e um mais um homem levando um cavalinho de pau. Subitamente, os chifrudos se dividem em dois grupos e simulam um combate e mais algumas coreografias, que serão repetidas por toda a região até o final do dia. Nos últimos séculos sua motivação passou a ser levantar fundos para a igreja, mas a origem ainda obscura da dança parece ter mais relação com os próprios chifres (pelo menos um deles veio de uma reina que segundo um levantamento científico teria vivido por volta do ano 1000). Portanto, para além da simulação do combate entre homens-renas, ainda não é possível definir qual teria sido a motivação anterior à cristianização em torno desses chifres (13). Ao que parece, a caracterização daquilo que significa ser “selvagem” no folclore europeu se divide entre o verde e a escuridão da mata virgem, mandíbulas aterradoras e a ponta dos chifres.
Leia também:
Máscaras: Bali e Java
Máscaras: Papua Nova Guiné e Oceano PacíficoMáscaras: Astecas, Maias e Incas
Máscaras: África Equatorial
Notas:
1. POPPI, Cesare. The Other Within: Masks and Masquerades in Europe. In: MACK, John (ed.). MASKS. The art of Expression. London: The British Museum Press, 1996. P. 221.
2. GAIGNEBET, Claude; LAJOUX, Jean-Dominique. Arte Profana e Religione Popolare nel Medio Evo. Milano: Fabbri Editori, 1986. Pp. 90-104, 113.
3. KNIGHTLY, Charles. The Customs and Ceremonies of Britain. An Encyclopedia of Living Traditions. London: Thames and Hudson Ltd, 1986. Pp. 48, 63-4, 67-8, 159, 211.
4. Idem, p. 64.
5. NUNLEY, John. Rites of Passage. In: NUNLEY, John W.; McCARTY, Cara. MASKS. Faces of Culture. New York: Harry Abrams Incorporated. 1999. Catálogo de exposição. Pp. 72-3, 311. Pp. 72-3, 311.
6. ___________. Festivals of Renewal. In: NUNLEY, J. W.; McCARTY, C. Op. Cit., pp. 131, 134.
7. GAIGNEBET, Claude; LAJOUX, Jean-Dominique. Op. Cit., pp. 79, 80, 83, 236, 237n6.
8. Idem, p. 87.
9. Ibidem, p. 83.
10. POPPI, Cesare. Op. Cit., pp. 194, 196, 201-2.
11. Idem, p. 211.
12. Ibidem, pp. 81, 84, 86-7, 90-1.
13. KNIGHTLY, Charles. Op. Cit., pp. 41-3.