“No inicio
do século 20, com
a dissolução e queda do
Império Otomano, muitas de
suas instituições características
também faleceram. A poligamia
e o repúdio foram abandonados,
os haréns foram fechados. Toda
uma era chegou ao fim, e com
ela os sonhos, alucinações e
mitos que sustentou” (1)
Vivendo em tribos nômades e vagando pelas estepes da Ásia, a mulher possuía uma autoridade maior. Com o novo modo de vida sedentário, conceitos islâmicos e costumes bizantinos impuseram a elas a segregação do harém. Os homens tinham a autoridade máxima, embora no harém a que tinha direito fossem as mulheres que mandavam. O Corão permite a um homem possuir quatro esposas legítimas e certo número de concubinas, mas ele deverá ser capaz de sustentá-las. Sendo assim, a maioria era monógamo, apenas os ricos e poderosos tinham a possibilidade de manter um harém. Um espaço dominado por elas, para entrar nele mesmo o dono da casa deveria observar certa etiqueta. Devido a essa herança do nomadismo, ao contrário das mulheres no restante do mundo islâmico, as turcas nunca foram completamente marginalizadas na sociedade. A situação da mulher na sociedade otomana era um pouco mais complexa do que poderia parecer a um primeiro olhar. Elas conseguiam estruturar bolsões de autonomia e, em certos momentos na história, até mesmo reverter sua posição de inferioridade social (2).
A esterilidade
feminina poderia
ser vista como uma
das razões para
a poligamia
feminina poderia
ser vista como uma
das razões para
a poligamia
Durante sua vida, um turco veria apenas essas cinco ou seis mulheres de sua família e não teria nenhuma outra ligação sexual a não ser com algumas mulheres gregas, armênias ou eventualmente uma européia que chegasse à Ásia Menor. O casamento era aceito por todos, embora a família imperial não o praticasse. A partir da segunda metade do século 15, os sultões não formavam uniões legais e, com raras exceções, transavam apenas com as concubinas. Por outro lado, as princesas eram as únicas mulheres do império que, casando-se com escravos, podiam impor a eles a monogamia.
Ao tornarem-se mães, as mulheres adquiriam um outro status no Império Otomano. Um muçulmano só se considera realizado quando produz um descendente (preferencialmente do sexo masculino), o que confere privilégios à maternidade. Neste sentido, a esterilidade feminina poderia ser vista como uma das razões para a poligamia. No harém de um grande chefe, ou nas casas mais humildes, as mães governam suas filhas, noras, servas e filhos homens até certa idade. A mãe escolhe a esposa do filho, o qual se tornará o chefe da família no caso da morte do pai.
A partir
do século 18,
as otomanas foram
levadas gradualmente
pela onda de reformas
que modificaram
sua posição na
sociedade
Mas é evidente que um homem turco é privilegiado desde o nascimento, dependendo das poses da família ele pode estudar e trabalha, enquanto as meninas recebem menos educação e na quase totalidade dos casos são direcionadas apenas para se tornam mães, donas de casa e esposas: assim como na sociedade européia da época, as mulheres eram educadas tendo o casamento como única meta. Administrados pela mãe, os encontros do filho com a noiva aconteciam inicialmente nos banhos públicos, e posteriormente no interior do harém. Como de resto em muitos outros lugares, o matrimônio era também uma transação financeira. O Corão estipula o pagamento de uma soma pelo noivo que seja proporcional a suas poses, que será guardada pela noiva no caso dela ser repudiada. O repúdio, contudo, era uma prerrogativa unilateral dos homens. No caso de problemas conjugais, a única chance da esposa era apelar para um juiz que auxiliará o marido na interpretação de seu papel na relação. Mas do ponto de vista da vida no harém, foi apenas no século 18 que as mulheres das aristocracias européias puderam usufruir de um local só para elas. O tempo se passou, mas fetiche masculino do harém continua vivo. Em 1963, o cineasta italiano Federico Fellini construiu um harém em Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo). Nos sonhos de Guido (o protagonista e alter ego do cineasta), a primeira coisa que acontece é o encontro entre sua esposa e sua amante exuberante. A seguir... todas as outras, mas a esposa de Guido é a única que lava o chão e as roupas (sem esquecer da vedete que implora para ficar no harém, mas Guido está inflexível). (vídeo abaixo).
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1. COCO, Carla. Secrets of the Harem. New York/Paris: The Vendome Press, 1997. P. 19.
2. Idem, pp. 10-19.