Alberto Giacometti (1901-1966), escultor, ilustrador e pintor suíço, disse que até os dezoito ou dezenove anos tudo era visível! Mas confessou que daí em diante as coisas foram fugindo ao controle. Foi quando criar um auto-retrato se tornaria a “impossibilidade absoluta” de sua vida (ao lado, Os Olhos, 1962). Lá pela década de 30 do século passado, após muitos questionamentos, o artista volta aos auto-retratos (2). “Se o olhar, quero dizer, a vida, se tornou essencial, não há dúvida: é a cabeça que é essencial” (3). Se o olhar é tão importante, é digno de nota que os auto-retratos de Giacometti não mostram seus olhos. Se a aparência de seu rosto já é difusa na maioria de suas tentativas de se auto-retratar, seus olhos são mantidos mais longe ainda... Tornando mais difícil, uma vez que nossa percepção é estranhamente dirigida sempre para os olhos, fixar a representação de sua aparência. Como disse Joëlle Moulin a respeito desta particularidade dos auto-retratos de Giacometti, é o desconhecido que é representado.
“A aventura, a grande aventura,
é ver surgir alguma coisa de desconhecido a cada dia, no mesmo rosto. É maior do que todas as viagens a volta do mundo”
Giacometti (4)
é ver surgir alguma coisa de desconhecido a cada dia, no mesmo rosto. É maior do que todas as viagens a volta do mundo”
Giacometti (4)
Este desconhecido, explica Moulin, constitui a realidade misteriosa do homem, que para Giacometti é a grande aventura. Mas esse desconhecido escapa dele no mesmo instante que acredita tê-lo apreendido, tornando-se uma fonte de terror e de inquietante estranheza. De acordo com Moulin, esse desconhecido não é outro senão seu duplo mortal. É o rosto temido e rejeitado de sua própria morte. É o vazio do Objeto Invisível (1934) (abaixo, à direita, detalhe). Então Giacometti renuncia ao auto-retrato, mas não a desenhá-los ou insculpi-los. A cabeça se torna minúscula, à mercê de uma canivetada. Jean Genet recorda um dia no ateliê de Giacometti, quando escolheu uma pequena cabeça sua que o artista havia criado:
“(...) Decido-me por uma pequena cabeça minha (aqui, um parêntese: essa cabeça era de fato muito pequena). Sozinha na tela, não mede mais do que sete centímetros de altura por três e meio ou quatro de largura, no entanto tem a força, o peso e as dimensões da minha cabeça real. Quando tiro o quadro do ateliê para olhá-lo, fico incomodado, pois sei que estou tanto na tela como na frente dela, olhando-a – decido-me então por essa cabecinha (cheia de vida, e tão pesada que parece uma pequena bala de chumbo durante a trajetória)” (5).
“(...) Se você aumentar
a qualidade ilusória [da
obra], você se aproxima
do efeito de vida”
James Lord (6)
Moulin sugere que esta pequena bala de chumbo torna-se um alvo entre 1939-1940, quando se encarna em forma de pesadelo na escultura O Nariz (de 1947) (imagem acima). Em 1946, sobre ela Giacometti disse que está viva e morta simultaneamente. A vida é indicada pelos grandes olhos. A morte tem relação com o desaparecimento de seu amigo Van Meurs. O Nariz também se torna uma peça chave na busca de Giacometti. Ela é também um hino à vida, na medida em que é tangível, em que é uma realidade material dentro do espaço vazio da jaula. Um universo que permite a Giacometti, e como ele mesmo definiu, se agarrar à realidade e se alimentar, para engordar e melhor se defender e atacar. Que permite melhor compreender para ser livre. O artista suíço persegue a realidade da vida com seus pincéis para melhor enxergá-la e para descobrir novos mundos. Por outro lado, no caso de O Nariz, Giacometti optou pela escultura: "Como fazer um nariz em relevo sobre uma tela?" (7).
Em seu auto-retrato de 1950 (imagem abaixo), sua mão traça nervosamente círculos em torno dos olhos, como se estes escavassem a consciência de seu ser. Nos auto-retratos de 1954, 1956 e 1960, Giacometti abstrai cada vez mais sua cabeça em relação ao “envelope carnal" (imagem ao lado, Auto-Retrato, 1954). Entre arranhões e raspagens, ele faz surgir seu crânio como uma máscara da morte enquanto seus olhos se mantêm grandes e abertos. Seus olhos, grandes e abertos, parecem alucinados (especialmente aqueles produzidos a partir de 1960, como, por exemplo, em Os Olhos). Na opinião de Moulin, parecem mesmo auto-retratos “entre vivos e mortos”: efígies de condenados que já se assemelham a cadáveres, cujo olhar é o único elemento vivo. "Mas a recordação obsessiva de seu destino", pergunta Moulin, "não está lá para melhor nos levar a tomar consciência das possibilidades oferecidas pela vida?" Alguns anos depois, já com a saúde debilitada, em seus últimos auto-retratos de 1963, o rosto, espelho de sua presença, transforma-se numa máscara mortuária. Como observou Moulin em relação aos derradeiros momentos da vida de Giacometti, resta a solidão do homem, muitas vezes desenhada e esculpida, pronta para encarar seu destino, esse vazio do qual o artista captou a infelicidade e o grande medo metafísico.
Mas não seria o
caráter inacreditável
dessa fisionomia, dessa caricatura fantasmática
que Giacometti faz de si,
o que a tornaria o mais
verdadeiro e vivo dos
auto-retratos?
Joëlle
Moulin (8)
Notas:
Sobre as imagens do artigo:
As ilustrações não foram apresentadas em suas cores originais. A substituição pelo fundo negro com linhas brancas cria a ilusão de que O Nariz seja uma ilustração, mas trata-se de uma escultura. Objeto Invisível, mostrado aqui apenas no detalhe que a torna relevante para o artigo, também não possui essa coloração.
Leia também :
Retrato e Auto-Retrato
Um Corpo que Trai
Rosto Sem Rosto: Prosopagnosia
A Face do Mal (I), (II), (final)
O Rosto no Cinema (III), (IV), (V), (VI)
1. MOULIN, Joëlle. L’autoportrait au XXe Siècle. Paris: Adam Biro, 1999. P.46.
2. Idem, pp. 45-6.
3. Ibidem, p. 46.
4. Ibidem, p. 47
5. GENET, Jean. O Ateliê de Giacometti. Tradução Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2ª ed., 2001. Pp. 90-1.
6. MOULIN, Joëlle. Op. Cit., p. 48.
7. Idem.
8. Ibidem.