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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

20 de mai. de 2008

Arte do Corpo: Cindy Sherman e seus Duplos



“Eu sinto que estou anônima
em meu trabalho
. Quando olho 
para  as  imagens, eu  nunca me
vejo, elas não são auto-retratos.
Às   vezes   eu   desapareço”
(1)



A norte-americana Cindy Sherman fez uma carreira tirando fotografias de si mesma com variadas representações do universo feminino, incluindo interpretações livres de famosas pinturas (criadas originalmente por homens). Muitos temas atravessam suas imagens: papéis sexuais, androginia, a desmitologização do corpo, a imagem mutante da mulher na sociedade contemporânea. A força do trabalho de Cindy talvez esteja nas “imagens mentais” que ele projeta. Da “imagem real” partimos para algum lugar além (2).

A inquietante abordagem da fotógrafa nos deixa cheios de questões. Quando conheceu a arte conceitual, ela começou a fazer auto-retratos. Em sua primeira criação, Untitled Film Stills (Cenas de Um Filme Sem Título), ela inicia em 1977 uma série onde retrata a mulher americana em seus vários papéis sociais. Não é difícil contextualizarmos essas imagens nos filmes norte-americanos das décadas de 50 e 60 do século passado. Em 1997 ela disse que começou a criar essas imagens para examinar e procurar transcender as concepções convencionais de beleza. (no alto à esquerda, Untitled Film Still #56, 1980; acima à direita, Untitled Film Still #32, 1979)

“Eu gosto de criar imagens que de alguma distância pareçam agradáveis e sedutoras, coloridas, atraentes e encantadoras, e então você percebe que aquilo para o que você está olhando é alguma coisa completamente oposta. Parece-me entediante perseguir o ideal de beleza clássico, porque essa é a forma mais fácil e óbvia de ver o mundo. É mais desafiante olhar para o outro lado”. (3) (ao lado, Untitled Film Still #7)

Em sua série sobre a moda (1983-4), Cindy questiona o ideal de beleza. Em Fairy Tales and Disasters (Contos de Fada e Desastres, 1985-8), ela desaparece das imagens, substituída por bonecas-manequins. Em History Portraits (Retratos da História, 1989-90) e Sex Pictures (Fotos de Sexo, 1992), a fotógrafa questiona o conservadorismo da cultura americana e a ambigüidade de seus conceitos morais. Centerfold (Página Central, 1981) de certa forma ironiza revistas do tipo da Playboy norte-americana. Posteriormente, Cindy se aproxima das imagens de horror e da fotografia surrealista (1994-6), em trabalhos que já evocaram Hieronymus Bosch, Giuseppe Arcimboldo e Francisco Goya.


Sex Pictures foi criada em resposta aos ataques à liberdade de expressão por cristãos fundamentalistas e elementos de extrema direita nos Estados Unidos. O governo americano havia aprovado uma emenda proibindo o financiamento público de trabalhos artísticos considerados obscenos, além de tentar processar o Centro de Arte Contemporânea da cidade de Cincinnati por causa de uma exposição dos trabalhos fotográficos de Robert Mapplethorpe. Fotografias entre o sexualmente explícito e o abstrato, zombam dos conceitos convencionais de obscenidade e desafiam aqueles que exigem mais censura. As fotografias se constituem de uma combinação surreal de partes artificiais de corpos, genitália falsa e manequins utilizados na medicina em poses indecentes (4).

A primeira pergunta que nos vem é: esses papéis não são genuínos, foram vestidos nas mulheres pela cultura falocêntrica-patriarcal-machista dominante, certo? Entretanto, Cindy se recusa a reconhecer ou confirmar clichês. Alguns sugerem que seu trabalho individualiza a experiência existencial, trazendo um ponto de vista feminista para pensar sobre isso (5). (acima, Untitled #98, 1982; ao lado, Untitled #255, 19??)

Na grande maioria dos casos poderíamos sem medo de errar responder que sim. Entretanto, creio que o questionamento de Cindy Sherman caminha um pouco mais além. Não é que não exista essa dominação masculina sobre a mulher, mas tomando-a como um dado definitivo corremos o risco de torná-la um clichê. Levando as coisas assim, acabamos vítimas de uma cegueira nascida da preguiça: nada como uma conclusão simples e rápida para nos poupar de maior esforço mental. Ou seja, essa dominação masculina é um fato. Mas isso não quer dizer que todos os questionamentos femininos sobre ser mulher sejam pautados pelos homens.

A fotógrafa mostra muitas mulheres em seu trabalho. A mulher liberada, a dona de casa, a jovem estudante, a desvairada, a masculina, a feminina infantil, a feminina fatal, a profissional liberal, a prostituta e talvez mais alguns outros tipos que seria cansativo enumerar. Muitos, ou talvez todos, estereótipos a partir dos quais enxergamos a mulher. No entanto, todas essas mulheres têm uma coisa em comum: Cindy Sherman.

Em todas essas variações, é Cindy que se repete. Ou seria mais apropriado dizer que ela se duplica? Quem é Cindy entre todas elas? As mulheres são muitas, mas Cindy está sempre só. Podemos dizer que ela está sempre sozinha ou apenas que ela é uma só. Mas quem é uma só? Geralmente, aqueles/as que não percebem que não são apenas um. Como disse o filósofo, “um são muitos”.

A própria fotógrafa afirma que suas fotografias em Untitled Film Stills não têm objetivo mais complexo do que fazer as pessoas criarem suas próprias estórias e filmes sobre os personagens criados por ela. Cindy pretende que os espectadores procurem a si mesmos ou outras pessoas ao invés dela nas imagens. Nem mesmo nome ela coloca em suas fotografias, classificadas como “Sem Título #35”, “Sem Título #142”, etc.

Entretanto, salta aos olhos o fato de que Sherman nos esteja sugerindo para criarmos narrativas a partir do que inegavelmente são suas próprias narrativas sobre a vida da mulher norte-americana. Narrativas suas que são apresentações de estereótipos do feminino, portanto imagens que não existem na realidade. (as três imagens acima datam de 1981, respectivamente, Untitled Film Still #86; Untitled #87; Untitled #91)


Pelo fato de que suas fotografias transformam o espectador em cúmplice no ato que constrói a mulher representada como uma imagem, a ideologia inerente nesse ato estético é revelada (ao lado, Cindy Sherman como ela mesma, 2004). O que Cindy nos pede então é que criemos ficções a partir de suas ficções. Oscilações entre identidades fixas: eu existo ou sou uma mera repetição de uma imagem? Eu sou humano ou animal? Sou feminina ou masculina? Sou humana ou sou uma boneca? No final, acabamos interagindo com essas ficções como se fossem de fato reais (6). Mas não é exatamente este o dilema da cultura contemporânea?

Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto

Notas:

1. Entrevista ao jornal New York Times, 01/02/1990, A Portraitist's Romp Through Art History.
2. FELIX, Zdenek. The Latent Horror of Cindy Sherman’s Images IN FELIX, Zdenek; SCHWANDER, Martin (eds.). Cindy Sherman. Photographic Work 1975-1995. London/Munich: Schirmer Art Books/Mosel, 1995. Pp. 9-10. Catálogo de exposição.
3. PHILIPS, Richard. An Artist To Be Taken Seriously. 1999, World Socialist Web.
Disponível em: http://www.wsws.org/articles/1999/aug1999/sher-a18.shtml Acessado em: 20/05/2008.
4. Idem.
5. FELIX, Zdenek; SCHWANDER, Martin (eds). Op. Cit., p. 7.
6. BRONFEN, Elisabeth. The Other Self of the Imagination: Cindy Sherman’s Hysterical Performance IN FELIX, Zdenek; SCHWANDER, Martin (eds.). Op. Cit., P. 23-6. 


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