seja qual for o
lado do espelho
em que estivermos
o outro lado será
sempre mais
lado do espelho
em que estivermos
o outro lado será
sempre mais
satisfatório
O Outro Lado do Espelho
Considere o rosto da Górgona Medusa, aquele ser da mitologia grega para quem não se podia olhar o rosto sob pena de virarmos pedra. Será “Medusa” outro nome para “espelho”? Poderia ser, caso sejamos cegados pela imagem de nosso corpo devolvida pelo espelho. Seria o mesmo estranhamento da visão do rosto da Medusa? De acordo com Jean-Pierre Vernant, em A Morte nos Olhos, nosso medo de enfrentar uma alteridade radical apresenta-se sob a forma de uma máscara que aliena o homem de seu próprio rosto, tornando-se irreconhecível para si mesmo. Entre as divindades gregas é a Medusa que encarna essa máscara, sua face monstruosa traduz “a extrema alteridade, o temor apavorante do que é absolutamente outro, o indizível, o impensável, o puro caos” (1).
A visão de uma alteridade radical em nossa imagem refletida no espelho, que no fundo traduz um horror: somos nós retidos, mas ao mesmo tempo é outra coisa, um ser espectral, uma imagem, um duplo de nós que deveria ser (apenas) nossa cópia, mas que tomamos cada vez mais como se fôssemos nós ali naquela casca virtual. Estamos nos entregando à nossa negação, entregando para a morte. Já não importa o que fazemos de nossos corpos, pois já nos largamos aos devaneios do mundo da imagem. Mais visível do que nós mesmos, somos nossa imagem, aquela multidão de duplos! Meu não-eu é agora mais visível do que meu eu.
Os gregos antigos falavam da Medusa referindo-se à alteridade, experiências de um Outro radicalmente diferente. Na falta de um sentido, o humano criará algum, qualquer um, mesmo que não faça sentido – “arrumar” o mundo. Mas podemos afirmar que qualquer sentido é melhor que nenhum? Outros dirão que seu reflexo no espelho não destrói, mas, ao contrário, dá sentido a suas vidas. No final, a maior maldição é essa, não perceber que a falta de sentido talvez não seja um problema, mas a solução. O caos que advém daí é o melhor lugar para construir novos sentidos, ao invés de procurar se adequar àqueles que o mundo impõe? Por outro lado, romper com o sentido que justifica a vida dos outros e construir o seu próprio também é escravizar-se à busca de um sentido. É uma constatação que, ao fecharmos com um sentido, limitamos nossa vida em relação a outros sentidos possíveis.
Seríamos como a lua? Ela não possui brilho próprio, sua face só é visível em função da luz do sol que nela se reflete. Se podemos vê-la, isso só acontece em função do brilho de outro: o sol. Seríamos como o sol? Ele possui luz própria, mas não podemos olhar para ele diretamente (ficaríamos cegos), apenas para as coisas que ele ilumina. Talvez seja esta a maldição do sol/ser, nós só conseguimos nos ver indiretamente, através daquilo que eventualmente se iluminar com nossa presença. (imagem acima, de autoria de Avigdor Arika; ao lado, autoria de Gianguido Bonfanti; abaixo, autoria de Roberto Magalhães)
Até que ponto realmente nos compreendemos através daquilo que vemos de nós fora de nós? Uma viagem de si para si mesmo através de um reflexo fora de nós requer autocontrole, não podemos confundir quem somos com aquilo que é apenas nosso reflexo, mera imagem daquilo que somos. Ou podemos?
Há quem diga que somos ressentidos com a vida e buscamos dar-lhe qualquer sentido a qualquer preço – “arrumar” a vida. Os que buscam sentido estariam perdidos no ressentimento porque a todo custo procuram justificar suas vidas a partir de um sentido que anteceda a si próprio (Deus, a evolução das espécies, etc). Precisamos estar mais atentos à hipótese de que nossas vidas ou, enfim, a vida, não possua sentido algum. Ela apenas existe! Talvez, só talvez, o universo não tenha significado. Nós inventamos significados, geralmente bons para nós, para sobreviver à constatação do nada. Preencher o nada com algo é uma coisa, outra coisa é tentar substituir esse nada como se sua presença não fosse um fato.
Em sua “ação” de construção de significados, o ser ressentido não estaria realmente “agindo”. No sentido nietzschiano do termo, ao criar significados para preencher o nada, o ressentimento age, mas essa é uma ação doente. De acordo com esse ponto de vista, o ressentido parte de um dualismo dialético imaginário entre um eu e um não-eu que ele criou para caracterizar uma suposta falta de sentido, que se opõe ao sentido que ele acredita que existe. Assim, na incapacidade de viver na constatação de sua insignificância (sua falta de sentido), o ressentido inventa significados. Mas estes significados precisam de algo que se oponha para que seu sentido “faça sentido”. Alguns chamaram de “essências” a esses significados que criaram, mas que julgam que estavam aqui antes deles, justificando sua chegada (2).
Entre o significado e o nada, o rosto fica perdido no meio de uma confusão. Ele é forçado a fazer “sentido”, a se encaixar nos sentidos que a cultura estabelece. Mas, afinal, o que pode um rosto? O que pode um corpo?
A Cara do Meu Retrato
Na opinião de William Rubin, no início do século XX foi Pablo Picasso o pintor que de forma mais eficaz conseguiu alargar as possibilidades e limites do retrato. Até essa época, quando se olhava um “retrato” pintado, havia a pressuposição de um paralelismo visual entre a coisa vista e sua imagem. A razão de ser de um retrato consistia em fazer conhecer a aparência física e a personalidade do retratado. Picasso mudou tudo isso, para ele o retrato deveria ser uma transcrição das reações pessoais do artista em relação ao retratado. Dessa forma, o que antes constituía um documento que se pretendia objetivo torna-se francamente subjetivo (3).
“(...)Ele pensa
que um quadro
deve dar o equivalente
pictural da emoção
suscitada pelo
sujeito”
suscitada pelo
sujeito”
Comentário de Marius Zayas,
a respeito do estilo de Picasso, 1910
a respeito do estilo de Picasso, 1910
De acordo com Picasso, o retrato traz uma incerteza em relação à própria noção de identidade. Antes a identidade era fixa, agora está sujeita a mutações. Grande parte dos retratos Picasso pintou de memória, não buscava uma cópia do modelo retratado, mas mostrar como o pintor os “vê”. Picasso não renunciou completamente ao realismo, mas redefiniu sua abrangência. Em alguns casos, trabalhou com o modelo, multiplicando suas poses (Femme Assise (Jaqueline), 27 de novembro de 1960) (imagem acima, à direita). Noutros executa retratos de memória que, segundo Rubin, estão entre seus trabalhos mais realistas (Portrait de Jaqueline, 21 de outubro de 1955) (imagem acima, à esquerda). A partir de 1906, para Picasso a idéia de “semelhança” é outra coisa.
Tampouco podemos confundir com timidez, afirmou Kirk Varnedoe, alguns auto-retratos que tendem a mostrar apenas parte do rosto de Picasso: Auto-Retrato, de (1901) (imagem ao lado) e Picasso et Casagemas (1900, o pintor está em primeiro plano, com a gola do capote escondendo metade do rosto) (imagem acima, à direita). Numa fotografia tirada entre 1901 e 1902, a imagem do artista quase some, Picasso aparece como uma presença fantasmática (4) (imagem abaixo).
Se considerarmos apenas seus auto-retratos “realistas”, não vamos além dos que produziu até os trinta anos, o restante são estudos de seu rosto em desenhos e gravuras de menor importância. Entretanto, se expandirmos o conceito de auto-retrato, encontra-se muitos personagens nos quais Picasso não parou de se projetar: arlequins, mosqueteiros e minotauros. Varnedoe defende a hipótese de que toda a obra dele é autobiográfica.
Esta não seria uma afirmação surpreendente, se admitirmos que cada um de nós é intrinsecamente complexo, constituindo-se a partir da combinação de elementos em conflito, sendo bastante comum a incorporação de aspectos da personalidade alheia (5): nossos parentes, professores, amores, rivais ou até personagens fictícios. As auto-representações polimorfas de Picasso oferecem um inventário de seu mundo.
“O Auto-Retrato
de junho de 1972 foi o último.
Ele projetou nesta máscara as
emoções que não queria guardar
em si mesmo, de forma a poder –
e nós com ele – afrontá-las enquanto representações. Quando Picasso se olhou
no espelho, nesse dia de verão em seus
91 anos, navegava por territórios que
bem poucos dentre nós está preparado,
e onde muito pouca arte foi produzida.
A ponto de partir para uma viagem
da qual nenhum explorador voltou,
ele viu adiante e nos deixou, antes
de fechar a porta, essa última
mensagem cifrada no código da
semelhança física” (6)
de junho de 1972 foi o último.
Ele projetou nesta máscara as
emoções que não queria guardar
em si mesmo, de forma a poder –
e nós com ele – afrontá-las enquanto representações. Quando Picasso se olhou
no espelho, nesse dia de verão em seus
91 anos, navegava por territórios que
bem poucos dentre nós está preparado,
e onde muito pouca arte foi produzida.
A ponto de partir para uma viagem
da qual nenhum explorador voltou,
ele viu adiante e nos deixou, antes
de fechar a porta, essa última
mensagem cifrada no código da
semelhança física” (6)
Notas:
1. VERNANT, Jean-Pierre. A Morte nos Olhos. Figuração do Outro na Grécia Antiga. Ártemis e Gorgó. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2ª ed., 1991. Pp. 12-3. Citado em MORAES, Eliane Robert. O Corpo Impossível. A Decomposição da Figura Humana, de Lautréamont a Bataille. São Paulo: Editora Iluminuras Ltda, 2002. P. 213n18.
2. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Tradução de António M. Magalhães. Porto, Portugal: Rés Editora Ltda. (sem data). Pp. 172 e 183.
3. RUBIN, William. Réflexions sur Picasso et le Portrait In RUBIN, William (org) Picasso et le Portrait. Paris: Flammarion/Réunion des Musées Nationaux, 1997. P. 13. Catálogo de exposição.
4. VARNEDOE, Kirk. Les Autoportraits de Picasso In RUBIN, William (org). Op. Cit., p. 118.
5. Idem, p. 111.
6. Ibidem, p. 175.