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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

28 de jan. de 2019

Akira Kurosawa e seus Seres Humanos


 “Seres humanos são incapazes de serem honestos sobre si mesmos. 
Eles não falam sobre si mesmos sem enfeitar... Você diz que não
compreende o roteiro,  mas isso é porque o próprio coração
humano é impossível de compreender.  Se  focalizar  na
impossibilidade de verdadeiramente  compreender
a psicologia humana e lê o roteiro mais uma vez, 
eu  acho  que  irá  perceber  a  questão”

 Kurosawa, para três assistentes de direção que 
não compreendiam o roteiro de Rashomon  (1)


Akira Kurosawa nasceu em Tóquio, capital do Japão, em 1910 (e faleceu na mesma cidade, em 1998). Seu pai, de certa forma, está profundamente ligado a parte de sua filmografia. Muitos são os filmes de samurai que podemos encontrar na filmografia de Kurosawa. O pai dele era um militar comprometido com a chamada Era Meiji (de 1868 a 1912), que restaurou o poder do imperador e acabou com o sistema feudal. Um novo exército imperial foi criado em 1873 e os samurais perderam seus privilégios e o direito de carregar o sabre. O pai de Kurosawa também chegou a ensinar artes marciais (judô, sabre) e esportes – ele era conhecido por ter construído a primeira piscina no Japão (2). Kurosawa nunca fez um filme mostrando esse período de transição, seus samurais pertenciam a um tempo anterior, onde o Japão estava imerso em guerras civis. Mas fará isso seguindo o espírito da Era Meiji e também se abrindo ao Ocidente. De 1935 a 1943, Kurosawa trabalha como assistente de direção. Em 1943, com trinta e oito anos, assume a direção de seu primeiro longa-metragem. Ao escrever um roteiro, confessou Kurosawa, o difícil é esperar que o personagem comece a agir na primeira cena. Até que isso ocorra, Kurosawa pode ficar pensando durante meses (3). (imagem acima, Toshiro Mifune em Rashomon)

Kurosawa disse que seus gostos em relação e a cinema devem muito a seu irmão mais velho. O interesse pela literatura russa e até mesmo pelo cinema. Neste último caso, quando seu irmão Heigo se tornou benshi profissional a partir de 1929. Na época do cinema mudo, o benshi comentava as situações e por vezes imitava a voz dos personagens. Muito populares entre o público, eles prolongavam a tradição do teatro de marionetes (Bunraku). Com o advento do filme falado, Heigo será um dos líderes do movimento grevista dos benshi que se opunham à novidade. Teria sido esse tipo de resistência o motivo porque o filme falado só viesse a se desenvolver no Japão a partir de 1935, quando os estúdios já estavam ansiosos para que o público preferisse os filmes falados norte-americanos aos mudos japoneses. Em 1933, já numa segunda tentativa, Heigo consegue se suicidar aos vinte e oito anos, um episódio que deixará marcas em Kurosawa (4).

O Difícil Começo Sob a Censura


Censurado pelo governo militar japonês, censurado no pós-guerra
pelos franceses do Cahiers du Cinéma,  censurado  por  muitos
e  muitos  pelo  interesse   em   adaptar  obras   de   escritores
ocidentais, Kurosawa devia possuir uma paciência oriental!


Certamente, muito de sua obra gira em torno de samurais, guerras civis e ação. Seu primeiro filme Sanshiro Sugata é ambientado no mundo do judô. Realizado em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, num Japão militarista que censuraria qualquer tentativa de fazer um trabalho questionador – o filme contaria com uma seqüência em 1945, Sanshiro Sugata, parte dois (Zoku Sugata Sanshiro), um trabalho que Kurosawa detestou. Portanto, para alguns, o primeiro trabalho deste cineasta não passaria de um filme de propaganda do espírito de luta do povo japonês. Seu segundo filme, A Mais Bela (Ichiban Utsukushiku, 1944), segundo alguns seguiria o mesmo modelo. Depois da Guerra, União Soviética, Estados Unidos e Grã-Bretanha explodiam muitas bombas atômicas a título de teste. Anatomia do Medo (Ikimono no Kiroku, 1955), o assunto continua sendo a guerra. Mais especificamente, o medo da bomba atômica. Foi o protesto pacifista de Kurosawa. Um japonês resolve que o melhor é emigrar para o Brasil, por alguma razão ele acredita que a América do Sul está protegida da radioatividade – que já havia sido bombardeado com duas bombas atômicas. Ele voltaria ao tema em Rapsódia em Agosto (Hachigatsu no Kyoshikoku, 1991). (imagem acima, a burocracia interminável de uma prefeitura, manipulando/travando as vidas das pessoas, Viver)

Sanshiro Sugata inaugura também a longa carreira de Kurosawa como um cineasta que adapta textos de outras pessoas. Este filme se baseava no trabalho do escritor japonês Tsuneo Tomita. De fato, Kurosawa queria comprar os direitos mesmo antes de o livro ser lançado. O assunto, a rivalidade entre o judô e o jiu-jítsu, era considerado um tema “bastante seguro”, de entretenimento e extremamente japonês. No Japão, dizia-se na época que um filme japonês deveria ser o mais simples possível. Kurosawa não concordava, mas era o máximo que ele podia fazer. Já que ele não podia dizer nada, decidiu que pelo menos poderia fazer um “filme de cinema”. Quer dizer, mostrar coisas que somente na tela se pode visualizar, algo que o livro escrito não fosse capaz de transmitir. A cena da lagoa da flor de lótus, muito citada, não existia no livro. Como algum tempo depois em Rashomon (1950), à concepção literária Kurosawa adiciona algo que só o cinema é capaz de fazer. A vigília de Sugata no lago e a cena de luta considerada a mais famosa do cinema japonês, diria Donald Richie, são coisas para serem vistas e lembradas (5). (imagem abaixo, Ralé)




A Mais Bela era muito próximo dos documentários russos e alemães, mas também permitiu o drama. De acordo com Richie, neste filme já se podiam notar os elementos de uma gramática própria a Kurosawa – por exemplo, o uso de flashbacks. De qualquer forma, o que perdura é a tendência a vê-lo como mais um filme de propaganda do governo, já que a heroína era uma operária de fábrica. Embora com um roteiro do próprio Kurosawa, fato de menor importância já que fora escrito em função do interesse político de um governo que estava travando uma guerra. Neste filme que enfatiza o caráter coletivo da ação social, um grupo de mulheres voluntárias trabalha numa fábrica de instrumentos óticos de precisão, todas colocam suas vidas particulares em segundo plano em função de seu trabalho. Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre (Tora no o Fumu Otokotachi, 1945), foi outro filme que Kurosawa não queria fazer, apenas as autoridades militares. Versão de um episódio medieval que forma a base de Ataka, um drama do teatro Nô e da peça Kabuki Kanjincho: Yoshitsune, um dos mais famosos generais japoneses, foge de seu irmão, Yoritomo. Em 1946, com mais outros dois cineastas japoneses Kurosawa participa de um filme encomendado, só que agora por um grande sindicato. Era um filme anticapitalista e contra a empresa. Kurosawa disse que detestou ter participado. Desse flerte com o comunismo em diante, ele deixo de acreditar no povo ou na coletividade, passando a se ocupar das pessoas – deixar de se interessar pela comunidade, ressaltou Donald Richie, é uma atitude verdadeiramente anti-japonesa (6). De acordo com Charles Tesson, entretanto, Kurosawa havia freqüentado a Liga dos artistas proletários desde 1928, tornando-se membro a partir de 1929 até 1932. Embora preferisse o realismo de um Courbet ao típico naturalismo da pintura de propaganda, chegou a distribuir jornais proletários (7).

Na França, a recepção da obra de Kurosawa estava no centro de outra guerra. Existiam duas revistas, Positif e Cahiers du Cinéma. A primeira defendia Kurosawa e denegria Kenji Mizoguchi, a segunda fazia o inverso. Jean-Luc Godard, dos Cahiers, em seu pequeno filme Todos os Rapazes se Chamam Patrick (Tous les Garçons s’Appellent Patrick, 1957) ilustrou a questão na cena em que um rapaz flerta com uma moça em Paris. Como ela não responde, ele resolve que a jovem loura deve ser de outro país. Lá pelas tantas sugere que ela pode ser japonesa e pergunta: “Mizoguchi, Kurosawa?” Por vezes, o nível entre as duas revistas se afastou muito do que se poderia considerar uma observação objetiva. Em 1957, Luc Moullet classificou o cinema de Kurosawa de “um verdadeiro desastre”, O Anjo Embriagado (Yoidore Tenshi, 1948) uma obra medíocre sem nenhum interesse, e Viver (Ikiru, 1952) um filme que “bate os recordes do ridículo” e “deixa o espectador sem voz diante de tal loucura, de tal sentimentalismo”. No mesmo ano, André Bazin, um dos pais do Cahiers, viria em socorro de Viver (“que bicho afinal mordeu nosso amigo Moullet...”) (8). A idéia dos Cahiers, (e Bazin era contra), era que aquele que amava Mizoguchi não podia amar Kurosawa, e isso valia para todos os outros cineastas. Bertrand Tavernier confessou que escreveu muito lixo quando foi crítico de cinema, lembra de haver pisoteado Cão Danado (Nora Inu, 1949) – um filme de Kurosawa que décadas mais tarde confessou achar formidável (9). Em 1958, Godard aponta a querela em torno dos dois cineastas e desvalorizar Kurosawa (10). Em 1961, Jean Douchet questionou Bazin: “Eu não creio, apesar de tudo, que Yojimbo [1961] possa nos convencer do gênio de Kurosawa. Uma vez mais, ele nos aparece como um hábil técnico, com pensamento e talento limitados”. Serge Daney, por outro lado, chegou a elogiar Kurosawa em função de Dersu Uzala (1975) e Dodes’Ka-Den. O Caminho da Vida (Dodesukaden, 1970) (11). Um tom curioso para aqueles que, salvo engano, pretendem descrever os filmes ao invés de julgá-los... 

Tanto Lá Quanto Cá, Somos Todos Humanos


Poder-se-ia “acusar” Kurosawa de pró-ocidental,  seguindo
a  tendência  da  Era  Meiji.  Mas  não  se  pode  censurá-lo
por  reencontrar  a  humanidade  espalhada por todo lado


Kurosawa e a maioria dos japoneses dividem os filmes em duas grandes categorias: os jidai-geki, filmes de época, e os gendai-mono, filmes com histórias modernas - divisão próxima da que fazemos no Ocidente entre filmes de faroeste, crime e terror. Contudo, Richie afirmou que os jidai-geki há muito degeneraram. Os filmes se transformaram em divagações muito coloridas de um historicismo sem sentido. As exceções seriam Kenji Mizoguchi, Masaki Kobayashi e Akira Kurosawa. Apesar da fama de país que respeita a tradição, Richie explicou que poucos são aqueles que neste tipo de filme ultrapassam o clichê. Filmes como Contos da Lua Vaga (Ugetsu Monogatari, direção Mizoguchi, 1953), Os Sete Samurais (Shichinin no Samurai, direção Kurosawa, 1954) e Harakiri (Seppuku, direção Kobayashi, 1962), ao contrário, procuram mostrar a história de maneira fidedigna e tentam dar aos personagens uma individualidade e uma psicologia contemporânea (12). Ao contrário da tese defendida por muitos, de acordo com Richie e Anderson o teatro Kabuki japonês tradicional não foi transposto para o cinema o Kabuki não se adaptou ao cinema e as tentativas para tanto não passam de teatro filmado. A partir de 1917, surge um novo tipo de drama de costumes. O Shinkokugeki (“novo teatro nacional”) transporta o realismo do teatro Shingeki, exclusivamente direcionado à vida contemporânea, para dentro do âmbito do Kabuki tradicional. A partir de 1923, os espetáculos mais aplaudidos foram levados para a tela grande do cinema. Assim nasceu o filme histórico, ou jidai-geki (13). Kurosawa desejava fazer uma articulação entre o jidai-geki e um filme que fosse também entretenimento, foi o que ele tentou em Os Sete Samurais (14).

Os interesses de Kurosawa pela cultura Ocidental foram muitas vezes usados contra ele para justificar críticas às vezes um tanto equivocadas. Muitas vezes se reprovou as adaptações de obras ocidentais por Kurosawa, como se o aspecto externo fosse mais relevante. Ou melhor, Kurosawa não deixava de ser japonês ao adaptar Shakespeare ou utilizar musica ocidental em seus filmes, porque ele estava se referindo à humanidade no interior dos ocidentais e dos orientais – antes de sermos brasileiros ou norte-americanos, ou japoneses, somos seres humanos. Da mesma forma que Rashomon não seria simplesmente o Kabuki tradicional filmado, Richie e Anderson explicam a utilização da música ocidental ao invés da japonesa neste filme de uma forma mais objetiva. Diziam eles que, “para os japoneses, esse gênero cinematográfico surge – como todo o cinema - da tradição realista importada do Ocidente, e, portanto, não possui relação como o drama clássico nipônico” (15). 

O Contexto Histórico


“Por seu olhar sobre o mundo das artes marciais, sua pergunta sobre
 o sentido  do  heroísmo (o conflito entre individualismo e altruísmo),
 Kurosawa  marcará  o  cinema  japonês.  Cada  um  de  seus filmes se
 torna uma referência, influenciando o cinema asiático e ocidental”(16)


Após ter dirigido Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre e Rashomon, dois filmes situados no contexto das guerras de clãs dos séculos XI e XII, com Os Sete Samurais Kurosawa alterna com outro período conturbado da história do Japão. Conhecido como período das “províncias em guerra” (1490-1600), pela supremacia do poder, que conduzirá à era Edo (1603-1868), longo período de paz sob o reinado dos Tokugawa. Além de Os Sete Samurais, quatro filmes serão ambientados naquele período, Trono Manchado de Sangue (Kumonosu-Jo, 1957), A Fortaleza Escondida (Kakushi-toride no san-akunin, 1958), Kagemusha, a Sombra do Samurai (Kagemusha, 1980) e Ran (1985). Dois deles se encaixam na veia do filme de ação (Os Sete Samurais e A Fortaleza Escondida). Os restantes, graças a Shakespeare e ao teatro nô, misturam o épico e a pintura - Ran sintetiza essa articulação (17). Nos filmes de Kurosawa, geralmente os protagonistas são masculinos. Num mundo de guerras civis e artes marciais, isso parece fazer certo sentido. (imagens, acima, O Barba Ruiva; abaixo, Yojimbo)

Porém, mesmo não sendo a personagem principal, a mulher é bem visível na obra de Kurosawa. A mulher e a condição feminina no Japão em várias épocas. De fato, é bem fácil fazer a ponte entre os contextos históricos e a condição feminina através de filmes como Rashomon, Ran, Kagemusha, a Sombra do Samurai, Viver e tantos outros. Em Ralé (Donzoko, 1957), temos a prostituta pobre e sonhadora (praticamente ao nível catatônico) e a lasciva esposa do proprietário que explora os mendigos. Em Os Sete Samurais, Yojimbo, o mundo das gueixas e da mulher camponesa não deixa dúvidas. Mesmo em filmes urbanos e contemporâneos como Céu e Inferno (Tengoku to Jigoku, 1963), o silêncio e/ou o papel coadjuvante delas na trama fala muito da vida da mulher na história do Japão. 




Cão Danado e, antes dele O Anjo Embriagado, mostram um retrato da mulher da periferia da grande cidade no pós-guerra que em nada difere dos filmes italianos que abordam o mesmo assunto. Parece que todas são prostitutas e/ou mulher de bandido! Em Madadayo (1993), por exemplo, a festa anual de aniversário do velho professor é bastante reveladora. No começo, a esposa não está presente, por mais que se trate de uma festa em que ex-alunos homenageiam seu amado professor – nem mesmo as esposas dos alunos. Entretanto, na última festa, já no contexto de um Japão do pós-guerra ocupado pelas forças militares dos Estados Unidos, a esposa (já de cabelos brancos) está finalmente presente – assim como as esposas e filhas dos ex-alunos. Em Rashomon, após ouvir a versão da esposa para o assassinato do marido, um dos homens diz que elas usam as lágrimas para enganar todo mundo e enganam até a si mesmas. Conclui afirmando que por causa disso os homens devem se precaver em relação aos argumentos delas. Comentário que volta pela boca de outro homem ao comentar a atitude da prostituta em Ralé. Trata-se da vida da mulher japonesa ou de misoginia por parte de Kurosawa? 

Durante uma entrevista em 1953, questionado sobre a falta de personagens femininas em seus filmes e se isso significa que não se interessasse pela psicologia feminina, Kurosawa foi bem direto. A culpa, disse ele, era do estúdio Toho (ao qual estava ligado então). A companhia se justificava dizendo que os espectadores se incomodariam de ver as más inclinações das mulheres! (18). Em Sonhos (Yume, 1990), durante o episódio na tempestade de neve, a entidade espiritual do folclore japonês que vem atormentar os homens é uma mulher – yuki-onna ou mulher da neve -, ela surge para Kurosawa e de repente desaparece – ele sobrevive (19). O Barba Ruiva (Akahige, 1965) apresenta algumas mulheres vítimas da violência sexual masculina, uma delas quase mata o jovem médico aprendiz – que andava irritado porque queria ser médico de gente rica e poderosa e acabou sendo mandado para um “depósito de pobres” doentes e moribundos. Muitas décadas antes, em A Fortaleza Escondida, Kurosawa nos apresentou uma mulher forte que não suporta o fato de que um dia seu fiel guarda costas tenha sacrificado a própria filha pela segurança de uma mulher da realeza. Por outro lado, a princesa também tinha sua serviçal, sua mucama... De acordo com Donald Richie, o filme que Kurosawa estava preparando antes de falecer centraria sua atenção finalmente nas personagens femininas, numa abordagem que não fazia desde Juventude Sem Arrependimento (Waga Seishun ni Kuinashi, 1946) e voltaria ao período Edo, como em Ralé e O Barba Ruiva (20).

Yojimbo e o Faroeste Espaguete


“Em primeiro lugar, houve Rashomon. E todos os Kurosawas... 
E  também  A  Harpa  da  Birmânia,  de  Kon  Ichikawa... 
O  cinema  japonês  me  fascina  por  certa   utilização
do silêncio. Isso dá um ritmo que me agrada muito”

Sergio Leone, suas preferências em relação ao cinema japonês (21) 


Yojimbo, um dos mais famosos e de maior bilheteria dentre os filmes de ação de Kurosawa teve até uma seqüência no ano seguinte, Sanjuro (1962) – dois longas-metragens de ação com uma veia cômica. Na verdade, o roteiro de Sanjuro fora escrito antes mesmo de Yojimbo. Sanjuro Tsubaki, o herói, não era muito bom com a espada, lutava mais com a cabeça. Mas depois do sucesso de Yojimbo, o estúdio cinematográfico decidiu que Kurosawa deveria dirigir uma seqüência, e Sanjuro foi ficando mais e mais eficiente com a espada (22). Yojimbo foi o modelo do cineasta italiano Sergio Leone ao escrever o roteiro de Por um Punhado de Dólares (Per um Pugno di Dollari, 1964), primeiro filme de sua famosa Trilogia dos Dólares – também conhecida como Trilogia do Homem sem Nome. Em Yojimbo, o samurai Sanjuro Kuwabatake oferece seus serviços como Yojimbo, ou guarda-costas, a duas facções rivais e espera pela melhor oferta. Tendo começado a confusão, aparentemente por falta de algo melhor para fazer, gradualmente Sanjuro se dedica a acabar com a briga de uma vez por todas, causando danos aos dois lados. Por um Punhado de Dólares segue de perto o mesmo padrão. (imagens acima e abaxo, Yojimbo)

Leone chegou a anunciar no próprio roteiro publicado que seu filme era baseado no roteiro de Yojimbo - que Kurosawa escreveu juntamente com Ryuzo Kikushima. A compensação veio com a garantia dos direitos de distribuição de Por um Punhado de Dólares a favor de Kurosawa no Japão, Formosa (Taiwan) e Coréia do Sul, além de 15% dos lucros da distribuição mundial. As modificações introduzidas no roteiro por Leone não implicavam num abrandamento do argumento legal que afirmava que seu filme fosse uma cópia de Yojimbo (23) - Christopher Frayling sugeriu que o argumento foi mais em função do roteiro, pois havia diferenças em relação às cenas, aos diálogos, a caracterização, os estilos de atuação e ao trabalho de câmera (24). A razão do filme de Leone ter sido lançado nos Estados Unidos apenas dezoito meses depois da estréia na Itália foi justamente o processo movido contra ele (25). O próprio Kurosawa, na verdade, já havia comentado a respeito da identificação de Sanjuro, o protagonista de seu filme, com o Oeste Americano: “Bons faroestes são admirados por todos. Uma vez que os humanos são fracos, eles querem ver pessoas boas e grandes heróis. Muitos faroestes foram feitos e um tipo de gramática evoluiu no processo. Eu aprendi com essa gramática do faroeste” (26). 

Donald Richie aprofunda o comentário de Kurosawa com alguns exemplos. Em Yojimbo, a cidade é muito parecida com aquelas no meio do nada que se podem ver nos filmes de cineastas norte-americanos como John Ford. Ou ainda Fred Zinnermann com Matar ou Morrer (High Noon, 1952) ou John Sturges com Conspiração do Silêncio (Bad Day at Black Rock, 1954) – embora este não seja um faroeste, se passa no oeste norte-americano após a Segunda Guerra Mundial. Sanjuro, atuando como um guarda-costas, assim como Gary Cooper em Conspiração do Silêncio, ou Alan Ladd em Os Brutos Também Amam (Shane, direção George Stevens, 1953) (um filme muito popular no Japão) é o forasteiro que chega e vai embora. Como em Matar ou Morrer, não vale a pena salvar os habitantes da cidade. Então as ações do herói se tornam absurdas, gratuitas – exceto que Mifune, ao contrário de Cooper, está muito interessado em ganhar dinheiro. Por outro lado, Frayling nos lembra que Kurosawa foi enfático ao afirmar que a “mensagem” social de seus filmes seria impossível de ser transposta para outros contextos.


 

Certa vez perguntaram a Kurosawa o que ele pensava das adaptações para faroeste por cineastas norte-americanos de dois de seus filmes – Sete Homens e um Destino (Magnificent Seven, 1960), onde John Sturges adaptou Os Sete Samurais; As Quatro Confissões (The Outrage, 1964), quando Martin Ritt adaptou Rashomon. Kurosawa foi, no mínimo, pessimista. Desvalorizou as tentativas a partir de um ponto de vista que não era capaz de relativizar as barreiras culturais. O que é curioso, para um cineasta que se notabilizou, e até foi muito criticado por isso, em função das várias adaptações que fez de autores ocidentais como Shakespeare e Dostoievski. O cineasta japonês responde: “Eu não tenho nada contra adaptações de meus filmes. Mas não acredito que possam ter êxito. O contexto básico é muito distinto. E, sejam quais forem meus pontos de vista, filmes pastiche, de um tipo calculado, não podem nunca ser bons filmes... é, por exemplo, ridículo me imaginar dirigindo um faroeste de Hollywood. Porque eu sou japonês...” (27) A propósito, Sergio Leone, que admitiu gostar muito dos filmes de Kurosawa, chegou a sugerir (com certa ironia amarga) que as idéias de suicídio do cineasta japonês poderiam se dever ao fato de ter tido mais lucro com o sucesso obtido pelas versões de seus filmes dirigidas por outros cineastas do que com seus próprios filmes! Sete Homens e um Destino foi um sucesso, lembrou Leone. É pena! Concluiu um Leone sarcástico, que disse preferir o filme de Kurosawa (28). Entretanto, é preciso ressaltar a observação de Donald Richie sobre o filme de Sturges. Na época do lançamento, Os Sete Samurais não fora visto sem cortes fora do Japão. Mesmo no Festival de Cannes em 1954 a cópia era editada. Havia três “versões menores” para exportação, Sete Homens e um Destino fora criado a partir de uma delas (29).

Da mesma forma que Gary Cooper em Conspiração do Silêncio, Sanjuro sabe que gente ruim é gente ruim e que não podem se safar. Cooper é um moralista neste particular, enquanto Sanjuro é cínico e amoral. Cooper espera o desfecho com receio senão medo, enquanto Sanjuro enfrenta a situação com a calma fatalista de um profissional da espada. Ambos farão o mesmo, limpar uma cidadezinha nojenta e insalubre. Eles diferem apenas no motivo pelo qual fazer isso. Sanjuro não está interessado em limpar a cidade, não carrega nenhum propósito moral por trás de suas ações. Kurosawa, conclui Richie, se recusa a ser solene a respeito de um assunto importante – a ação social. Por esse motivo, recusa a tragédia e o melodrama, insistindo em fazer de Yojimbo uma comédia. Juntamente com a seqüência, Sanjuro, ou A Fortaleza Escondida, a comicidade sempre esteve presente em Kurosawa. Mesmo o drama de Viver não está imune ao humor. O ponto é que Yojimbo foi o primeiro longa-metragem de Kurosawa completamente submerso na comédia. Sanjuro Kuwabatake compartilha algo em sua maneira de ser com o ladrão Sutekishi de Ralé e mesmo com o bufão Kikuchiyo, que se finge de samurai em Os Sete Samurais, dois papéis que Kurosawa deu ao ator Toshiro Mifune (30). 

De qualquer forma, argumentou Sergio Leone, Yojimbo foi inspirado no romance Colheita Sangrenta (Red Harvest, 1929), escrito pelo norte-americano Dashiell Hammett (1894-1964). O romance de Hammett, por sua vez, teria sido uma reedição de Arlecchino, Servidor de Dois Amos (Arlecchino servitore di due padroni, 1743), do italiano Carlo Goldoni (1707-1793). O que inverteria a questão, sugerindo que Kurosawa é que bebeu nas fontes ocidentais. De sua parte, Leone se recusou a admitir plágio. O cineasta foi enfático quanto ao fato de que apenas conservou a estrutura de Yojimbo, cuja fonte seria Hammett, tomando o cuidado de não repetir as palavras dos diálogos. Leone nunca admitiu que o sucesso de Por Um Punhado de Dólares fosse devido a não ser mais do que uma cópia do filme dirigido por Kurosawa (31). Frayling sugere ainda outro antecedente histórico tanto para o filme de Kurosawa quanto o de Leone, O Corruptor de Hadleyburg (The Man that Corrupted Hadleyburg, 1899), escrito por Mark Twain. Leone e Kurosawa sempre disseram que sua inspiração foram os faroestes de Hollywood. Por outro lado, da mesma forma que Kurosawa desvalorizou o caráter de pastiche dos faroestes que são adaptações de seus filmes, se apressou em dizer que nunca teve intenção de fazer um pastiche de Os Brutos Também Amam - dirigido por George Stevens e tão popular no Japão (32).

De Onde Veio Kurosawa: Influências


 George Lucas revelou que o comportamento dos dois robôs  (R2-D2
 e C-3PO) da saga Guerra nas Estrelas (Star Wars) foram inspirados
 nos  dois  camponeses  trapalhões  de  A  Fortaleza  Escondida   (33)


O inglês William Shakespeare (1564-1616) inspiraria Kurosawa em Trono Manchado de Sangue (com Macbeth) e Ran (com Rei Lear). O russo Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881) teria seu romance, O Idiota (Hakuchi, 1951), adaptado para o cinema pelo cineasta. De acordo com François Truffaut, em Céu e Inferno Kurosawa teria sido inspirado por alguns elementos de Alfred Hitchcock (34) - ainda que a fonte direta, apesar de haverem sido feitos muitos ajustes, seja um romance de Edward Mc Bain (35). Desde 1947, Kurosawa repete que foi muito influenciado por cineastas norte-americanos como John Ford (1894-1973), William Wyler (1902-1981) e Frank Capra (1897-1991). De acordo com Donald Richie, Capra é muito visível em filmes como Um Domingo Maravilhoso (Subarashiki Nichiyobi, 1947). Os elementos extravagantes nas últimas cenas, o otimismo confiante da garota, a temática “você está certa se pensa que está”, o humanismo que sempre ameaçando acabar em sentimentalismo – tudo isso, explica Richie, é um legado de Capra. Mesmo o estilo de atuar, o jeito como a moça sempre vem para o rapaz para consertar o chapéu dele. É como se Kurosawa tivesse assistido Dama por um Dia (Lady For a Day, 1933) Aconteceu Naquela Noite (It Happened One Night, 1934), O Galante Mr. Deeds (Mr. Deeds Goes to Town, 1936) – os três dirigidos por Frank Capra. A parte final de Um Domingo Maravilhoso (noite criada em estúdio) também evoca a direção de Josef von Sternberg em Docas de Nova York (Docks of New York, 1928). Embora Richie admita essa tendência poderia também ter vindo de Rouben Mamoulian (1897-1987) ou dos filmes alemães da UFA que Kurosawa havia assistido. O final teria vindo direto de Cem Homens e uma Menina (One Hundred Men and a Girl, 1937). Mas Richie admite que o filme também possua alguns traços de influências japonesas (36). 

Cão Danado foi baseado num caso real que ocorreu no Japão. O detetive Murakami perde a pistola e roda por toda Tóquio em seu encalço. Ele se sentirá culpado por todos os crimes cometidos com pistolas. Perdendo sua pistola, Murakami perde também seu lugar na sociedade – torna-se um “danado”. A partir daí, a busca pela arma torna-se uma busca por si mesmo. No processo, acaba se identificando no bandido. Os dois são “cães danados”, o que Murakami não percebe com clareza é a possibilidade aberta pela escolha na fé de que o instinto do mal (que coabita dentro do homem com o espírito do bem) possa redirecionar o impulso criminoso, transformando-se em algo produtivo – se gosta de armas ou ação, vá trabalhar do lado da lei; se gosta de fogo, ao invés de queimar o mundo, vá trabalhar no corpo de bombeiros (37). Kurosawa desejava criar um filme à moda do escritor Georges Simenon (estórias de detetive são variações de uma busca), mas não gostou do resultado. Vários filmes de Kurosawa “buscam”: criminosos em Homem Mal Dorme Bem (Warui Yatsu Hodo Yoku Nemuru, 1960) e Céu e Inferno; a verdade em Rashomon; ouro em A Fortaleza Escondida; o sentido da vida em Viver. De acordo com Richie, Kurosawa via nos filmes de John Ford muitas batalhas morais e elementos de uma grande busca (38). (imagem abaixo, O Anjo Embriagado)



 

Além de Wyler, Ford e Capra, Kurosawa citava também os nomes de Howard Hawks e George Stevens como influências. Chegou a citar o italiano Michelangelo Antonioni, mas não como uma influência e sim como “um diretor muito interessante...”. No que diz respeito a influências japonesas Kurosawa cita enfaticamente Kenji Mizoguchi, dentre todos os seus conterrâneos. Mizoguchi cria um mundo puramente japonês, afirmou Kurosawa. Ele explicou que a utilização de elementos ocidentais em seus filmes sempre teve uma razão muito simples. Kurosawa não estava fazendo filmes para o mercado ocidental, mas para a juventude japonesa na faixa dos vinte anos de idade. Esse tipo de procedimento facilitaria, assim entendeu Kurosawa, o entendimento deles sobre o Japão e o que é ser japonês (39). Só compreenderia esta observação de Kurosawa que por acaso souber que houve uma Segunda Guerra Mundial e que o Japão perdeu, sendo bombardeado por duas vezes com bombas atômicas norte-americanas – as tropas norte-americanas ocuparam o país por cinco anos e os valores do “estilo de vida norte-americano” foram inoculados lá como cá.

Em Rashomon, um roteiro baseado nas estórias do romancista japonês Ryunosuke Akutagawa (1892-1927), a versão da mulher para o assassinato do marido é desdenhada pelos homens. A conclusão parece ser de que os homens devem se proteger das mulheres. Em Ralé, cujo roteiro é uma adaptação da peça do russo Maxim Gorky (1868-1936), uma prostituta pobre tem o mesmo problema de credibilidade O mesmo homem que fez o comentário machista em Rashomon, ao continuar em sua discussão interminável sobre a natureza da verdade com seus dois inesperados companheiros de abrigo de chuva, procura desestimular a crença do monge na humanidade: “Ouvi dizer que o demônio vive aqui em Rashomon, fugindo com medo da ferocidade do homem”. Ao que tudo indica certas conclusões são universais. Parafraseando Thomas Hobbes, o homem é mesmo o lobo do homem!

O Akira de Gilles Deleuze


 Na opinião de Gilles  Deleuze, o que conta no cinema 
de Akira Kurosawa é que ele evoca questões intensas


Gilles Deleuze (1925-1995) ressaltou que o próprio Sergei Eisenstein via uma prefiguração do cinema na pintura de paisagem chinesa e japonesa. Cineasta e teórico do cinema soviético, Eisenstein considerava a “pintura de rolo” uma espécie de filmagem panorâmica. De acordo com Deleuze, duelos e combates na obra de Kurosawa seriam animados por um traço único, como uma grossa linha vertical imaginária barrada por duas linhas horizontais mais finas. Deleuze evoca a descida do mensageiro em Kagemusha, a Sombra do Samurai, oscilando entre a esquerda e a direita. No caso de Os Sete Samurais Kurosawa, que Deleuze considerava o maior cineasta da chuva, coreografa um balé no constante deslocamento durante a batalha final sob aquela tempestade de água e lama. Num vaivém constante, os bandidos galopam de uma ponta a outra da aldeia até serem golpeados (40). (imagem acima, O Barba Ruiva)

Muitas vezes os filmes de Kurosawa possuem duas etapas bem distintas. Como em Cão Danado e Céu e Inferno, onde a longa exposição da questão é seguida de uma ação intensa e brutal. O espaço se dilata num grande círculo ligando o mundo dos ricos e dos pobres, o alto e o baixo, o céu e o inferno; mas também uma exposição do topo para desenhar o círculo da “grande forma” que é atravessada lateralmente pelo herói: A perambulação de Murakami pela cidade em Cão Danado, no encalço de sua pistola roubada; ou no alto, no baixo e no topo, como quando Murakami caminha com seu colega Sato e avistamos a rua e os carros abaixo deles. Também na cena final, quando Sato sugere que Murakami olhe pela janela do hospital, “a janela do mundo”. Também é o caso da mansão do rico empresário em Céu e Inferno, de cuja ampla janela avistasse toda a cidade. Dodes’Ka-Den. O Caminho da Vida é um caso limite, com sua favela e o rapaz em seu vaivém, acreditando que é um bonde (41). O espaço em Kurosawa também se contrai como um palco de teatro: Como em Yojimbo, onde a ação do herói depende de que possa manter todos os dados sob seu olhar. Nas palavras de Luigi Martelli:

“Todos os episódios são colocados sob os olhos do personagem principal (...) [Kurosawa] procurou dar a primazia aos ângulos de filmagens que contribuem para achatar a imagem e, na ausência de profundidade de campo, para provocar a impressão de movimento transversal. Estes procedimentos técnicos desempenham um papel capital na medida em que tendem a representar um julgamento crítico, o do herói que segue a história com um olhar ao qual identificamos o nosso” (42)

Kurosawa ultrapassa os dados da situação, buscando a questão oculta nela, rumo a uma questão da qual é preciso arrancar a resposta. O protagonista só agirá quando encontrar a resposta - este seria também o ponto de ligação entre Kurosawa e Dostoievski. Em Trono Manchado de Sangue, o rei será tragado pela armadilha porque não compreendeu a questão cujo segredo só a feiticeira detinha. Da mesma forma, em O Barba Ruiva, o jovem médico está prestes a abandonar seu mestre, cujos métodos considera arcaicos. Duas pacientes vivendo em perpétuo delírio, só conseguiam se lembrar de quando foram molestadas - elas o levam a perceber uma questão que ultrapassa qualquer situação objetiva. Os dados da questão implicam também os sonhos, pesadelos e visões - um universo mais denso que a oposição causa/efeito. No onirismo de Kurosawa, alucinações não são apenas imagens subjetivas, mas figuras do pensamento que se percebe capaz de descobrir os dados de uma questão transcendente. (imagem abaixo, Kagemusha)




Em Kagemusha, a Sombra do Samurai, o duplo do Senhor falecido se impregna de tudo que rodeia seu amo - deve tornar-se um vestígio tão forte do morto que engane as esposas dele, o pequeno filho e especialmente o cavalo, que só aceita o dono. Mas os dados da situação não bastam ao duplo, também deve compreender o enigma que somente o Senhor conhecia (“rápido como o vento, silencioso como a floresta, terrível como o fogo, imóvel como a montanha”). Mas Deleuze sugere também que aquele que se impregna com dados não passará de um duplo, sombra submissa àquilo que procura imitar. Como Dersu em Dersu Uzala, que passa ao estado de sombra quando sua vista enfraquece e não consegue mais captar os enigmas da floresta. É por isso que ele morre, conclui Deleuze, mesmo vivendo uma “situação” confortável na civilização. Em Os Sete Samurais, eles não se informam apenas sobre os habitantes e por onde virão os bandidos. Para Deleuze a questão deles é: o que é um samurai? A resposta é que naquele momento histórico do Japão os samurais tornaram-se sombras, não têm mais lugar entre os senhores e os pobres. 

Em Viver, um homem com câncer e pouco tempo de vida não se satisfaz ao buscar a resposta no prazer ou num amor tardio por uma jovem. Após o choque da notícia, o velho retira muito dinheiro de sua conta no banco. Um amigo sugere que ele deve ter arrumado uma mulher, já que era um viúvo pão duro. No entanto, ao contrário do que pensam este amigo, o filho do velho e até mesmo Deleuze, ele não parece apaixonado pela moça. Ele deixa claro que inveja a vida dela, pois não sabe o que fazer para viver a própria. É aí que ela mostra os coelhos que faz. Através dessa mulher ele compreendeu os dados da questão “o que fazer?” Ela fazia coelhos mecânicos e se sentia feliz em saber que circularão pela cidade inteira com crianças. O homem conclui que ser útil era o que lhe faltava. No caso dele, construir um parque público. De acordo com Deleuze, pouco importa se as questões dos filmes de Kurosawa às vezes nos pareçam decepcionantes e burguesas, ou fruto de um humanismo vazio. O que conta é a forma da manifestação de uma questão qualquer, sua intensidade mais que seu conteúdo, seus dados mais que seu objeto (43).

“Ainda aí, poder-se-á objetar que Kurosawa nos traz uma mensagem humanista bastante banal. Mas o filme não é nada disto: é a busca obstinada da questão e de seus dados, através das situações. E a descoberta da resposta, à medida que a busca avança. A única resposta consiste em fornecer novamente dados, em reabastecer o mundo com dados, em fazer circular alguma coisa, na medida do possível e por menor que seja, de tal modo que, através desses dados novos ou renovados, surjam e se propaguem questões menos cruéis, mais alegres, mas próximas da Natureza e da vida. É o que fazia Dersu Uzala quando queria que a cabana fosse consertada, que se deixasse um pouco de comida para que os próximos viajantes pudessem sobreviver e circular. Então se pode ser uma sombra, se pode morrer. (...) Teremos nos tornado parque ou floresta, ou coelho mecânico, no sentido em que Henry Miller dizia que se tivesse de renascer, renasceria como parque” (44) (imagens abaixo, respectivamente, Sanjuro, O Barba Ruiva e Kagemusha)

Depois de Mifune e Além


 A busca de Kurosawa pela realidade não o impediu de 
encontrá-la ao pintar a humanidade na tela de cinema


O Barba Ruiva foi seu último filme de em preto e branco, Kurosawa vinha de um período de grande sucesso com A Fortaleza Escondida, Yojimbo e Sanjuro... Mas nem tudo estava indo bem! Toshiro Mifune, um rosto ao qual nos acostumamos a ver nos filmes de Kurosawa, começa a ser muito solicitado pelos estúdios norte-americanos. Como as filmagens de O Barba Ruiva nunca terminavam e Mifune tinha suas próprias opiniões sobre a interpretação do personagem, veio a ruptura definitiva entre ele e Kurosawa. Fim de uma parceria que se havia iniciado com O Anjo Embriagado. Um filme onde o anjo não era Matsunaga (Mifune no papel gangster da Yakusa), mas o Dr. Sanada (papel de Takashi Shimura, ator com quem Mifune faria várias dobradinhas nos filmes de Kurosawa). Entretanto, o personagem de Mifune rouba a cena neste filme ambientado no ambiente sufocante dos primeiros anos do pós Segunda Guerra Mundial no Japão. De acordo com Richie, este filme e considerado por muitos japoneses como “o primeiro filme de Kurosawa”. O próprio Kurosawa admitia que este fosse o primeiro que ele poderia chamar de “meu filme” (45).

Charles Tesson destacou ainda outro aspecto que tornaria a vida profissional de Kurosawa mais complicada. Até a chegada da Nouvelle Vague francesa em fins da década de 50 do século passado, os estúdios de cinema tinham o monopólio da produção. No Japão não era diferente e Kurosawa nasceu e cresceu como cineasta dentro dessa camisa de força, sua adaptação ao novo sistema foi difícil e longa. O Barba Ruiva foi lançado justamente durante esse furação de mudanças, da qual fazia parte a emergência do cinema independente. Tesson sugeriu que Toshiro Mifune significou para Kurosawa o que John Wayne foi para John Ford. Embora tenha atuado em vários tipos de papeis, Mifune será mais lembrado como samurai em Os Sete Samurais, Yojimbo e Sanjuro – talvez tenha facilitado o fato de ele ser um expert em Aikidō e Sétimo Dan de Kendō. Certa vez, assistindo um documentário sobre a África, Kurosawa notou um leão fixando o olhar sobre a câmera. Então o exclamou, “Ah, aqui está, é isso, Tajomaru”. Era o personagem de Mifune em Rashomon (46). Sem ele, a obra de Akira Kurosawa irá, literalmente, mudar de rosto. Abre-se a fase que vai de Dodes’Ka-Den. O Caminho da Vida até Madadayo, último filme do cineasta japonês (47).


 

Donald Richie defende a idéia de que a base do estilo de Kurosawa é uma busca pela realidade e uma incapacidade de tolerar a ilusão. O personagem de Kurosawa, como seu criador, é possuído pela necessidade de conhecer as coisas em si mesmas, conhecer a vida como ela é. Conhecimento que necessariamente inclui o sofrimento, uma vez que esta é uma das formas através da qual se reconhece a existência (48). Com a saída de Toshiro Mifune sendo de certa forma compensado pelo uso da cor, Kurosawa investe no pintor que sempre fora. Seja a pintura de um mundo privado de energia, embora não desprovida de recursos - Dodes’Ka-Den. O Caminho da Vida ou as virtudes do imaginário e da imaginação; Dersu Uzala ou a experiência da natureza, Madadayo ou as virtudes da sabedoria e de zombar de si mesmo -, seja na direção da pintura de um mundo no qual a energia global o faz oscilar em direção a uma entropia destrutiva - Kagemusha, a Sombra do Samurai, Ran, Sonhos. Como definiu Charles Tesson, sem Mifune a ação (mesmo a da guerra) se transforma em quadro – com a possível exceção da cena final em Trono Manchado de Sangue, com Mifune crivado de flechas, onde ação e densidade plástica mantêm um equilíbrio. O mundo não acabou depois da saída de Toshiro Mifune dos cenários de Kurosawa. Muito pelo contrário, pois ainda havia muito trabalho pela frente, como resumiu há muito tempo atrás o próprio Kurosawa: 

“Um filme de ação pode ser apenas um filme de ação. Mas que coisa maravilhosa se ele conseguir, ao mesmo tempo, pintar a humanidade! Este sempre foi o meu sonho desde a época em que eu era assistente de direção. Há dez anos desejo reconsiderar o drama antigo sob este novo ponto de vista” (49)

 


 Akira Kurosawa e seus Seres Humanos foi publicado originalmente na revista  dEsEnrEdoS (ISSN 2175-3903), ano II, número 7, Teresina, Piauí, Brasil, outubro/novembro/dezembro de 2010. Algumas mudanças foram introduzidas no texto da nota 16, sem contudo alterar o sentido do texto original. 


Leia também: 

Do Samurai ao Kamikaze
Geografia das Ausências em Yasujiro Ozu
Yasujiro Ozu e o Conflito de Gerações

1. RICHIE, Donald. The Films of Akira Kurosawa. Los Angeles: University of California Press, 3ª ed., 1996. P. 245.
2. TESSON, Charles. Akira Kurosawa. Paris: Le Monde/Cahiers du Cinéma, Collection Grandes Cinéastes, 2007. P. 11.
3. SHIMIZU, Chiyota. Entretien Avec Akira Kurosawa (1952 e 1953) in ESTÈVE, Michel (org.) Akira Kurosawa. Paris: Lettres Modernes, Études Cinématographiques, nº 30-31, 1964. P. 7.
4. TESSON, C. OP. Cit., pp. 12-3.
5. RICHIE, D. Op. Cit., pp. 14 e 20.
6. Idem, pp. 26-7, 28, 29, 31.
7. TESSON, C. Op. Cit., p. 12.
8. BAZIN, André. O Cinema da Crueldade. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. Pp. 189-193.
9. TASSONE, Aldo. Que Reste-t-il de la Nouvelle Vague? Paris: Éditions Stock, 2003. Pp. 87 e 290.
10. GODARD, Jean-Luc. Godard par Godard. Les Années Cahiers (1950 à 1959). Paris: Flammarion, 1989. Pp.122-3.
11. TESSON, C. Op. Cit., p. 68.
12. RICHIE, D. Op. Cit., p. 115.
13. AMENGUAL, Barthélemy. Rashomon ou La Porte du Démon... De l’Histoire in ESTÈVE, Michel (org.) Akira Kurosawa. Paris: Lettres Modernes, Études Cinématographiques, nº 30-31, 1964. P. 41.
14. RICHIE, D. Op. Cit., p. 97-8.
15. ANDERSON, Joseph L.; RICHIE, Donald. The Japanese Film: Art and Industry (1959) in AMENGUAL, B. Op. Cit., p. 45n12.
16. TESSON, C. Op. Cit., p. 52.
17. Idem, p. 38.
18. SHIMIZU, C. Op. Cit., p. 11.
19. RICHIE, D. Op. Cit., p. 221.
20. Idem, p. 244.
21. SIMSOLO, Noël. Conversation Avec Sergio Leone. Paris: Cahiers du cinéma, 3ª ed., 2006. P. 133.
22. RICHIE, D. Op. Cit., p.156.
23. FRAYLING, Christopher. Spaghetti Westerns. Cowboys and Europeans from Karl May to Sergio Leone. London/New York: I. B. Tauris, 2ª ed., 2006. P. 147.
24. Idem, pp. 148-9.
25. SIMSOLO, N. Op. Cit., p. 97.
26. RICHIE, D. OP. Cit., p.147.
27. FRAYLING, C. Op. Cit., p. 150.
28. SIMSOLO, N. Op. Cit., pp. 98 e 195.
29. RICHIE, D. Op. Cit., p. 108.
30. Idem, p. 148.
31. Ibidem, p. 98.
32. FRAYLING, C. Op. Cit., p. 152.
33. RICHIE, D. Op. Cit., p. 204.
34. TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: Entrevistas. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. P. 30.
35. TESSON, C. Op. Cit., p. 59; RICHIE, D. Op. Cit., p. 163.
36. RICHIE, D. Op. Cit., p. 45.
37. Idem, pp. 59 e 61.
38. Ibidem, pp. 58 e 62.
39. Ibidem, p. 242.
40. DELEUZE, Gilles. Cinema I: A Imagem-Movimento. Tradução Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. Pp. 230-7.
41. Idem, p. 241.
42. Ibidem, p. 233. A edição brasileira em questão transcreveu incorretamente o nome do autor, trata-se de Luigi Martelli e não Martinelli.
43. Ibidem, p. 234.
44. Ibidem, p. 237.
45. RICHIE, D. Op. Cit., p. 47.
46. KUROSAWA, Akira. Notes à Propos de Mes Films in ESTÈVE, Michel (org.) Op. Cit., pp. 16-7.
47. TESSON, C. Op. Cit., pp. 22, 23, 62, 65.
48. RICHIE, D. Op. Cit., p. 243.
49. BAZIN, A. Op. Cit., p. 187.  

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