O Monstro da Lagoa Negra (The Creature From the Black Lagoon, direção Jack Arnold, 1954) apresenta a Amazônia como uma terra inóspita e pré-histórica, onde a evolução parou e os animais se parecem com dinossauros. Nos confins desta floresta amazônica, um grupo de cientistas norte-americanos se depara com uma criatura aquática que parece um elo perdido entre o homem e o peixe. Enquanto se dividem entre o interesse científico e a vontade de levar o monstro para civilização para ganhar dinheiro e notoriedade com a descoberta, o homem-peixe parte para o ataque. A fera concentra seus esforços em raptar a mulher que está com o grupo de cientistas e chega a impedir a fuga do barco bloqueando a saída da lagoa. Quando o monstro consegue seu objetivo, será implacavelmente perseguido pelos sobreviventes e destruído.
Quando o cineasta dinamarquês Lars von Trier dirigiu Dogville (2003), primeira parte de uma trilogia sobre os Estados Unidos, o então presidente George Bush filho reclamou afirmando que seu país não era assim. No filme de Trier, as pessoas são cínicas e muito facilmente se entregam à maldade. Entretanto, quando analisamos os filmes produzidos em Hollywood, grande parte se entrega muito facilmente a clichês preconceituosos em relação a outros povos do mundo. É só escolher, poderíamos começar por O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, 1915), famoso filme mudo dirigido por D. W. Griffith (1875-1948). Libelo racista contando a história da formação dos Estados Unidos na época da Guerra Civil, os negros foram retratados como um bando de arruaceiros e estupradores que se beneficiaram da vitória do exército do norte industrial sobre as tropas do sul escravocrata. A Ku Klux Klan era retratada como um grupo de homens corretos lutando contra a tirania. Famosa é a seqüência em que uma jovem branca prefere se suicidar a ser estuprada por um negro, mas o detalhe verdadeiramente bizarro é que o negro era um ator branco pintado de negro. Como foi muito criticado, no ano seguinte Griffith dirigiu Intolerância (Intolerance: Love's Struggle Throughout the Ages, 1916), mostrando a luta contra a opressão através dos séculos.
Em King Kong (1933), a tribo indígena que cultua o gorila gigante é composta apenas por negros. Retratados como um bando de gente estúpida e idólatra, os negros destoam completamente em relação aos brancos civilizados. O arrogante cineasta e empresário branco que só pensa ganhar dinheiro com o monstro e demonstra desdém pelos indígenas parece estar de acordo com a visão hollywoodiana do mundo, sem falar no cozinheiro chinês do barco, uma espécie de idiota servil e inocente como uma criança. Naquela época, chineses ainda eram representados como gente incapaz ou super vilões como Ming, imperador do universo, o déspota oriental do planeta Mongo combatido por Flash Gordon. Aliás, Griffith também havia mostrado um chinês em Lírio Partido (Broken Blossoms or The Yellow Man and the Girl, 1919), que necessariamente irá se arrepender de ter se aproximado de uma mulher branca.
Os árabes em geral, e os muçulmanos em particular, são um caso a parte. Jack G. Shaheen mostrou com muitos exemplos, novecentos até agora, como Hollywood sempre desprezou este grupo étnico e religioso – embora o livro de Shaheen cite alguns exemplos de filmes produzidos na Europa, a maioria avassaladora é norte-americana(1). A coisa piorou bastante após os atentados de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center em Nova York, quando o então presidente George Bush filho lançou uma espécie de cruzada contra o mundo muçulmano, sem a menor preocupação em demonizar todos os árabes e muçulmanos do mundo. De qualquer forma, Shaheen mostrou que o preconceito e as burrices cenográficas hollywoodianas já estavam presentes desde o cinema mudo, cobrindo os árabes em geral com uma espécie de manto que ao mesmo tempo os tornava exóticos e os neutralizava como seres humanos de uma escala inferior. Não é preciso ir muito longe para compreender onde isso levaria, depois dos atentados terroristas comandados por Osama Bin Laden, os filmes retratando os muçulmanos como um bando de lunáticos se multiplicou consideravelmente. Até que finalmente em 2010 o presidente Barack Obama, o famoso primeiro presidente negro norte-americano, disse para quem quisesse ouvir que a luta dos Estados Unidos é contra o terrorismo e não contra os muçulmanos. Na mesma época, um pastor norte-americano anunciou que pretendia queimar o Alcorão (livro sagrado dos muçulmanos) durante as comemorações dos nove anos do atentado.
O Monstro da Lagoa Negra não poderia ser uma exceção neste padrão de ignorância e desprezo de Hollywood em relação às diferenças culturais. A Amazônia é caracterizada como um lugar pré-histórico onde o tempo parou e os animais seriam maiores do que no resto do mundo porque na escala da evolução continuavam como eram a milhões de anos atrás. Esse padrão já havia sido lançado na literatura por Arthur Conan Doyle (1859-1930), cujo livro virou filme, O Mundo Perdido (The Lost World, direção Harry O. Hoyt, 1925). Um clássico do cinema mudo e precursor de King Kong, já apresentava a Amazônia como um depósito de criaturas pré-históricas – incluído um homem-macaco assustador. Portanto, só lá mesmo os cientistas brancos poderiam se deparar com uma criatura que era uma espécie de elo perdido entre o homem e o peixe. O Monstro da Lagoa Negra até mostra um peixe, que de fato existe na natureza, que respira através de pulmões, mas curiosamente ele não é gigantesco, não tem mandíbulas enormes e não sai por aí raptando mulheres brancas norte-americanas.
Os cientistas norte-
americanos do filme não
seriam os primeiros nem
os últimos que entraram
na Amazônia para fazer
o que bem entendem
O monstro da lagoa negra amazônica não tem mandíbulas, mas convenientemente parece se apaixonar pelo espécime feminino citado. Outra coisa que salta aos olhos é a maneira como os brasileiros são retratados ou, deveria dizer, os latino-americanos. Os funcionários do cientista seriam brasileiros, se chamam Tomás e Luís, nomes até prováveis para brasileiros. Mas eles mais se parecem com mexicanos, ou melhor, com clichês da imagem de lavradores mexicanos, do que com brasileiros. Além disso, esse é o ponto, se comportam com o mesmo padrão dos chineses hollywoodianos ou, mexicanos, em geral: criaturas simplórias como crianças, incapazes de compreender a complexidade do mundo, um conhecimento a que só teriam acesso os brancos civilizados - geralmente norte-americanos ou europeus do norte da Europa. David J. Skal afirmou que para aqueles que cresceram na década de 50 do século passado o mostro da lagoa negra foi realmente o primeiro monstro dos estúdios Universal (2). E pensando bem Frankenstein (e a esposa dele), o lobisomem, Drácula e o homem invisível eram todos humanos de alguma forma. Portanto, o primeiro monstro de verdade só poderia morar no Brasil! Ainda que, na verdade, a lagoa negra mostrada no filme fosse localizada na Flórida...
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A Fabricação do Herói (I), (final)
Notas:
1. SHAHEEN, Jack G. Reel Bad Arabs. How Hollywood Vilifies a People. Massachusetts: Olive Branch Press, 2º ed., 2009.
2. De Volta à Lagoa Negra. Uma Crônica do Monstro. Extra de O Monstro da Lagoa Negra, lançado em dvd no Brasil ela Universal, 2004.