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Roberto Acioli de Oliveira

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7 de set. de 2008

Retrato e Auto-Retrato



“Um retrato é
uma discórdia”

Henry Matisse


Rosto, eterna esfinge… O universo do retratismo propicia uma chance privilegiada para mergulhar na questão da arte frente ao eterno dilema do rosto. (ao lado, Auto-Retrato, Francis Bacon, 1971)

Todorov nos mostra na pintura flamenga da Renascença como o visível não está mais a serviço do inteligível. Não se trata de uma ruptura com o divino, a questão é a afirmação da humanidade do divino. Não se trata do renascimento do antigo, mas da descoberta do humano. Imitar a natureza, mostrar o visível. Entre os séculos XV e XIX, uma “arte representativa” invade a Europa Ocidental participando do advento do humanismo (1).

Com isto, entre outras características, as práticas da pintura flamenga quanto à individualidade do pintor do retrato permitem que represente não as coisas como são, mas como ele às vê. Introdução do indivíduo no quadro ou, mais exatamente, a introdução da individualidade, significa seu elogio. De fato, não se pode esquecer que por muito tempo os retratos foram pintados com o objetivo explícito de modificar os traços originais do retratado.

A coisa não mudou nada com a chegada da fotografia. O realismo dos traços fisionômicos do retratado podem perfeitamente ser manipulados. Abordagens surrealistas do retrato alcançaram resultados curiosos. As praticamente infinitas possibilidades de manipulação das imagens no universo da computação gráfica deixam claro que o aperfeiçoamento das técnicas de reprodução não impede de forma alguma o abstracionismo.

"Eu não sei se trabalho
para fazer alguma coisa
ou para saber por que
eu não posso fazer
aquilo que desejo"



Alberto Giacometti (2)


O auto-retrato torna-se um elemento ímpar para analisarmos a questão da auto-imagem a partir dos traços escolhidos para representar as disposições subjetivas. O artista frente a frente com seu rosto. Alberto Giacometti sempre teve retratos e auto-retratos como desafios (acima, à esquerda, Os Olhos, Alberto Giacometti, 1962). Desenhar cabeças sempre foi um problema, mais um problema que ele nunca evitou. Jean Genet, num comentário a respeito de Giacometti…

“Quando se soube que Giacomentti estava fazendo meu retrato (eu teria o rosto mais para o redondo e gordo), disseram-me: ‘ Ele vai fazer sua cabeça como a lâmina de uma faca’. O busto em argila ainda não está pronto, mas creio saber por que ele utilizou, para os diferentes quadros, linhas que parecem fugir partindo da linha mediana do rosto - nariz, boca, queixo - em direção às orelhas e, se possível, até a nuca. Acho que é porque um rosto oferece toda a força de seu significado quando está de frente, e tudo deve partir desse centro para ir alimentar, fortificar o que está por trás, escondido. Dói-me dizê-lo tão mal, mas tenho a impressão – como quando se puxam os cabelos para trás da testa e das têmporas – que o pintor puxa para trás (atrás da tela) o significado do rosto”. (3)

A questão do indivíduo exposta por ele mesmo. Pensemos nos auto-retratos de van Gogh. Bernard Denvir nos conta que quando Vincent mandava notícias a seu irmão Theo, dizendo que estava calmo novamente, “verificava” isso com um retrato. Acreditava que o auto-retrato contém uma verdade que pode se esconder tanto da câmera como da mente racional (4).

Pensemos nos auto-retratos femininos, a obra de Frida Kahlo é incontornável. Todas as suas pinturas são auto-retratos, um diário visual de seus problemas físicos e emocionais, expostos de uma maneira talvez nunca antes tão direta na história da pintura. Ela dizia que pintava auto-retratos porque ficava muito sozinha e era o tema que conhecia melhor. Para Frances Borzello, seja Dürer como o Cristo atormentado ou Goya nas garras dos demônios, nada se compara à dor e ao sofrimento nos auto-retratos de Frida Kahlo (5) (abaixo, A Coluna Quebrada, Frida Kahlo, 1944).





"Pensaram que eu era surrealista,
mas nunca fui
. Nunca pintei sonhos,
só pintei minha própria realidade"


Frida Kahlo




O auto-retrato como questão essencial. Certa vez van Gogh disse que não pinta o que vê, mas o que sente. A “cegueira da visão” na dúvida/certeza de que no traço do artista está o seu reflexo. Alguém vai ver alguma coisa nos auto-retratos de van Gogh, mas quando as formas de representação implicam abdicar à possibilidade de fazer-se visível para si mesmo?

Os auto-retratos de Francis Bacon têm sempre aquela marca registrada. Descarnados, esfolados, torcidos, contorcidos, fora do lugar (imagem no início do artigo). Gilles Deleuze nos dá uma pista quanto aos auto-retratos de Bacon (6). Na opinião do filósofo, o corpo tem uma cabeça, mas não um rosto. O rosto seria uma organização espacial estruturada que recobre a cabeça. Somente esta é parte do corpo. Ela, a cabeça, tem um espírito de corpo, um sopro vital e um espírito animal – o espírito animal do homem. Entretanto, esses traços de animais não significam correspondências formais. Não se trata de combinação das formas, é mais o fato comum do homem e do animal; uma zona de indiscernibilidade entre os dois (7). Portanto, não há nenhuma relação com a fisiognomonia na proposta deleuziana, muito pelo contrário.

Segundo Deleuze, o projeto de Bacon é desfazer o rosto e fazer surgir uma cabeça que está abaixo dele (imagem abaixo, Auto-Retrato, van Gogh, 1887). Mas desfazê-lo não é uma coisa simples. O rosto assume uma rostificação, uma organização. O tique nervoso deixa transparecer justamente uma luta entre um traço de rosticidade que procura escapar à organização e uma rostificação que tenta impedir a criação dessa linha de fuga. Na opinião de Deleuze e Guattari, o destino do homem é desfazer o rosto e as rostificações, tornando-se imperceptível:




“(...) Como olhos que
atravessamos ao invés de
nos vermos neles, ou ao invés
de olhá-los no morno face a face
das subjetividades significantes” (...)
“Sim, o rosto tem um grande porvir, com a
condição de ser destruído, desfeito.
A caminho do assignificante,
do assubjetivo. Mas ainda
não explicamos nada
do que sentimos"
(8)






Notas:

Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto

1. TODOROV, Tzvetan. Éloge de l’individu. Essai sur la Peinture Flamande de la Renaissance. Paris: Adam Biro, 2001. P. 221.
2. MOULIN, Joëlle. L’autoportrait au XX Siècle. Paris: Adam Biro, 1999. P. 45.
3. GENET, Jean. O Ateliê de Giacometti. Tradução Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2ª ed., 2001. Pp. 70-71.
4. DENVIR, Bernard. Vincent. The Complete Self-Portraits. Pennsylvania: Running Press, 1994. P.12.
5. BORZELLO, Frances. Seeing Ourselves. Women’s Self-Portraits. London: Thames & Hudson. 1998. P. 143.
6. DELEUZE, Gilles. Francis Bacon. Logique de la Sensation. Éditions de la Différence (2 vols), 3ª ed., 1981. P.19.
7. Idem, p. 20.
8. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mille Plateaux.Capitalisme et Schizophrénie. Paris: Les Édition de Minuit, 1980. P. 210. Na edição brasileira, ver Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, Vol. 3, 1996. P. 36.

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