Certo dia da década de 40 do século passado, uma polonesa corta seus longos cabelos louros em troca de dinheiro. Quem vai comprar é uma judia cujo cabelo não cresce mais desde que foi libertada de um dos campos de extermínio dos nazistas. Antes de cortar, o barbeiro faz uma longa traça, para que o cabelo saia mais organizado daquela cabeça. Enquanto corta, ele pergunta se o marido sabe o que ela está fazendo. Certamente, a pergunta dele denota o machismo presente na cultura polonesa, e talvez tenha relação também com a preocupação da judia em recompor sua silhueta. Por falar em silhueta, no final da Segunda Guerra Mundial, além das surras e humilhação pública, por toda a Europa as prostitutas, e outras colaboradoras em geral, que se relacionaram com o ocupante alemão, tiveram seus cabelos raspados em praça pública. No caso da polonesa, trata-se da cena de Katyń (direção Andrzej Wajda, 2007). No segundo caso, podemos presenciar tal cena em Mallena (direção Giuseppe Tornatore, 2000).
Um pouco antes disso, a pintora mexicana Frida Kahlo está a construir mais um de seus tantos auto-retratos. Sentada e vestindo terno, segura uma tesoura olha para nós. Seu corte de cabelo é masculino, à sua volta muitas madeixas espalhadas dão testemunho de sua feminilidade esparramada. Frida se representou como homem, o corte de cabelo talvez fale mais alto nessa direção do que a vestimenta masculina. Era fascinada pela androginia, mas desejou também misturar seus traços com os de Diego Rivera. O pintor e muralista mexicano era o amor da vida dela e já no diário de Frida encontra-se o desenho de um rosto dividido em duas metades. O lado esquerdo, ostentando longos cabelos, representa uma mulher. O lado direito, um homem de cabelos curtos (1). Dois episódios num oceano infinito de exemplos que evidenciam uma obsessão em relação aos cabelos. Obsessão que talvez vá além da simples indução ao consumo de cosméticos ou do narcisismo de uma sociedade em crise de valores.
"Olha,
se te amava,
era pelo teu cabelo.
Agora que estás
careca, não
te amo
mais"
Frida Kahlo,
escrito sobre a pauta musical em seu
Auto-Retrato com Cabelo Cortado, 1940
careca, não
te amo
mais"
Frida Kahlo,
escrito sobre a pauta musical em seu
Auto-Retrato com Cabelo Cortado, 1940
Nota:
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1. BERNHEIM, François; KAMMER, Samuel; PEREGO, Elvira. Quelques Notes par... In GASCAR, Pierre. Le Cheveu Essentiellement. Paris: Nathan/Delpire, 1998. P. 102.