Em 1972, Gina Pane criou uma instalação tendo a cor branca como tema, chamava-se O Branco não Existe. Vestida de branco, ela começou a se cortar com uma gilete até que sua roupa estivesse manchada de sangue. Interrompeu a ação para jogar com uma bola de tênis. Então se virou para a platéia e aproximou a gilete do rosto. A tensão explodiu quando cortou as bochechas. A platéia gritava, “não, não, não o rosto, não!“. Gina pretendia tocar na questão da estética pessoal. Para ela, “o rosto é tabu, o centro da estética humana, o único lugar que retém um poder narcisista” (1).
Possivelmente, muitos de nossos problemas não existiriam se fossemos cegos de nascença. Se não soubéssemos, desde sempre, o que existe de tendencioso, preconceituoso e de manipulação da auto-estima no olhar que temos em relação a nossos corpos, talvez (só talvez) fossemos mais... felizes (ou, pelo menos, mais interessados naquilo que em princípio é o que importa: nossa humanidade).
No mundo superficial da imagem que nos rodeia como uma rede gigante, uma “pedagogia da fuga de si mesmo” se apresenta como uma “ética negativa do bem viver”. Uma rede gigante que nos apanha sem que percebamos e, quando damos por nós, estamos tão presos nesse universo de autonegação que nos sentimos incapazes de romper o ciclo vicioso patrocinado pelo mundo das aparências e seus fetiches.
Muitas pessoas que possuem o dom da visão tendem a utilizá-la de forma equivocada. De fato, algumas pessoas não enxergam aquilo que vêem em seus corpos. Por uma ironia do destino, o ponto que centraliza nossa identidade (o rosto) só é visível por nós mesmos através de um espelho. Quando só nos preocupamos em nos ver por fora, curiosamente não conseguimos fazer isso senão com a ajuda de algo que está fora de nós: um espelho.
No distúrbio neurológico chamado prosopagnosia, o indivíduo é incapaz de reconhecer rostos, mesmo de amigos e familiares. Essa é uma patologia rara; menos rara é a que nos faz acreditar que somos aquele corpo-imagem (sem um corpo físico) que vemos no espelho e não aquele corpo físico que é o referente material dele. Resultado: o corpo físico deverá a qualquer custo se adaptar ao corpo-imagem; só que o corpo físico adoece, enquanto o corpo-imagem nada sofre. Nesse contexto, o corpo físico passa a ser o inimigo número um dessa imagem que não tem nenhum compromisso com a realidade.
As palavras são as ferramentas da artista norte-americana Jenny Holzer. Ela costuma inserir frases em outdoors, painéis eletrônicos e até mesmo camisinhas, incitando o público da cidade a refletir sobre si próprio a partir delas. Holzer trabalha o potencial subversivo das palavras, mostrando que nem tudo que vemos fora de nós é nocivo para nosso autoconhecimento. As palavras estão fora de nós, mas se as arrumamos de uma determinada maneira em certas frases, teoricamente elas são capazes de nos levar a refletir uma auto-imagem mais coerente. Além disso, as palavras possuem uma dimensão aural (elas não são apenas visíveis, são audíveis também), o que significa que não estamos presos à visão. Isso é importante na medida em que, além de não conseguirmos mais nos enxergar, também não conseguimos mais nos ouvir. Um de seus trabalhos mais conhecidos ostenta a seguinte frase: “proteja-me do que eu quero”.
Nota:
1. WARR, Tracey; JONES, Amélia. Artist’s Body. London: Phaidon Press Ltd, 2000. P. 121.