Se o horror
pudesse realmente
ser mostrado claramente todos compreenderiam
a total insanidade
da matança?
As imagens da guerra se tornaram parte de nosso cotidiano, mas a consciência do sofrimento é construída – sobretudo em função da maneira como as câmeras registram as imagens. Vivemos numa cultura onde o choque se tornou um estímulo para o consumo: as imagens se encontram como choque e como clichê. Nas palavras de Susan Sontag, as informações do que se passa longe de nossas casas, que alguns chamam de “notícias”, sublinham conflito e violência – a busca do Ibope através do grotesco. A Guerra Civil Espanhola (1936-39) foi a primeira guerra testemunhada no sentido moderno: através de um corpo de fotógrafos profissionais na linha de frente, cujo trabalho era imediatamente visto nos jornais do mundo. A Guerra do Vietnã foi apresentada pelas câmeras de tevê na sala de estar dos norte-americanos. Desde então, explica Sontag, batalhas e massacres filmados na hora em que acontecem tornam-se um ingrediente rotineiro no fluxo incessante de entretenimento televisivo doméstico: “A compreensão da guerra para as pessoas que não vivenciaram uma guerra é, agora, sobretudo um produto do impacto dessas imagens” (1). E assim, a imagem dos eventos passa a definir os próprios eventos. O que fica patente no relato de sobreviventes quanto de pessoas que viram de perto o atentado ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001, que se referiram ao acontecimento como “irreal”, “surreal”, “como um filme” (2). (imagem acima, Non Violence, escultura de Karl Fredrik Reutersward, exposta em frente ao prédio das Nações Unidas, em Nova York)
Sontag se refere a uma iconografia do sofrimento, onde imagens de corpos nessa condição têm uma demanda tão grande quanto imagens de corpos nus. Durante séculos, uma necessidade satisfeita pela arte cristã com as representações do inferno e/ou martírios em geral. A representação de sofrimentos atrozes passará a ser deplorada quando o tema for o sofrimento de uma população civil nas mãos de um exército de militares sádicos, um tema que surge no século XVII (4). Sontag também chama atenção para o fato de que imagens de sofrimento padecido durante uma guerra são tão comuns hoje em dia que torna fácil esquecer como esse tipo de representação é recente. Se dependesse dos governos, as imagens da guerra continuariam sendo de exaltação da atividade guerreira. De fato, afirma Sontag, a fotografia de guerra começa exatamente com essa função vergonhosa durante a Guerra da Criméia (1853-6), com o objetivo de torná-la uma menos impopular entre os ingleses. Somente a partir da Guerra do Vietnã, que transmitida pela televisão, passou-se a ter a certeza de que as fotografias da guerra retratavam acontecimentos reais (não encenados) (5). (imagem acima, famosa fotografia de uma cena filmada no Vietnã durante um ataque das tropas norte-americanas, pelo menos a menina nua parece que sobreviveu; na imagem abaixo, poderíamos dizer que aconteceu no Rio de Janeiro, mas poderia ser também em nossa esquina, Jornal A Notícia, Joinville, Santa Catarina, 20/10/2009)
Imagens de sofrimento
e guerra competem com
as de nudez e esportes na preferência popular (6)
Ernst Friedrich foi um daqueles que se recusou a pegar em armas na Primeira Guerra Mundial. Em 1924 ele publicou Guerra Contra a Guerra! (Krieg dem Kriege!), um libelo pacifista em forma de tratamento de choque. Trata-se de um álbum com 180 fotografias retiradas de arquivos militares e consideradas então impublicáveis. O livro se inicia com uma ironia bizarra, soldados e canhões de brinquedo, e termina com imagens de cemitérios militares. Entre esses dois extremos, o leitor se depara com um desfile horripilante dos resultados dessa guerra que foi precipitadamente chamada de “a guerra para acabar com todas as guerras”. Na opinião de Susan Sontag, quase todas as fotografias em Guerra Contra a Guerra! são difíceis de olhar. Contudo, ao que parece os corpos dos soldados mortos apodrecendo não são nada perto dos 24 closes de soldados com imensos ferimentos no rosto. Sontag chama atenção que Friedrich não “cometeu o erro de supor” que as fotografias nauseantes falariam por si mesmas e inseriu legendas em alemão, francês, holandês e inglês. Com o apoio de associações de veteranos e organizações patrióticas, o governo alemão se apressou a denunciar o livro, que em algumas cidades foi retirado das livrarias pela polícia. Em 1938, o cineasta francês Abel Gance dirigiria o pacifista Eu Acuso (J’Accuse). Onde os soldados desfigurados mortos se levantam e aterrorizam os vivos. Mas parece que não é só no Brasil que a memória é curta, apenas um ano depois Hitler invade a Polônia e começa a Segunda Guerra Mundial (7).
Notas:
Leia também:
O Inferno é Para as Crianças (I), (II), (final)
Masculinidade e Violência
A Cultura da Arma na América do Norte (I), (II), (III), (IV), (V), (final)
Entre o Terrorismo e o Martírio
A Família Alemã e o Cinema Nazista (I), (II), (final)
1. SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros. Tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. P. 22.
2. Idem, pp. 21, 23-4, 26.
3. Ibidem, p. 61.
4. Ibidem, p. 39.
5. Ibidem, pp. 43, 50.
6. Ibidem, pp. 38, 43.
7. Ibidem, pp. 18-9.
1. SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros. Tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. P. 22.
2. Idem, pp. 21, 23-4, 26.
3. Ibidem, p. 61.
4. Ibidem, p. 39.
5. Ibidem, pp. 43, 50.
6. Ibidem, pp. 38, 43.
7. Ibidem, pp. 18-9.