“O quanto se
é tentado a se
deixar prender aí,
a se embalar aí,
a se agarrar a
um rosto...”
Gilles Deleuze e Felix Guattari
Mil Platôs, vol.3, p. 56
Mas, afinal, por que o rosto é tão importante quando procuramos o sentido, a significação, em alguém? De onde vem a certeza de alguns quanto ao fato de que umas bochechas e uns lábios, ou olhos desse ou daquele formato, sejam expressão do interior de alguém? Por que os traços fisionômicos “falam” mais (ou mais rapidamente) do que uma coxa ou um cotovelo? Estas são algumas das perguntas que José Gil se fez a respeito do rosto (1). E ele constata: um corpo sem rosto é completamente diferente de outro que tenha um rosto. Ou, melhor ainda: “é porque se reconheceu primeiro um rosto que se interpretam imediatamente os traços que nele surgem e se inscrevem. Tal olhar ou curva do nariz toma sentido porque pertence a um rosto” (2). Para o senso comum, o rosto parece ser o ponto central que funda e permite a crença na hipótese de que por ali poderemos captar o interior de alguém a partir de seu exterior – salvo, sem dúvida, para certas especialidades médicas como os ortopedistas, por exemplo!
Quando
um rosto é
tudo que resta,
alguma coisa
está errada...
Segundo este ponto de vista, os traços fisionômicos só significam porque existe um rosto. O próprio corpo... Os gestos corporais, só adquiririam significado, só significariam alguma coisa, porque o próprio corpo forma um rosto! Gil sugere que os movimentos e traços corporais são como imagens de um rosto que a eles doa sentido. Tudo isto não é idéia de Gil, mas dos franceses Gilles Deleuze e Felix Guattari, a partir dos escritos de Antonin Artaud sobre corpo e rosto (3). Antes do rosto, existe uma “maquina abstrata de rosticidade” (ou rostoidade) que agencia dois dispositivos. Um deles foi chamado de muro branco, são como os grandes planos do rosto no cinema. O outro dispositivo foi chamado buraco negro, que são como os olhos, o olhar, desse rosto em close no cinema. O muro branco é uma superfície de inscrição, enquanto o buraco negro reenvia para um processo de subjetivação. A tal máquina abstrata de rosticidade alimenta os dois processos: o muro branco (os closes de rostos) produz signos; o buraco negro (os olhos e olhares) produz subjetividade.
É essa máquina abstrata que esquematiza qualquer parte do corpo, ou qualquer superfície natural não humana: produz-se então uma “rostificação” do corpo inteiro. Eis porque encontramos rostos um pouco em todo lugar, de uma barriga a uma casa. Entretanto, isso não acontece porque haja uma semelhança entre formas, mas porque se inicia um processo paranóico de subjetivação que une o rosto ao significante barriga, casa, etc. O recurso da rosticidade ao rosto através de uma máquina de significância ocorre porque as significações verbais não seriam inteligíveis, perceptíveis, sem um rosto que as “diga”. A polissemia e indeterminação próprias da linguagem não seriam possíveis não seriam nada sem uma subjetividade que as ancore: é a subjetivação do sujeito da enunciação que vai articular signo e significado. Nesse contexto, sugere José Gil, nos dirigirmos a uma cabeça sem rosto equivale e dirigir-se a ninguém! (4)
Não vemos nosso
próprio rosto, isso deveria
ser uma vantagem...
Geralmente, quando falamos com alguém em sua presença nos dirigimos a seu rosto. Parece evidente, mas Gil nos lembra que isso acontece também porque o rosto possui uma profundidade própria. O rosto é, definitivamente, uma região de passagem do exterior para o interior. Meu rosto visto por mim mesmo, do interior, gera a estranha sensação de que ele não está em parte alguma. Nós não vemos nosso próprio rosto, tem-se a impressão, conclui Gil, que o “eu” se situa no interior, por detrás do rosto. Não a vemos, mas podemos sentir parte desse rosto. De acordo com Gil, “de certa forma habitamos de modo permanente a interface entre o exterior (a que pertencem essas percepções fugazes e fragmentárias da cara) e o interior” (5). Um “sujeito da percepção” habita essa fronteira entre interior e exterior. Só consigo ver meu rosto através das imagens, seja no rosto do outro, seja no espelho, seja na paisagem que estou olhando agora. Meu rosto, José Gil enfatiza, como que circunscreve a paisagem: sinto como se todo o meu rosto fosse um imenso par de olhos ou uma espécie de superfície visual que se prolonga na paisagem que visualiza. Eu não vejo meu rosto, mas eu sei que estou aqui!
Sendo assim, meu rosto, para mim mesmo, depende daquilo que aparece no rosto dos outros. Como na primeira relação intersubjetiva de um bebê, que é com sua mãe, o interior de um se prolonga no exterior do outro (o rosto da mãe como uma entrada, um buraco negro) (6). Gil se refere a forças que projetamos (e que os outros também projetam em nós) – o tom da voz, os olhares, etc. A imitação entre aquelas pessoas que adotam os tiques faciais e gestuais de seu interlocutor dependerá justamente do tipo de força que cada um joga na interação. Os signos que meu rosto emite me são significados indiretamente através dos rostos dos outros. Desta forma, o que vejo no rosto dos outros é a relação de forças (e relação afetiva) que estabeleço com eles. Meu rosto está marcado no deles, marca que ao mesmo tempo depende do que o rosto deles provoca em mim. Não tenho a imagem direta do meu rosto, mas espalho traços dele fora de mim – no rosto dos outros e na paisagem. Eis porque, explica Gil, é uma “geografia das forças e dos afetos” que se exprime em traços de paisagem que são traços de rosto (7).
José Gil nos lembra que, de acordo com a tese de Deleuze e Guattari, o único rosto que existe é o do homem branco. O rosto, tendo o de Cristo como modelo (e talvez não seja por acaso que o tal processo de subjetivação é necessário aos sistemas de poder), constitui uma invenção do Ocidente. Africanos, asiáticos e índios, teriam cabeças, mas sem rosto. Vale dizer, sem o sistema de rosticidade muro branco-buraco negro. E, talvez, não tenham mesmo! Isso não é um problema, aquilo que seria entendido como um demérito dos não-ocidentais talvez seja uma saída do problema. Gil conclui dizendo que a cultura de massa atual tem como característica uma produção de faces sem rosto. Talvez realizando o desejo expresso nas palavras de Michel Foucault: “escrevo para deixar de ter um rosto?” Quer dizer, deixar de ter uma identidade social, um lugar marcado. Deixando de ter um rosto, podemos nos entregar ao devir, devir-imperceptível, devir-outro (pois possuo múltiplos rostos). Entretanto, Gil deixa claro, as faces sem rosto de hoje (ou de um só rosto) são estranhamente rígidas, significantes. Nenhum devir-outro as atravessa, nenhum desejo de desaparecer. Por outro lado, se poderia considerar como uma reação a esse estado de coisas as máscaras-rostos que aqui e ali se sobrepõem ao rosto-suporte de subjetivação: tatuagens faciais que pervertem a significância dos signos do homem-rosto massificado, os mais variados tipos de piercings afastando da pele a possibilidade de recair no jogo muro-branco-buraco negro e destruindo a subjetivação (8). Resta saber até quando piercings e tatuagens conseguirão não se render ao canto de sereia da massificação. Seja como for, José Gil não parece capaz de sugerir outras formas de escapar da subjetivação senão por esses exemplos, que podem muito facilmente recair na tentação do culto ao corpo – processo intersubjetivo que é totalmente dependente, e talvez mesmo suplique, o olhar do outro.
Nós
somos
viciados
no olhar
do outro
sobre
nós!
Notas:
Todas as pinturas são de Kasimir Malevich (1878-1935):
Presentimento Complexo: Meia Figura com Camisa Amarela (1928-32)
Duas figuras numa Paisagem (1931-2)
Desportistas (1928-30)
Dois Camponeses (1928-32)
Dois Homens (1930-32?)
Banhistas (1928-32)
As Banhistas (1908?)
Leia também:
Rosto Sem Rosto: Prosopagnosia
A Cegueira da Visão (I), (II), (final)
O Rosto no Cinema (I), (III), (VI), (VII), (VIII), (IX)
O Corpo Expressionista
O Melhor Efeito Especial é a Alma Humana
O Rosto que Temos e Aquele que Vemos (I), (II), (final)
1. GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2ª ed., 1997. P. 163.
2. Idem, p. 164.
3. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. MILLE PLATEAUX. Capitalisme et Schizophénie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980, p. 230. Edição brasileira, Mil Platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, vol. 3.
4. GIL, José. Op. Cit., p. 166.
5. Idem, p. 167.
6. Ibidem, p. 171.
7. Ibidem, p, 170.
8. Ibidem, p. 172.