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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

11 de out. de 2010

A Múmia Hollywoodiana e a Islamofobia




Jack G. Shaheen
listou 900 filmes
onde
aparecem personagens
árabes. Em apenas seis
deles os árabes não
eram os vilões
(1)




Quando Boris Karloff estrelou no papel de morto-vivo em A Múmia (The Mummy, direção de Karl Freund, 1932), já havia alcançado a fama como o homem construído de pedaços de gente morta em Frankenstein (direção de James Whale, 1931). Nesse último caso, voltaria a encarnar o personagem em A Noiva de Frankenstein (The Bride of Frankenstein, direção James Whale, 1935), esperançoso de que lhe fosse construída uma mulher a partir de pedaços de gente morta – embora a experiência tenha produzido uma mulher, a vida de Frankenstein não melhorou, pois ela o rejeitou. Enquanto múmia, Karloff experimentou mais um grande sucesso de bilheteria numa época em que muitos milhões de norte-americanos passavam fome ou morriam disso – foi a época da Grande Depressão, que seguiu a crise econômica mundial a partir da quebra da bolsa de valores em 1929. Entre 1914 e 1918, a Europa havia passado pela Grande Guerra (que passaria a ser chamada apenas de Primeira Guerra), com milhões de mortos numa carnificina sem precedentes. Pouco depois, em torno de 1922, arqueólogos ingleses encontram no Egito a tumba do rei Tutancâmon, reacendendo o interesse no Egito Antigo e na maldição que se abateria sobre seus violadores.




A Múmia foi um
dos filmes de terror
que floresceu  quando
o capitalismo destruiu
milhões de lares nos
Estados Unidos





Portanto, ao mesmo tempo em que a morte parecia ser uma presença definitiva na vida das pessoas, o interesse pelo Egito dos faraós se reacendia com a descoberta de mortos famosos. Segundo nos conta Renan Pollès, o próprio Lorde Carnarvon, descobridor da tumba de Tutancâmon, teve a idéia de escrever um roteiro para cinema em função do impacto de sua descoberta. Um mês depois de descobri-la, já especulava sobre a melhor forma de vender o roteiro para as diferentes mídias (2). A partir daí muitos foram os filmes realizados tendo o Egito Antigo e as múmias como tema, um assunto que já freqüentava a literatura e o imaginário Ocidental havia muito tempo. O frenesi culminaria em 1932 com a versão estrelada por Boris Karloff. Curiosamente, apesar do interesse despertado pelo tema, o roteiro de A Múmia surgiu a partir da sinopse de um filme que se passava noutro contexto. Cagliostro contava a historia de um mágico egípcio que se mantinha vivo já há 3000 anos devido a injeções de nitrato e passava seu tempo a procura de mulheres que se parecessem com aquela que o havia traído e as assassinava. O filme se passava na cidade norte-americana de São Francisco durante os anos 30 do século passado e era muito influenciado pelos cenários de laboratórios fantásticos de Frankenstein. Não se sabe ao certo se Nina Wilcox Putnam, a autora do roteiro, conhecia a história do verdadeiro Cagliostro. Charlatão para alguns, para outros um ocultista. No século XVIII despertou a curiosidade das cortes européias antes de morrer na prisão depois de ser condenado como herege pelos tribunais da Inquisição.




O grande interesse 
popular  pelo  Egito Antigo
ajudou a transformá-lo em
um produto rentável







O roteiro de Putnam foi retrabalhado por John L. Balderston. Interessado em ocultismo, além de haver participado da autoria do roteiro de Frankenstein, Balderston foi um dos autores da adaptação teatral do Drácula de Bram Stoker, de onde foi tirado o roteiro do Drácula (1931) - dirigido por Tod Browning, a famosa versão com Bela Lugosi no papel principal. De acordo com Pollès, depois de se livrarem da confusão pseudo-científica e manterem apenas o elemento sobrenatural, o roteiro final ganhou na construção dramática. Entretanto, não pareceu preocupar aos produtores a confusão na cronologia. O nome dado à múmia, Imhotep, é o nome do grande sacerdote de Heliópolis, sob o faraó Djoser. A esse faraó é atribuída a construção da primeira pirâmide em pedra em Saqqarah. Anck-es-en-Amon, a múmia que a encarnação de Imhotep faz desenterrar e de quem ele acredita que Helen Grosvenor é a encarnação, era a esposa de Tutancâmon, que só nasceria 1000 anos depois (3).




A Múmia
tem vários

mocinhostodos  ingleses.
Mas tem apenas um vilão
:
uma múmia árabe






Talvez essa confusão na cronologia dos nomes escolhidos não seja exatamente uma confusão. A razão de ser de A Múmia é a mística do Antigo Egito, uma terra que existiu noutro tempo e que os ingleses redescobriram. O Egito atual, ou melhor, os egípcios contemporâneos estão praticamente ausentes do filme. Quando aparecem, são trabalhadores apenas braçais ou servos. Não nos esqueçamos que os egípcios são árabes e Hollywood tem uma longa história de preconceito em relação a eles. Antes de qualquer coisa, um esclarecimento, os egípcios do Antigo Egito acreditavam em muitas divindades. Já os egípcios contemporâneos ao filme (que se passa na mesma década de 30 de quando o filme foi realizado) são muçulmanos. Do ponto de vista religioso, os últimos consideram os primeiros como infiéis, pagãos. Some-se a isso, o fato de que quando o filme foi feito (e quando a tumba de Tutancâmon foi achava por Lorde Carnarvon), o Egito era uma colônia britânica – portanto, um país dominado. Não deixa de chamar atenção essa diferença de tratamento em relação a esses “dois Egitos”.



A
Múmia é
mais
um produto
de Hollywood que
não  escapou  à
Islamofobia




Invariavelmente, em todas as refilmagens de A Múmia, podemos encontrar bem clara a demarcação entre o mundo civilizado dos brancos e o mundo caótico, violento e sem lei dos árabes. O curioso é que os filmes são geralmente ambientados na primeira metade do século 20, uma fase da história da humanidade que viu todo o horror e carnificina que produziram duas guerras entre os brancos – que arrastaram o resto do mundo com eles. Em A Múmia, um dos arqueólogos insiste que eles não estão lá para desenterrar objetos e levá-los para o museu em Londres. Tudo deve ficar no Cairo e a ciência e o conhecimento é seu único interesse. Ora! Sabemos que os museus ocidentais sempre financiaram a rapinagem das relíquias antigas por todo o planeta – incluindo objetos de uso das tribos atuais. Uma prática que foi facilitada pela atitude oficial dos muçulmanos, que não davam valor ao que consideravam relíquias de um tempo quando o Egito era dominado por infiéis. Muitas das ruínas que vemos no Egito e na Grécia não foram espalhadas pelas areias do tempo. Grande parte foi simplesmente abandonada já que não podia ser levada para a Europa e Estados Unidos – incluído colunas de mármore gigantescas e/ou frontões de templos. Basta saber que até hoje existem 14 obeliscos em Roma que foram roubados do Egito pelas tropas do Império Romano para entender que a prática é antiga. Foram colocados em algumas das praças mais importantes da cidade como a Piazza São Pedro (é aquela mesmo que fica diante do Vaticano), a Piazza del Popolo, a Piazza Rotonda em frente ao Panteão, a Piazza Navona, a basílica de Latrão, Trinità dei Monti no cimo da Escadaria de Espanha e o Quirinal. É possível que tenham existido mais de 40 obeliscos na antiga Roma, todos roubados! (4)



Notas:

Leia também :

Isto é Hollywood!
A Bela, a Fera e o Cinema Puritano
Cabelos: Uma Tragédia Grega
Os Auto-Retratos de Francis Bacon

1. SHAHEEN, Jack G. Reel Bad Arabs. How Hollywood Vilifies a People. Massachusetts: Olive Branch Press, 2º ed., 2009. Pp. 16-7.
2. POLLÉS, Renan. La Momie. The Khéops à Hollywood. Paris: Les Éditions de l’Amateur, 2001. P. 193.
3. Idem, p. 197.
4. WILDUNG, Dietrich. O Egito. Da Pré-história aos Romanos. Tradução de Maria Filomena Duarte. Köln: Taschen, 2001. P. 227. 


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