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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

20 de mar. de 2010

Yasujiro Ozu e Suas Famílias



Pai e Filha, Viagem
a Tóquio
e Os Irmãos
da Família Toda, estão
entre os filmes  de  Ozu
onde  sua  abordagem
em relação ao drama
familiar  é  mais
exemplar (1)



Objetos Japoneses

No cinema de Ozu, existe toda uma discussão a respeito do olhar dos objetos em contraposição ao nosso olhar. Entretanto, seus filmes não deixam de mostrar outro tipo de objeto: a mulher. Em muitos lugares, esse objeto é mudo (mesmo quando fala) e seu olhar só adquire valor enquanto interessa aos homens - o interesse de Ozu é no outro tipo de objeto. Mesmo nos filmes que dirigiu durante a guerra, ele nunca a mostrou. Mas no caso da posição de sujeição da mulher, mesmo sem querer, em seus filmes ele acaba permitindo que se monte um panorama da vida das japonesas.

Em Os Irmãos da Família Toda (Toda-ke no kyôdai, 1941), temos um retrato do tratamento que as mulheres japonesas recebiam (não recebem mais?). Suas vestes são tradicionais, enquanto os homens usam ternos ocidentais. Além disso, elas estão sempre fazendo alguma tarefa doméstica a mando de um homem. Flagrante a respeito da inferioridade da mulher japonesa: Uma senhora comenta com uma mãe sobre a filha. Quando a filha da moça nasceu, a velha lembra-se de comentar com um homem que havia nascido uma menina. “Uma menina de novo? Meninas não valem nada”, respondeu. Ela retrucou, “bebês não nascem sem mulheres”. O homem disse que sabia e deu uma risada.


 
Não há nudez feminina nos
filmes   de   Ozu  (2),  não  no
sentido  ocidental.  O  corpo
da   japonesa    aparece    no
gestual,  no  sorriso,  na  voz





Quando o filho mais novo, que tinha problemas com o pai, volta para o aniversário da morte deste, descobre que sua mãe e sua irmã não casada estavam morando sozinhas numa casa velha. Os outros filhos e suas esposas não deram moradia a elas – que tiveram que vender tudo depois da morte do marido/pai para pagar as dívidas. Além disso, esses filhos estavam até reclamando (na frente da mãe) que a cerimônia de luto foi demorada - Em Viagem a Tóquio (também conhecido com os títulos Era Uma Vez em Tóquio e Contos de Tóquio, Tokio Monogatari, 1953), após enterro da velha mãe também encontramos um comportamento arrogante nos filhos.


Depois de passar um sabão nos irmãos, o filho mais novo convida a mãe e a irmã para morarem com ele. Quer também arrumar um marido para a irmã, que por sua vez quer arrumar uma esposa para ele. Momentos depois, ele sai correndo quando ela volta com uma pretendente. Durante todo o filme, elas recebem ordens deles. No final, o único que não se portava como “chefe” das mulheres, foge como um coelho assustado. Mulher, aliás, que, como esposa japonesa, poderia ser tratada como pouco mais que um animal de carga. (imagem ao lado e no início do artigo, Os Irmãos da Família Toda. No primeiro caso, trata-se da pose para a fotografia da família no aniversário de sessenta anos do patriarca)


O primeiro andar das casas japonesas é o espaço da mulher, da mãe (3). Foi o que perdeu a matriarca dos Toda quando o marido morreu. Trata-se de um espaço provisório, todavia, em relação àqueles que não possuem habitação. As que não estão casadas, como a filha menor (que vai viver com a mãe depois que os filhos mais velhos a abandonaram) e a filha de Pai e Filha (Banshun, 1949) – que havia “passado do tempo” de casar e insistia em morar com o pai. (imagem ao lado, Os Irmãos da Família Toda; acima, à direita, no que poderia ser uma coincidência na hora da filmagem, esta cena de Pai e Filha mostra o lugar das mulheres em alguns lugares do oriente médio e do extremo-oriente: três passos atrás)

Entre Pais e Países

Estamos no Japão, numa época de militarismo entre as décadas de 30 e 40 do século passado. Yasujiro Ozu, assim como outros tantos cineastas japoneses do período, tinha dificuldade em escapar da pressão desse contexto social. Foi quando optou por filmar dramas de família, apresentando temas universais, independentes de crises políticas e guerras. Como já aconteceu em outros lugares, o governo militar desejava filmes que tivessem a família como tema. Foi então que Ozu dirigiu Os Irmãos da Família Toda. O cineasta declarou que este filme se tornaria seu modelo de drama familiar (4).

Entretanto, Ozu não estava apenas fazendo o que mandavam. Substituindo o país militarizado pela família e percebendo na estrutura desta o equivalente de um sistema hierárquico-social paternalista, Ozu procurou fazer uma avaliação do processo totalitário em seu país. O cineasta sempre problematizava a figura do pai – não seria esse um paralelo com a nação paternalista e autoritária? De acordo com Ozu, nos dias comuns, o normal de uma família é que ela não se reconheça como tal. Somente em situações extremas, como enterros ou crises, a família toma consciência de si mesma (5).

A Realidade e a Ficção

“Não importa o que
se  di
ga,  Ozu  não  era  a
p
essoa mais adequada para
trabalhar   um   período    de
mudanças    históricas    com
choques violentos. E, porém, 
conseguiu   perceber   no
fundo   das   aparências
a
imutabilidade (...) (6)


Se em Os Irmãos da Família Toda Ozu sugere que a família só se conscientiza na eventualidade de um funeral ou uma despedida, em Era Uma Vez Um Pai (Chichi ariki, 1942) o cineasta sustenta a qualquer custo a relação entre pai e filho. Naquela época, em plena Segunda Guerra Mundial (quando o Japão ainda estava ganhando a guerra), o título poderia ter sugerido um louvor à figura paterna. Entretanto, o pai do filme é hesitante. Um homem comum que chega a questionar a própria autoridade. Como no filme anterior, neste o pai também morre.

Somente em 1947 Ozu volta a filmar, Relato de Um Proprietário (Nagaya Shinshiroku) acompanha um órfão de guerra buscando abrigo com uma velha que mora sozinha numa parte da cidade que havia sido poupada dos bombardeios norte-americanos sobre o Japão. A velha não gosta dele, mas não tem coragem de expulsá-lo. À primeira vista, as palavras descrevem um filme realista, mas para Ozu o realismo não passa de ficção (7). Quando a velha sai para procurar o garoto que sumiu, não existem postes destruídos ou prédios em ruínas.


Como numa utopia, não havia o caos do pós-guerra, tudo estava no lugar. De acordo com Kiju Yoshida, o que poderia soar como insensatez da parte do cineasta nada mais é do que o ponto de vista intemporal de Ozu: “não seria adequado dizer que se trata de um cinema anti-realista?” Consciente da situação caótica do Japão no pós-guerra, Ozu buscava a ordem através das lentes da câmera. Ele era contra a situação criada pelo Estado, que espalhava a insegurança, a incredulidade, a loucura e o ódio, para dissimular o caos do mundo. (imagens acima, à esquerda, e ao lado, a pescaria de pai e filho em Era Uma Vez Um Pai; abaixo, à esquerda, a velha e o orfão de Relato de Um Proprietário)

Ozu não teria sido anacrônico, defende Yoshida, ele apenas se isolou em seu temperamento antitemporal. O órfão volta a morar com a velha, com o passar do tempo eles tiram uma fotografia juntos e se comportam como se fossem mãe e filho. Mas o pai verdadeiro aparece e parte com o filho como se nada de extraordinário houvesse ocorrido. A fotografia de família que já vimos em Os Irmãos da Família Toda retorna. Este filme começa com a família reunida para uma fotografia da comemoração dos 60 anos do velho pai. Mais tarde, ele passa mal e falece – curiosamente, o próprio Ozu viria a morrer também no dia em que comemorava 60 anos de idade.


Este foi o primeiro filme onde Ozu introduziria a fotografia-lembrança na estrutura narrativa (8) – ou antinarrativa, sendo mais fiéis ao cineasta. A fotografia funciona como elemento da temática "morte e separação". Com a morte do patriarca Toda e de Ozu, ficção e realidade se superpõem. A fotografia-lembrança de Relato de Um Proprietário funciona também como uma cerimônia de adeus. No momento em que a velha e o menino estão tirando a fotografia, Ozu nos mostra o movimento do abrir e fechar do obturador (9) da câmera. O que vemos então? A imagem invertida dos dois. Nesta inversão, a ficção invade a realidade e antecipa o desfecho dessa “família de cabeça para baixo”.

Quando realidade e ficção se superpõem, mesmo que por inversão, a trama entre os personagens se move – mesmo imóveis diante da câmera. No período final da obra de Ozu, as famílias, que já não se reuniam mais, juntavam-se por causa de uma morte, um casamento ou uma viagem. “A cena da fotografia-lembrança está lá exatamente para provocar o destino. Concretização também do fato de que um movimento cinematográfico tem necessidade de seu contrário: a imobilidade (...)” (10).


Ozu mirava a imutabilidade por baixo das mudanças do dia-a-dia, mas em Uma Galinha no Vento (Kaze no naka no mendori, 1948) (11), ele se rende e mostra as pressões da guerra. Quando um marido demora a voltar, levantando à suspeita de que estaria morto, uma esposa se prostitui para pagar o médico do filho. Ele se enfurece quando ela conta o que aconteceu em sua ausência. Distante do tipo de desenvolvimento dos dramas familiares do cineasta até então, seu caráter de narrativa fílmica tradicional era o que ele chamava de cinema-engodo. (imagens abaixo, à esquerda, Viagem a Tóquio; à direita, Pai e Filha; ao lado e última imagem do artigo, Uma Galinha no Vento)


“(...) Em Uma Galinha no Vento, o próprio Ozu aderia claramente aos modos de representação que uniformizavam as individualidades, coisa a que ele tanto tinha se oposto. O diretor obedeceu ao senso comum que afirma que, em última instância, um filme deve parecer um filme. Desse modo, distanciou-se da íntima certeza de que um filme não passa de um empastelamento da realidade concreta (...)” (12)

O Que Vemos de Nossas Vidas





A cidade grande 
como metáfora de
nossa cegueira







Em Pai e Filha, um pai viúvo insiste para que sua filha se case. Ela teve problemas de saúde durante a guerra e acabou perdendo o que no Japão se considera (considerava?) idade ideal para o casamento. Ela insiste que prefere ficar cuidando dele. O pai finge que pretende se casar (e, portanto, não precisaria mais dos cuidados dela), a mentira dá resultado e a filha aceita casar-se. Parte da linhagem dos dramas familiares de Ozu, neste filme ele modifica um pouco as coisas. Mesmo admitindo que as famílias não tenham consciência de si, ele achava que representar essa conscientização apenas em momentos extremos (casamentos, separações, enterros) não passava de auto engano e artificialismo.


Mesmo admitindo
que o drama familiar

continue existindo, em
Pai e Filha
Ozu tentou
r
ealizar  um  drama
familiar sem drama
(13)





Em Viagem a Tóquio, um casal de velhos deixa Onomichi, sua cidade natal, para visitar os filhos em Tóquio. Mesmo tendo sido convidados pelos filhos, os velhos são deixados de lado, sendo amparados pela nora e viúva do filho deles que morrera na guerra. A velha morre e, depois de muitos elogios a seu comportamento, a nora confessa que não é perfeita e já se esqueceu várias vezes do falecido.

Os velhos foram à capital para um reencontro familiar, mas não foi possível restabelecer uma intimidade. A percepção dessa impossibilidade (ou incapacidade) os faz sentirem-se perdidos na grande metrópole. Eles olham para a cidade grande, mas ela lhes devolve um olhar de ausência – não conseguem identificar a cidade como um todo, apenas ínfimas partes. No fundo, aquela metrópole cheia de imagens e ao mesmo tempo inapreensível é como nossas vidas, que não conseguimos apreender completamente (14).




“Uma menina de
novo ?  Meninas
não valem nada”







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Notas:

1. YOSHIDA, Kiju. O Anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução do Centro de Estudos Japoneses da universidade de São Paulo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. P. 173.
2. TESSIER, Max. Japonais. Du bain familial aux débourdements sexuels In BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. P. 210.
3. HASUMI, Shiguéhiko. Yasujirô Ozu. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1998. Pp. 102-4.
4. YOSHIDA, Kiju. Op. Cit., p. 79.
5. Idem, p. 84-5.
6. Ibidem, p.107.
7. Ibidem, p.103-4.
8. HASUMI, Shiguéhiko. Op. Cit., p. 166-8.
9. Dispositivo que controla o tempo que a luz deve penetrar na câmera fotográfica.
10. HASUMI, Shiguéhiko. Op. Cit., p. 168.
11. No livro de Yoshida, encontramos o título como citamos. Entretanto, consta como Uma Galinha e o Vento em PARENTE, André; NAGIB, Lúcia (orgs). Ozu. O Extraordinário Cineasta do Cotidiano. São Paulo: Marco Zero, 1990. P. 188.
12. YOSHIDA, Kiju. Op. Cit., p. 109.
13. Idem, p. 128.
14. Ibidem, p. 182. 


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