“Em 1889, o cônsul
britânico em Pernambuco comunicou a Londres ‘que
a mão-de-obra era mais barata do que em qualquer
outro lugar do mundo com
exceção da Ásia’” (1)
O Nordeste Que Não Vemos nas Vitrines
A história recente da região Nordeste do Brasil faz parecer que por lá só existe o litoral, com seus ricos, seus hotéis para turistas, sua crescente poluição e sua prostituição infantil (que inclusive faz parte dos pacotes turísticos). Pouco se fala do interior, de sua história sofrida, de um povo hostilizado e escravizado pelas elites locais. Trata-se de uma região semidesértica que aumenta dia após dia, sem que as autoridades (ou o povo) façam nada a respeito. Atualmente está sendo aberto um grande canal que, desviando água do rio São Francisco ao sul, pretende levar a irrigação àqueles pequenos agricultores que no fundo são pouco mais que indigentes numa terra que chafurda em desperdício e corrupção. Há controvérsias quanto à eficácia de tal projeto, de suas conseqüências para o rio São Francisco e a denúncia de que a água só irá abastecer os grandes latifundiários. (todas as imagens que ilustram o artigo são de Deus e o Diabo na Terra do Sol, direção Glauber Rocha, 1964)
“(...) Como Juazeiro,
Canudos foi uma
reação racional ao
inexorável caos da
seca e da depressão”
Mike Davis (2)
Muitos foram os romances e filmes escritos enfocando o sofrimento daquele povo. Enquanto isso, a desertificação continua, até que um dia ela se encontre com a desertificação das terras do cerrado no centro do país – quiçá, da própria Amazônia. Sendo assim, a história da sociedade local pode perfeitamente ser contada a partir dos desastres ecológicos sucessivos que assolam a região há séculos – e há séculos servem aos poderosos, seus lucros e seus projetos pusilânimes de poder. É esta história que nos conta Mike Davis, em Holocaustos Coloniais. Clima, Fome e Imperialismo na Formação do Terceiro Mundo, constituindo o que Tariq Ali chamou de “um verdadeiro Livro Negro do capitalismo liberal”.
A Seca e a República no Brasil
De acordo com
Davis, do ponto de
vista ecológico o Brasil
do século 19 foi pouco
mais que fome, sede
e violência
De acordo com Davis, Antonio Conselheiro e o padre Cícero Romão, um na cidade de Canudos e o outro em Juazeiro, levaram a frente “utopias sertanejas”. Para além das controvérsias em torno do caráter das posturas de cada um deles ao longo de suas propostas, ao contrário do que se propala, não foi apenas uma luta contra a oligarquia local vista como o Anticristo. Tratava-se também de uma tentativa de adaptação, que Davis considera bem-sucedida, à crise ambiental contínua e ao declínio econômico do Nordeste. As raízes dos dois movimentos, Davis lembra, remontam à Grande Seca de 1876-8. O “sebastianismo”, baseado na crença mística do retorno do monarca português que desapareceu combatendo os muçulmanos em 1578, era muito disseminado. Esse ingrediente era mais combustível para a religiosidade do povo, dando origem a uma série de massacres que se misturavam pateticamente às secas locais. As fomes de 1877 e 1899 e as grandes secas de fins do século XIX, apenas serviram para aprofundar o sebastianismo e encher as fileiras dos beatos descalços em torno das visões de cataclismos bíblicos (3).
A seca, que havia regredido em 1890, volta com força em 1891. Davis chama atenção para o fato de que este foi um dos mais intensos anos do El Niño (aquele fenômeno de ressurgência da corrente marinha no Oceano Pacífico, do qual só há poucos anos ouvimos falar) na história sul-americana moderna. Aliado à queda do preço do café e à crise econômica mundial de 1893, a perda do valor da moeda somada à inoperância da República marginalizou ainda mais o nordeste – já assolado pela seca, a inflação e as corruptas elites locais. Os escravos foram libertos em 1888 e deixados à própria sorte. Por outro lado, a redução do preço do açúcar reduziu os lucros da exportação. Para onde foram todos? Para o interior do nordeste. A água no sertão era controlada pelos grandes proprietários de terras, imagine-se o que ocorreu quando a seca retornou depois de 1888... Antonio Conselheiro e o padre Cícero os receberam de braços abertos! O Conselheiro foi um caso típico, primeiro era pintado como um “delirante”, mas, quando suas falas deram voz a sentimentos de justiça social, a pintura passou a ser taxado como “subversivo” (5).
Crise? Que crise?
Nem a morte de Conselheiro nem a abordagem do padre Cícero resolveram os problemas de mão-de-obra das elites regionais. O ciclo da seca causado pelo El Niño (1888-89, 1897-98, 1899-1900), somado ao rendimento cada vez menor, levou a um êxodo para fora do sertão que se sucedeu por décadas. Próxima parada: seringais da Amazônia. Com esta crise que também era ambiental lucro o Estado do Ceará, que recebia impostos pelos que partiam. Resultado, a falta de mão-de-obra barata no nordeste aliada a agricultura tradicional, não consegue recuperar-se dos anos em que não houve seca. Della Cava ressaltou que nem mesmo o colapso da produção de borracha nos seringais da Amazônia por volta de 1913 aliviaria a falta de mão-de-obra nordestina, que continuaria crônica até 1920 (6). E naqueles tempos ainda nem se falava em aquecimento global...
Notas:
Leia também:
Desinformação Já
A Fabricação do Herói (I), (final)
Arte e Cultura (I), (II), (III)
1. DAVIS, Mike. Holocaustos Coloniais. Clima, Fome e Imperialismo na Formação do Terceiro Mundo. Tradução Alda Porto. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Record, 2002. P. 396.
2. Idem, p. 202.
3. Ibidem, p. 199.
4. Ibidem, p. 201.
5. Ibidem.
6. Ibidem, p. 205.