“Na obra de
Arcimboldo tudo
é metáfora”
Roland
Barthes (1)
Arcimboldo e a Linguagem da Imagem
Na opinião de Roland Barthes, Arcimboldo trabalha como um operário da língua: com sua imaginação poética, ele não cria significados, mas os combina, os permuta e os desvia. Consideremos O Horticultor (1590) (na imagem acima, aqui anexado a seu reverso), se o discurso comum compara um penteado a um prato, Arcimboldo toma a comparação ao pé da letra, transformando-a em identificação: o chapéu transforma-se em tigela, a tigela em capacete. O prato faz o chapéu, e este faz o homem. As cabeças compostas têm algo de conto de fadas. Arcimboldo, Barthes sugeriu, não pinta propriamente as coisas, mas sua descrição falada. No universo de Arcimboldo, um traço pode sim equivaler a uma letra. É como um dicionário de imagens. À sua maneira, Arcimboldo é um retórico, uma concha vale por uma orelha – é uma metáfora. Um cardume se transforma na Água, onde vivem os peixes – é uma metonímia. O fogo se transforma em cabeça flamejante – é uma alegoria. Enumerar frutos, pêssegos, peras, cerejas, framboesas e espigas para traduzir o Verão – é uma alusão. Repetir o peixe que aqui vale por um nariz, ali é uma boca, é uma antanaclase (repetição de uma palavra fazendo-a mudar de sentido). Evocar uma coisa através de outra cuja forma seja idêntica (um nariz pelo quadril de um coelho) é fazer uma anominação de imagens (2).
Arcimboldo fez brasões,
armas ducais, vitrais, tapeçaria,
decorou orgãos, e chegou a propor
um sistema de notação musical a
cores. Mas só conhecemos suas
cabeças compostas
Nos vinte e cinco anos que Arcimboldo pintou cabeças compostas, forjou mensagens cifradas onde o sentido do conjunto se esconde atrás do olhar que é desviado pelo sentido do detalhe. Inicialmente vejo apenas frutos e animais amontoados, é preciso que me afaste para que outra mensagem surja. Mas a linguagem de Arcimboldo não extrapola o limite: ela não é totalmente incompreensível. Mas encontramos ali outro tipo de metáforas. Ao colocar os dentes de um tubarão substituindo os dentes de uma boca em Água (imagem acima), Arcimboldo não modifica o objeto, apenas o contexto. O pintor também utiliza os sinônimos o tempo todo, narizes, orelhas e barbas são substituídas pelos mais variados elementos. Mas tudo isso pode ser limitado pelo contexto – Vertuno + Rodolfo II -, apenas a imaginação é infinita. Imagens reversíveis como O Horticultor eram moda certa época. Tudo depende da distancia do observador em relação ao quadro. Na opinião de Barthes, ao incluir o olhar do observador na própria estrutura da tela, Arcimboldo passou de uma pintura newtoniana (baseada na fixidez dos objetos reproduzidos), a uma eisensteiniana (onde o deslocamento do observador faz parte do estatuto da obra) (3).
Arcimboldo
já foi considerado
um surrealista antes
de seu tempo (4)
Arcimboldo foi essencialmente um pintor da corte, que trabalhava por comissão e cujas pinturas são alegorias das situações e ocasiões que celebram. Isso realmente ajuda a compreender certos elementos de seu trabalho. Entretanto, Hulten insiste que a obra de Arcimboldo ultrapassa tais eventos puramente racionais do mundo político e acadêmico. Deve existir também algum elemento de ordem inconsciente. Arcimboldo viveu numa época complexa. Um período de transição repleto com guerras religiosas, caos econômico, estruturas sociais em transformação, importantes descobertas e invenções, dogmatismos e as reações contra ele. Nesse mundo, não existiam percursos intelectuais lineares. Numa sociedade que ainda continha traços do mundo medieval, a Renascença já se firmava. Leonardo Da Vinci havia morrido em 1519, Michelangelo em 1564, Ticiano morreria em 1576. O Renascimento italiano foi o momento de exaltação do eu, o período dos príncipes (do Estado e das cidades, da Igreja e da Arte). Na época de Arcimboldo, o mundo europeu redefinia sua identidade (5). (acima e abaixo, Eva e a Maça, com Seu Complemento, 1578)
A carreira de Arcimboldo
em Praga e Viena coincidiu
com a fase de maior influência
intelectual e atração cultural
da corte dos Habsburgos (6)
No centro do mundo medieval estava Deus, o homem e seu eu passariam a estar no centro da concepção renascentista. Arcimboldo veio de Milão, na Itália renascentista, mas seu estilo inconfundível se desenvolveu em Viena e Praga, no círculo intelectual de astrônomos e matemáticos como Johannes Kepler (1571-1630), Nicolau Copérnico (1473-1543) e Tycho Brahe (1546-1601). O pintor disse que o homem não está separado da natureza, é parte dela, comunga dos elementos e do tempo. A natureza está a sua volta, assim como é parte dele também. Uma tomada de posição metafísica desta ordem, afirma Hulten, era revolucionária no século XVI. Vendo as coisas por este prisma, somos lançados noutra direção quanto ao significado simbólico das cabeças compostas. A crença na capacidade do homem explicar os segredos da natureza era exatamente o que o separava dela. Entretanto, o homem não consegue explicar a si mesmo enquanto seu conhecimento o colocava numa posição de observador em relação à natureza. A harmonia com a natureza deveria ser restabelecida, mesmo correndo o risco de que suas tentativas parecem satíricas (7).
Um Homem à Frente de Seu Tempo
Maximiliano II
se interessava por ciências
naturais, não é difícil imaginar
que Arcimboldo o tenha convencido de que as ilustrações científicas são
tão dignas de sua magna atenção
quanto os ideais clássicos
de beleza pura
Hipótese de
Eliška Fučíková (8)
Diferentemente das obras de Hieronymus Bosch, os quadros de Arcimboldo não são baseados em aberrações. Ele não representava em suas telas o extraordinário, senão o extraordinariamente comum nas coisas que estão disponíveis à observação direta. Arcimboldo estava completamente mergulhado no mundo da experiência sensível (9). Entretanto, na opinião de Hulten, quando nos afastamos por alguns instantes do significado alegórico das “cabeças” e nos fixamos na atenção que Arcimboldo dedica a suas flores e peixes, é fácil acreditar que ele mesmo se esquecesse e se entregasse a uma dimensão mítica. Os mitos da Grécia Clássica propõem invenções metafóricas análogas: Dafne transformada em árvore para escapar de Apolo, Zeus transformado em ganso para seduzir Leda. Seja em Arcimboldo ou nos mitos gregos, a essência da poesia é precisa e leve, irracional e inesquecível. Tal relação com o mundo clássico, conclui Hulten, é totalmente diferente da iconografia maneirista. A concepção panteísta do mundo de Arcimboldo, onde todos os seres são tratados com igual atenção e reverência, contrasta com a aridez acadêmica e mecânica do mundo clássico da maior parte dos maneiristas. É neste sentido que se por definir Arcimboldo como anti-Maneirista (10). (imagem acima, Inverno; abaixo, Ar)
Peles de leão e carneiro em Terra remetem à filiação entre Hércules e os Habsburgos, a águia e o pavão em Ar são elementos de sua heráldica.
O Fogo usa a corrente da Ordem do Velocino de Ouro e um medalhão com as armas da Casa da Áustria. A orelha é um atiçador de fogo, objeto simbólico dos Habsburgos (11)
De fato, Hulten conclui, as três dimensões (curiosidade engraçada, alegoria do Império Habsburgo e uma representação metafísica) podem não ser mutuamente excludentes. Numa época conturbada como a que viveu, Arcimboldo conseguiu formular uma hipótese original. Na opinião de Hulten, o pintor foi vítima de seu próprio gênio. Estava tão a frente de seus contemporâneos que seu trabalho não se cristalizou numa corrente artística e foi esquecido. A pintura e a arte prosseguiram por uma estrada completamente diferente. O Maneirismo, naquilo que Hulten chamou de confuso interesse pela antiguidade clássica, resultou no Barroco. E foi esta e outras formas de classicismo que dominaram por longo tempo. É interessante notar, sugere Hulten, como o tipo de panteísmo expresso de forma diferente por Arcimboldo e Johannes Vermeer (1632-1675) tenha conduzido em ambos os casos a um esquecimento temporário. O nome de Vermeer desapareceu completamente por duzentos anos, e agora é considerado um dos grandes mestres da história da arte. Não se encontra menção a Arcimboldo do final do século XVI ao início do século passado. Hoje, mal passa uma semana sem que alguma de suas invenções seja utilizada de alguma forma (12).
Notas:
Leia também:
O Rosto no Cinema (I), (VI)
O Mercado de Consumo e o Corpo no Discurso da Mídia
A Face do Mal (I), (II), (final)
Arte do Corpo: Cindy Sherman e Seus Duplos
Rosto sem Rosto: Prosopagnosia
Arte Degenerada
Berlin Alexanderplatz (I), (II), (final)
Herzog, Fassbinder e Seus Heróis Desesperados
O Irmão Japonês Do Faroeste Espaguete
1. BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso: Ensaios Críticos III. Tradução Léa Novaes, [1978] 1982. P. 124.
2. Idem, pp. 118, 120-2, 123.
3. Ibidem, pp. 126, 129.
4. SANCHEZ, Alfonso E. Perez. L’Asse Madrid-Praga in in Effetto Arcimboldo. Trasformazioni del Volto nel Sedicesimo e nel Ventesimo Secolo. Milano: Grupo Editoriale Fabbri, Bompiani, Sonzogno, Etas S.p.A., 1987. Catálogo de Exposição. P. 55.
5. HULTEN, Pontus. Tre Diversi Modelli Interpretativi in Effetto Arcimboldo... P. 26.
6. EVANS, R.J.W. La Corte Imperiale dei Tempi di Arcimboldo in Effetto Arcimboldo... P. 53.
7. HULTEN, Pontus. Op. Cit., pp. 28 e 31.
8. FUČÍKOVÁ, Eliška. I “Divertimenti” Praghesi in Effetto Arcimboldo... P. 129.
9. CACCIARI, Massimo. Animarum Venator in Effetto Arcimboldo... Pp. 275-6.
10. HULTEN, Pontus. Op. Cit., p. 31.
11. KAUFMANN, Thomas DaCosta. Le Allegorie e i Loro Significati in Effetto Arcimboldo... P. 103.
12. HULTEN, Pontus. Op. Cit., p 32.