Se antes era apenas
mais um refúgio para a timidez, transformou-se numa expressão radical
e muito indiscreta
Explodindo Clichês
Reinventar-se parecia ser a palavra de ordem de Leigh Bowery. No caso dele, reinventar-se a partir de uma segunda pele: roupas extravagantes, maquiagens e próteses. Performático, Bowery criou uma arte do corpo (body art) como poucos. Sua tela era seu próprio corpo, e ele não parecia nem um pouco preocupado em seguir os padrões de beleza/magreza vigentes. Tampouco os padrões de sexualidade, sua homossexualidade parecia ser empurrada a uma segundo plano frente. Não parecia apenas um homossexual excêntrico, tudo nele (ou pelo menos na pessoa pública) era excesso. Sendo, inclusive, excessivamente explícita sua ultrapassagem dos gêneros (masculino ou feminino). Divisão a que em geral não escapam (e até buscam) tanto homo quanto heterossexuais. A esta necessidade (ou pressão social) de se enquadra num gênero como condição para tornar-se visível, Bowery contrapôs uma arte do corpo radical. Para além do aspecto espalhafatoso e risível que poderia evocar sua figura bizarra numa primeira olhada, a seguir somos confrontados mais e mais com o curto-circuito causado por suas criações.
Curto-circuito
dos gêneros, Bowery
desfila suas personas entre
as próteses, piercings,
plumas e paetês
Usados ao mesmo tempo, uma máscara de couro típica do fetiche sado-masoquista entra em ressonância (mas também em curto circuito) com o vestido comprido e comportado que cobre qualquer típica senhora de idade avançada. Os lábios de plástico que jogam com o clichê do glamour feminino, que poderiam soar como um desejo de aderir ao gênero feminino contrasta com os alfinetes de fralda com os quais eles são presos às bochechas de Bowery – não é mais um homem, mas também não parece pretender ser uma mulher! Quando não são de plástico, grandes lábios são pintados em volta da boca, misturando uma típica maquiagem de palhaço de circo com o fetiche/clichê do batom que em muitos (e muitos) casos estabelece e reafirma o estereótipo do gênero feminino. De todos os adjetivos com que se poderia classificar Bowery, referir-se a ele como não-convencional parece mais apropriado.
O Gordo e as Anoréxicas
É significativo que Lucien Freud tenha pintado retratos de Bowery totalmente nu. Num deles, de costas, Bowery deixa ver suas costas largas e gordas (imagem acima, à esquerda, com Bowery na frente). Leigh esconde o rosto e ao mesmo tempo mostra e afirma um corpo disforme para os padrões estéticos anoréxicos do Ocidente (ou pelo menos de suas metrópoles) pode soar como um alarme. Tanto apontar para o estilo camaleônico de Bowery como uma forma de questionar o culto apenas a certo tipo físico magro (ou absolutamente magro), como sugerir que as roupas que cobrem o corpo podem ser também uma segunda pele, ao invés de uma maneira de escondê-lo (seja por motivos religiosos ou por vergonha de estar acima do peso). Em tempo, Lucien Freud considerava Bowery “perfeitamente lindo”. Pode ser que Bowery nem tenha tido a intenção, mas tudo que fazia parece carregar em seu interior uma crítica profunda aos clichês e estereótipos do feminino que o próprio universo da moda reproduz.
O clichê sádico
que empurra as mulheres
para a anorexia e a bulimia
nem mesmo foi arranhado
por Bowery
que empurra as mulheres
para a anorexia e a bulimia
nem mesmo foi arranhado
por Bowery
É significativo que Lucien Freud tenha pintado retratos de Bowery totalmente nu. Num deles, de costas, Bowery deixa ver suas costas largas e gordas (imagem acima, à esquerda, com Bowery na frente). Leigh esconde o rosto e ao mesmo tempo mostra e afirma um corpo disforme para os padrões estéticos anoréxicos do Ocidente (ou pelo menos de suas metrópoles) pode soar como um alarme. Tanto apontar para o estilo camaleônico de Bowery como uma forma de questionar o culto apenas a certo tipo físico magro (ou absolutamente magro), como sugerir que as roupas que cobrem o corpo podem ser também uma segunda pele, ao invés de uma maneira de escondê-lo (seja por motivos religiosos ou por vergonha de estar acima do peso). Em tempo, Lucien Freud considerava Bowery “perfeitamente lindo”. Pode ser que Bowery nem tenha tido a intenção, mas tudo que fazia parece carregar em seu interior uma crítica profunda aos clichês e estereótipos do feminino que o próprio universo da moda reproduz.
Aparentemente,
o mundo da moda
ignorou Bowery no que
diz respeito a sua crítica
aos clichês femininos.
Mas o lado bizarro e
pastelão era muito
bem vindo
Não é apenas a divisão de gênero que é explodida nas aparências e performances de Bowery, seu corpo anti-masculino e anti-feminino bate de frente também com um dos clichês mais populares (e mais bizarros) de nosso tempo: o culto ao “emagrecimento patológico”. Esse que já é classificado como um distúrbio de personalidade que distorce a visão de si mesmo (no pior sentido possível), e que curiosamente está presente no universo da moda e dos estilistas, do qual o próprio Bowery fazia parte. Por que será que um estilista homossexual pode ser gordo e ainda assim ser aceito, enquanto as modelos que trabalham para os estilistas continuam obrigadas a se submeter à ditadura da anorexia/bulimia que nada tem de saudável (ou de belo)? É curioso que a eterna reinvenção de si que projetou Leigh Bowery não pareça (em teoria) importar-se com seu peso, enquanto concomitantemente as mulheres que trabalham nas passarelas capitaneadas pelos/as estilistas parecem não ter nenhum direto de posse sobre o próprio corpo! O mundo misógino masculino heterossexual tem seu equivalente no que cada vez mais se deixa ver como um mundo misógino homossexual – neste caso, protegidos pelo manto “sagrado” das exigências do mercado de consumo. Supondo, evidentemente, que Bowery de fato desejasse questionar os padrões do mundo da moda que transformam as mulheres em esqueletos ambulantes!
Ainda Existe Um Rosto?
A reconfiguração
das feições sugere um afastamento em relação
à prisão do rosto (e do
olhar fixado no rosto),
tendendo a devolver
a cabeça ao corpo
A primeira vista, Leigh Bowery poderia ser confundido com mais um homossexual excêntrico e bizarro. Ele veste suas próprias criações, como as botas que se tornam próteses das pernas – mas que não apenas as substituem, senão as remodelam. Suas mascaram fazem de seu rosto uma espécie de cabeça de manequim, ao mesmo tempo aplanando as feições em sua carne e abrindo caminho para a expressividade da cabeça – a qual, diriam Gilles Deleuze e Felix Guattari (1), sempre perdeu em importância para o rosto. Porém, ainda existe um rosto, os buracos dos olhos, nariz e boca. Aliás, esta última receberia atenção especial através dos lábios de plástico que muitas vezes cobriam seus lábios de carne – uma paródia do batom que cobre tantos lábios femininos. Lábios cuja força da nudez as mulheres insistem em esconder por trás do batom. Mas este é apenas um dos modos de ser Bowery.
Havia também aquela maquiagem em que ele cobre o rosto com pingos ou pontos, como uma extensão de um vestido ou roupa de bolinhas. Outras vezes Bowery é azul como uma daquelas divindades hinduístas, sem esquecer o piercing no nariz. O corpo inteiro é seu teatro de experimentações. Como aquelas pessoas que se escondem justamente através da superexposição, Bowery faz de suas criações o disfarce perfeito. Ao mesmo tempo em que se esconde dentro do disfarce, Bowery parece tentar explodir o corpo esconde. Além dos lábios de plástico, ele também aparece com seios de plástico. Além de romper as fronteiras de gênero, Bowery rompe com o elemento da maternidade (território restrito às mulheres) ao ostentar seios que não dão leite. Talvez um traço Drag Queen de Bowery, já que nesse universo o objetivo não é tornar-se mulher, mas simplesmente parodiar o feminino.
Numa de suas
performances durante
um show musical, Bowery
se deita aos berros como uma mulher prestes a dar a luz. De repente sai uma mulher (de verdade, de carne e osso)
já crescida de dento do
que seria a vagina
de Bowery
Entre o monstruoso e o fantástico, Bowery explode a fronteira entre os gêneros. Classificá-lo como homossexual apenas por conta de seus trejeitos talvez não faça sentido – até porque, esta seria uma saída fácil que não dá conta da realidade. Às vezes, Bowery deixava a mostra uma espécie de vagina (mais exatamente os pêlos pubianos que denotavam a vagina antigamente). Enquanto isso, ou talvez um pouco antes, Cicciolina, a atriz pornô, mostrava os seios durante sua campanha eleitoral atrás de emprego no parlamento italiano. O contraponto perfeito, enquanto o “homossexual” Bowery explodia a barreira/prisão dos gêneros, a atriz pornô procurava ganhar uma eleição ao reforçar o pior da barreira entre os gêneros (a puramente aparente e frágil superioridade da mulher no mundo machista dos homens, onde ela não passa de objeto), e ela ainda levantava o braço imitando da Estátua da Liberdade em Nova York (Estados Unidos).
“Bowery criou e vestiu suas roupas extraordinárias para afirmar um sentimento de anormalidade (homossexual com 102 kg e mais de 2 metros) e projetar uma persona confiante e forte. No início envolvendo maquiagem e perucas, botas de salto plataforma e grandes ombreiras, as roupas se tornaram mais esculturais – com braços esféricos, pernas disformes, seios postiços – enquanto seu rosto desaparecia sob capas que cobriam toda sua cabeça. Manipulava e prolongava seu corpo, muitas vezes de forma dolorosa, a fim de criar um ‘visual’ que o libertasse de sua timidez, permitindo-lhe criar uma persona extravagante na cena ‘subterrânea’ das boates [de Londres]. Seu engajamento com a total teatralização da personalidade, tendo a boate como palco, foi de fato o compromisso com uma forma extrema de auto-expressão, permitindo-lhe explorar medos e desejos em performances públicas escandalosas que o tornaram um ícone da cultura subterrânea. Desafiando diretamente a estética de estilo e moda, as roupas e performances de Bowery expunham o corpo do artista como uma ferramenta através da qual examinar os juízos existentes do que é perverso e do que é normal” (3)
Notas:
Leia também:
Arte do Corpo: Cindy Sherman, Carolee Schneemann, Yoko Ono, Shigeko Kubota, Jan Saudek, HR Giger
Os Seios da República: Conexão Seios (epílogo)
1. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, vol. 3.
2. The Legend of Leigh Bowery. Documentário, direção de Charles Atlas, 2002.
3. WARR, Tracey; JONES, Amelia. The Artist's Body. London: Phaidon, 2000. P. 187.