“Fazer os pobres sonharem o
mesmo sonho que os ricos”
Jésus Martin-Barbero
Dos Meios às Mediações, p.243.
mesmo sonho que os ricos”
Jésus Martin-Barbero
Dos Meios às Mediações, p.243.
I. A Massificação como Elemento de Cultura?
Na opinião de Jésus Martin-Barbero, a massificação é anterior aos meios de comunicação de massa, sendo parte da sociedade, ela já operava a partir da escola, igreja, literatura de cordel, melodrama, organização massiva da produção industrial e do espaço urbano. Ao enfatizar o papel das mediações sociais, Martin-Barbero mostra como os estudos culturais são relevantes na análise dos meios de massa - cultura de elite ou popular, ambas se articulam ao mercado e aos conflitos de hegemonia (1). Ele pergunta se podemos separar, de um lado o movimento pela igualdade social e, do outro, política e processo de homogeneização e uniformização cultural.
“A democratização das sociedades contemporâneas só é possível a partir da maior circulação de bens e mensagens. Esta facilidade de acesso não garante que as massas compreendam melhor o que se passa, nem que vivam e pensem melhor” (2).
Barbero está preocupado em compreender as relações entre massa, povo, nação e meios de comunicação, na América Latina. Nosso interesse em suas idéias está em visualizar os movimentos da feminilidade neste universo. O que importa é perceber a articulação entre os meios de massa e a apropriação e reconhecimento das massas em relação a si mesmas a partir desses meios. O processo de implantação dos meios e constituição do massivo na América Latina poderia se dividido em duas etapas. Inicialmente entre 1930 e 1950, quando a partir dos aparatos tecnológicos de comunicação, a massa se faz povo e depois Nação. Melhor, essas idéias passam a ser vivenciáveis no cotidiano (3). Em seguida, a partir de 1960, os meios são desviados da função política em direção ao econômico. As aspirações e carências mais básicas do homem são transformadas em desejo consumista.
Barbero faz algumas considerações a respeito do papel do cinema mexicano no processo de massificação cultural daquele país. Considerações que são pertinentes em relação à televisão no Brasil. No exemplo mexicano, Barbero mostra o entrelaçamento entre épica nacional e drama íntimo. O cinema ensinou as pessoas a serem mexicanas (dispositivo de teatralização), também teve que falar dos seres menores para que o povo pudesse se ver (dispositivo de degradação), e introduziu novos costumes e moralidades (dispositivo de modernização). O nacional está no vagabundo, no bêbado, no fanático religioso, no sentimental e... na humilhação programada da mulher e no erotismo das prostitutas atravessando a mensagem monogâmica. No melodrama encontraríamos a estrutura de todos os temas, despolitizando as contradições cotidianas.
“As estrelas – Maria Felix, Dolores Del Rio, Pedro Armendariz, Jorge Negrete, Ninón Sevilla – abastecem com faces, corpos, vozes e tons a fome das pessoas por se verem e ouvirem. Para além da maquiagem e da operação comercial, as verdadeiras estrelas do cinema obtêm sua força de um pacto secreto que enlaça esses rostos e vozes com seu público, com seus desejos e obsessões” (4).
Este cinema teria tido três fases. Na primeira, entre 1920 e 1930, um dos elementos que surge é o mito do banditismo, somando crueldade e generosidade. Quem sabe aqui não teríamos subsídios para uma futura análise do que podemos chamar de amor bandido, especificamente enfocando as mulheres dos homens que controlam os morros cariocas e o tráfico de drogas – ou qualquer outro tipo de contraventor. Na segunda fase, após os anos 30, o cinema mexicano teria feito do machismo expressão de um nacionalismo (comédia rancheira): pobre, porém macho, compensação para a inferioridade social. Vejo paralelo com a situação da mulher brasileira. Inclusive em relação ao machismo da própria mulher, já que é ela que educa o macho! Quantas mamães não se vangloriam do donjuanismo de seus filhotes machos adolescentes, ao mesmo tempo em que punem o “marido galinha”? (5) Na terceira fase, a partir dos anos 40, aparece o cinema que conta a vida de mulheres de cabaré e prostitutas, cujo erotismo e aventuras, desafiam a família tradicional.
II. O Bordel e o Ibope
Trazendo este exemplo do cinema mexicano para a televisão brasileira, poderemos captar mais profundamente o que significa e o que poderia significar a exposição deste tema para as mulheres. Não esqueço dos bordéis na Rede Globo... Chamarizes para aumentar a audiência, os bordéis são tidos como fundamentais em novelas rurais (como Porto dos Milagres, 2001). Segundo Agnaldo Silva, autor de algumas das novelas da Globo, o segredo é brincar com a malícia e a sensualidade. A atriz Gabriela Duarte, ou Justine, a dona do bordel de Esperança (2002), fala da liberdade e ousadia das mulheres mexendo com a fantasia das pessoas (6).
Em princípio, poderíamos dizer que o papel de Justine, digo Gabriela Duarte, segue aquele do livro de Alexandre Dumas Filho, A Dama das Camélias. Trata-se de uma prostituta que corresponde à paixão de um jovem cliente, mas acaba morrendo por conseqüência dos excessos de sua vida, sem conseguir realizar a saída sonhada pelo Romantismo: redenção através do amor verdadeiro. Como sempre acontece nesses casos, ou bem a mulher sobrevive, mas volta a ser prostituta (negando assim a pureza que aparentava), ou bem deixa de ser prostituta - contanto que morra. No mundo machista e judaico-cristão, a mulher perde sempre, mesmo que ganhe! Paulo Linhares, co-autor de Porto dos Milagres, diz que não existe preocupação em refletir a vida dura e triste das prostitutas. Porém, estranhamente considera que foi uma preocupação social que tiveram quando faziam Rosa Palmeirão, personagem de Luiza Tomé, falar sobre camisinha. Falar da vida delas não é preocupação social? Ele mesmo responde...
“O bordel é barra-pesada de pôr no ar, cabe mais em documentários. Em ‘Porto’, ouvíamos comentários de que a vida delas era feliz. Na vida real, as quengas enfrentam clientes violentos, que não pagam ou que têm doenças” (7).
Foi nesta novela que uma das personagens virou quenga por prazer! A hipocrisia continua nas palavras de Agnaldo Silva. Segundo ele, a beleza das mulheres e o clima alegre dos bordéis mostrados nas novelas não fariam parte do público infanto-juvenil acreditar que a prostituição é uma boa profissão. Então, Agnaldo dispara...
“O bordel acaba sendo meio conto de fadas, pois na verdade ele não é daquele jeito, mas deveria ser” (8).
Deveria ser? Como assim? De que diabos ele está falando? E Agnaldo continua...
“Acho que as pessoas gostam por causa dessa visão idealizada. Não me interessa fazer alguma coisa muito próxima da realidade” (9).
A realidade... O que importa a realidade afinal?
Zenilda, digo, a atriz Renata Sorrah, cafetina em A Indomada (1997), vai sugerir por outro lado que deve haver preocupação em fugir da caricatura. Mas aí ela... sugere... “A Zenilda dava casa, comida e proteção a moças que estavam morrendo de fome. Tem esse lado social”. Mas... quem disse que isso não é uma caricatura distorcida ? Matilde, digo, a atriz Yoná Magalhães, cafetina em Roque Santeiro (1985-86), sugere que as pessoas se identificam com cafetinas porque são mulheres muito verdadeiras e humanas... Estão sempre enfeitadas e suas preferências viram moda! O realismo deu o tom de Maria Machadão, digo a atriz Eloísa Mafalda, cafetina do Bataclã em Gabriela (1975). Por outro lado segundo Ricardo Linhares, a coisa só funciona se não for tratada com realismo, a intenção não é a realidade. “Na novela, as quengas são lindas e perfeitas; na vida real, são gordas e sem dentes” (10).
Mas aonde levaria tal desinteresse pela fidelidade aos fatos da vida real? Martin-Barbero mostra como, a partir de 1960, o massivo passa a designar não apenas a presença das massas nas cidades latino-americanas, mas principalmente os meios de homogeneização e controle dessas massas. “A massificação será detectável mesmo onde não houver massas” (11). A organização dos Estados Americanos (OEA) proclamará que “não existe desenvolvimento sem comunicação”. Antenas de televisão começam então a fazer parte do panorama arquitetônico das cidades, especialmente nas áreas pobres. A hegemonia da televisão e a disseminação do rádio, farão das inovações o motor do desenvolvimento.
A televisão unifica a demanda. É a constituição de um só público, cujas diferenças particulares são absorvidas. É o que fará, por exemplo, com que os bordéis na Rede Globo sejam absorvidos pelo público ao mesmo tempo em que este não parece perceber a diferença entre ficção e realidade – ou... simplesmente não se preocupam com a realidade... Assim, o maior grau de comunicabilidade passa a se confundir com o maior grau de rentabilidade econômica. Quer dizer, quanto mais homogeneização dos gostos, maior é o público que capta a mensagem passada. Quanto maior o público maior a rentabilidade do produto vendido.
“Quando, alguns anos mais tarde, também se generalizar a consulta permanente aos índices de audiência, isto apenas tornará explícito entre nós o que o modelo já continha: a tendência a constituir-se num discurso que, para falar ao máximo de pessoas, deve reduzir as diferenças ao mínimo, exigindo o mínimo de esforço decodificador e chocando minimamente os preconceitos sócio-culturais das maiorias” (12).
III. Conclusão
A conclusão de Barbero sugere que a ênfase nas semelhanças superficiais faz crer que todos nos parecemos. E que nossas diferenças, que até admitimos existir, não consideramos aquilo que nos define enquanto pessoas, povos ou massas. Convertemos o diferente de nós, que admitimos existir, em algo tão estranho e distante que com ele não sentimos qualquer relação. Ele não faz sentido para nosso mundo. Desta feita, a diversidade não mais nos causa espanto e questionamento. Concluímos então que só existe um único modelo de sociedade compatível com o progresso e com o futuro – o nosso modelo. A preocupação é com os lugares de onde provém aquilo que efetiva a materialidade social e a expressividade cultural da televisão. Barbero propõe três lugares de mediação: cotidianidade familiar, temporalidade social e competência cultural.
Diferentemente de como faz o cinema, a televisão trabalharia no mesmo registro da família – daí a televisão latino-americana ter a família como unidade básica de audiência. A família representa para as pessoas a situação primordial de reconhecimento. A cotidianidade familiar é o espaço de relações estreitas e proximidade, a televisão vai criar aí seus próprios dispositivos. São eles, a simulação do contato e a retórica do direto. Na simulação do contato, o importante é a criação de elementos que efetivem a manutenção de uma ligação entre as pessoas no ambiente disperso do cotidiano – em oposição ao ambiente de concentração da atenção que é a sala de cinema. São dois os elementos: um personagem e um interlocutor. O primeiro, fornece o tom coloquial. Faz-se interlocutor (mais do que transmissor de informações), para puxar a família para o papel de interlocução. Barbero mostra aqui como a predominância do verbal na TV latino-americana se justifica pela necessidade de subordinar a lógica visual à lógica do contato, sendo esta uma cultura fortemente oral (13).
Ao nos explicar a função da retórica do direto, Martin-Barbero faz mais uma distinção entre televisão e cinema. Este é dominado pela distância e pela mágica da imagem. Sua função comunicativa é poética, uma transfiguração arquetípica da realidade. Há um distanciamento do espectador, apesar dos rostos em primeiros planos. Já na televisão, o que dá forma é uma magia do ver que gira em torno de uma sensação do imediato, proximidade dos personagens, traço básico das relações cotidianas. As imagens são claras, tem simplicidade e economia narrativa.
No que diz respeito à temporalidade social, Barbero quer dizer que a televisão consegue inserir a cotidianidade no mercado ao apresentar-se no tempo do ritual e da rotina. Temos um tempo produtivo, valorizado pelo capital. Temos também um tempo repetitivo constituindo a cotidianidade. Nesta, o que temos não é um tempo organizado, temos fragmentos. É com estes fragmentos que a televisão trabalharia. Desta forma, os seriados têm ao mesmo tempo a forma do sistema produtivo (estandartização) assim como outras linguagens (gêneros como o conto popular, canção com refrão, narrativa aventuresca; onde existe aquela serialidade própria de uma estética em que o reconhecimento imediato é uma das fontes do prazer). “A série e os gêneros fazem agora a mediação entre o tempo do capital e o tempo da cotidianidade” (14).
Quanto à competência cultural, a questão levantada por Barbero é de que, dos vários postulados que procuram explicar a relação televisão/cultura, todos incorrem em erro. Anulam as diferenças culturais, não questionando a própria idéia de cultura com que trabalham. Trata-se de compreender a especificidade cultural do massivo. Citando as palavras de Fabri, na cultura de massa a estética segue a maior adequação aos gêneros. A dinâmica cultural da televisão atuaria por seus gêneros (as temáticas). É a partir daí que a televisão ativa a competência cultural. Os gêneros articulariam as séries, e constituiriam uma mediação entre as lógicas do sistema produtivo (o formato) e do sistema de consumo (os modos de ler, os usos) (15).
Embrutecidos pela programação, os telespectadores rendem-se ao que as redes de televisão chamam de entretenimento e lazer. Aos olhares atentos, salta aos olhos aquilo que elas consideram entretenimento. No país onde reflexão e consciência crítica são comportamentos de pessoas consideradas desajustadas, as portas estão abertas à destruição do sistema educacional e à barbárie. Não me sai da cabeça a frase de Joan Ferrés…
“Uma escola que não ensina como assistir à televisão é uma escola que não educa” (16).
Notas
1. “Ao estudar a reformulação da aura artística na grande cidade e o processo de formação do popular nas novelas de folhetim, na imprensa e na televisão (...), este livro oferece uma das refutações teóricas mais consistentes às ilusões românticas, ao reducionismo de tantos marxistas e ao aristocratismo frankfurtiano”. MARTIN-BARBERO, Jésus. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. RJ: Editora UFRJ, 2a ed.. 2001. Pp. 23 e 24.
2. Idem, p. 24.
3. “O cinema, em alguns países, e o rádio em quase todos, proporcionaram aos moradores das regiões e províncias mais diversas uma primeira vivência cotidiana da Nação.” Ibidem, p. 242. (os grifos são meus – n. do a.).
4. Ibidem, p. 245.
5. Agradeço ao amigo Ronaldo Ismério Moreira a lembrança desta hipótese da mulher como co-participe na produção e reprodução de mais um dos estereótipos que depois se volta contra elas.
6. DANNEMANN, Fernanda. O bordel nosso de cada dia. A fantasia dá o tom, e o realismo fica em segundo plano nas casas de prostituição das novelas, onde a vida é sempre fácil. Folha de São Paulo, suplemento TV Folha, 1/10/2002. Pp. 6-7.
7. Idem.
8. Ibidem.
9. Ibidem.
10. Ibidem.
11. MARTIN-BARBERO, Jésus, op. cit., p. 261.
12. Ibidem.
13. Ibidem, p. 306.
14. Ibidem, Pp. 307-308.
15. Ibidem, pp. 309-311.
16. FERRÉS, Joan. Televisão e Educação. Tradução Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. P. 7.