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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

9 de jan. de 2011

Todas as Cabeças de Arcimboldo (final)



O elemento
fantástico foi o que

at
raiu a atenção dos surrealistas




Arcimbolderia Fantástica

Filippo De Pisis (1896-1956), pintor e poeta italiano, ligado ao fauvismo, dadaísmo, futurismo e a pintura metafísica, classificou Arcimboldo entre Rafael (1483-1520) e Ticiano (1485-1576) (imagem acima, O Cozinheiro, ca. 1571; aqui anexada a seu reverso, no original elas são separadas). Referindo-se a década de 50 do século passado, o historiador da arte Paul Wescher (1896-1974) sugeriu que se vivia um período de transição de complexidade análoga ao que Arcimboldo viveu. Invertida, a idéia do automatismo foi tomada por De Chirico (1888-1978), Fernand Léger (1881-1955), Max Ernst (1891-1976), Andre Mason (1896-1987), Salvador Dalí (1904-1989) e muitos outros pintores. Sob a influência de Freud e do “automatismo psíquico”, a imagem dupla das cabeças compostas se transformou em “pintura causal”, “pintura paranóica”. A ambigüidade das cabeças de Arcimboldo atraiu os artistas surrealistas não apenas por seu irracionalismo, mas também pela tensão, por um lado entre realidade e arte, e por outro entre uma representação das frutas que é simultaneamente a representação de uma cabeça. Em seu estudo sobre Arcimboldo de 1955, Francine-Claire Legrand e Felix Sluys observam que nenhum outro foi capaz de fazer uma piada tão grande com o conceito de rosto humano enquanto “espelho da alma”. Embora prendam nossa atenção, é como se o pintor tivesse conseguido retirar qualquer traço de vida interior.




Algumas
obras atribuídas a
Hieronymus Bosch
,
na verdade, seriam da
autoria de Giuseppe
Arcim
boldo

Alfonso E. P.
Sanchez (1)






De acordo com Vittorio Sgarbi, é possível percorrer uma estrada subterrânea do surrealismo em alguns episódios centrais da arte moderna, essencialmente nos séculos XVI e XVIII. Para Da Vinci, o homem contém toda a estrutura do universo – ele é composto de terra, água, ar e fogo. O homem é o modelo do mundo. De Leonardo Da Vinci, passando por Giorgione (1478-1510) (em Os Três Filósofos, 1506 ca, ou O Pôr do Sol, 1506-10), Giovanni Agostino da Lodi (ou Pseudo Agostino) (em Pan e Siringa, 1510-20) e Albrecht Dürer (Vista de Arco, 1495), encontramos imagens da natureza cujas formas lembram partes da anatomia humana. Estes teriam sido os primeiros exemplos tímidos do princípio que guiará Arcimboldo. Bambocciata (1535), de Dosso e Battista Dossi (ou Giovanni di Niccolò de Luteri, c. 1490-1542) é outro precedente. A obra de Dosso pertence ao mesmo momento em que o artista se engajava nos afrescos da Villa Imperiale de Pesaro, onde encontramos uma verdadeira conjunção entre corpo humano e vegetação na Sala delle Cariatidi. Pode-se incluir ainda a alegoria da Justiça e da Paz, por Dosso. Josse de Momper (1564-1635) homenageou o pintor italiano com pinturas antropomórficas (2). (imagem acima, Primavera, 1573)




Os frutos da
busc
a de Arcimboldo
passaram às mãos de Odilon

Redon, que as deu a
Alberto Martini






Sgarbi traça uma linha que vem desses personagens da história da arte e vai direto a Odilon Redon (1840-1916), como um dos herdeiros de Arcimboldo (imagem acima, O Advogado, 1566). Em seu universo, o olho tem lugar privilegiado – que também será adotado por Alberto Martini (1876-1954). A imagem bizarra de um olho como um grande balão fitando o infinito é recorrente em Redon. Para ele, cada coisa é também outra coisa. Como havia já demonstrado Arcimboldo, cada imagem é também outra imagem. Mas enquanto o procedimento deste pressupõe uma verdade dupla (podemos ver um rosto, mas também apenas um monte de frutas ou vegetais), aquele de Redon aponta, em sua infinita ambigüidade, para uma só verdade: o mistério profundo das coisas. Uma ambigüidade que se torna lei e também a chave para a interpretação da natureza. O olho-sol é também o olho-flor, o molusco, o ovo, o balão, a cabeça de Batista, e é sempre olho. Redon fala de imagens dentro de imagens. Ali estava a raiz de sua busca, as oposições se compõem e logo se fraturam no surrealismo (a René Magritte [1898-1967] nada restará senão investigar o jogo dos equívocos entre a palavra e as imagens). Mas Redon é maniqueísta, sua obra gira em torno de um contraste entre luz e sombra, ele aponta para a luz ainda que sem renunciar ao mistério. Para Sgarbi, na duplicidade luz-sombra se resolve uma das experiências centrais do espírito moderno, atribuindo uma profundidade psicanalítica e uma solução inédita e imprevista ao enigma proposto, três séculos antes, por Arcimboldo (3).





“Sonhos e obsessões
(...)
viram imagem nas telas. Nelas parece se cumprir a ‘viagem
até o fim do rosto’ ”


Vittorio
Sgarbi (4)






Apenas os surrealistas, afirmaram Legrand e Sluys, conseguiram descobrir o poder traumático dessas bizarrias plásticas, percebendo nas cabeças compostas uma vontade de desorientação próxima de suas próprias pesquisas. Os surrealistas apreciaram essa espécie de ironia macabra capaz de quebra as convenções morais com cinismo explícito (5). Roger Caillois admite admirar o engenho de Arcimboldo, mas nega que exista ali algum elemento misterioso. André Pieyre de Mandiargues não enxerga nas cabeças compostas nada de surrealista, nenhum elemento de origem inconsciente, automática ou onírica. Mas as achou interessantes enquanto naturezas mortas antropomórficas. Mandiargues classifica apenas Hieronymus Bosch (Ca 1450-1516) como pré-surrealista (6). Para Aomi Okabe não há outra explicação senão o intercâmbio comercial entre Europa e Japão no século XVIII para explicar as cabeças compostas pintadas por Utagawa Kuniyoshi (1798-1861) no século XIX. Além do que, Arcimboldo havia sido moda na Europa entre o século XVI e início do XVII (7). (imagem acima, à direita, Outono, 1576)

Expressão e Paixão





f
A tentação do
rosto-paisag
em,
mais uma das
contribuições

de Arcimboldo








O fato de que a maior parte das cabeças compostas representa personagens reais deveria chamar nossa atenção. Embora poucos saibam que elas são retratos, sua desfiguração do rosto parece incomodar menos do que a desfiguração de um rosto cubista, por exemplo. Será porque no rosto cubista nós tendemos a nos perder dos traços do rosto, enquanto nas cabeças compostas conseguimos reencontrá-los rapidamente? Geralmente, um retrato não tem apenas a função de representar (remeter a um referente) e significar (construir um sentido e comunicá-lo), mas também se propõe a exprimir emoções (e provocá-las). Na opinião de Paolo Fabbri, a arte sempre esteve preocupada em registrar as paixões (estados de ânimo, sentimentos, emoções), codificá-las em sistemas de signos, apontar o lugar (indizível? Irrepresentável?) onde sensações e percepções se transformam em sentido e afeto, orientando-se na direção do agir e do compreender. A preocupação de Da Vinci ecoou até o século XIX: a existência de um elemento que permitisse a expressão da alma. Muitos tentaram e continuam tentando procurar em outro lugar, mas o rosto continua sendo o único ponto do corpo humano que consegue exprimir sua própria expressão. Os “atores faciais” (olhos, boca, queixo, nariz, cílios) foram até divididos em função das faculdades do saber, poder e querer, da vida conceitual, afetiva e física. A testa ou o nariz foram articulados numa combinatória que produz os significados emotivos. Alguns doutos até enumeraram as dezenas de tipos de narizes, testas olhos, queixos e bocas, com suas respectivas articulações simbólicas (8). (imagem acima, à esquerda, uma variação de Inverno, não datado; imagem abaixo, Fogo, 1566)




“O quanto
se é tentado a
se deixar prender
, a se embalar aí,
a se agarrar a
um rosto
...

Gilles Deleuze e
Felix Guattari (9)




Mas as pinturas de Arcimboldo não são a Fisiognomonia de Charles Le Brun (1619-12690), Della Porta (1535?-1615) ou Johann Kaspar Lavater (1741-1801). Os “rostos de Arcimboldo”, afirma Fabbri, são como hieróglifos atravessando a história das artes plásticas em geral e da pintura e do retrato em particular. Na verdade, a sedução da obra de Arcimboldo estaria num princípio de desaparição, tudo retoma seu lugar fora do mecanismo calculado (a Fisiognomonia). Não existe interior das coisas, sugere Fabbri, subjetividade portadora de uma psicologia que cabe a nós capturar. As coisas, em sua reversibilidade, transformam cada gesto em hieróglifo transitório e paradoxalmente seduzem pela ausência de desejo e de aversão, de dor e de piedade. A emoção se transmuta em sensação (10). As especulações de Fabbri dizem respeito à tendência de rostificação do mundo. A denúncia é que aquelas combinações de flores, frutos e animais já continham um rosto antes mesmo de serem reunidas. Mas o problema seria da nossa percepção e não da intenção de Arcimboldo. Nós é que vemos rostos, independentemente de Arcimboldo ter desejado montá-los! Daí talvez a coerência de chamar as cabeças compostas de naturezas mortas antropomórficas. Pois, talvez apenas naturezas mortas. Talvez aí mais uma contribuição de Arcimboldo: vemos rostos em qualquer lugar, mas quem deseja (ou quem sabe como) olhar “para fora”?

Notas:

Leia também:

As Tentações do Rosto-Paisagem
Rostos: Fisiognomonia (I), (II), (III), (IV), (V), (Epílogo)
Bertolucci e o Negócio da China (I), (II), (III), (final)
Kieślowski e o Outro Mundo
Aquele que Sabe Viver
Akira Kurosawa e Seus Seres Humanos
A Nudez no Cinema (I)
Quando Fellini Sonhou com Pasolini
Fassbinder e Hollywood
As Mulheres de François Truffaut
Antonioni e o Grito Primal
Hiroshima Meu Amor (I), (II), (final)

1. SANCHEZ, Alfonso E. Perez. L’Asse Madrid-Praga in in Effetto Arcimboldo. Trasformazioni del Volto nel Sedicesimo e nel Ventesimo Secolo. Milano: Grupo Editoriale Fabbri, Bompiani, Sonzogno, Etas S.p.A., 1987. Catálogo de Exposição. p. 64.
2. SGARBI, Vittorio. Viaggio al Termine del Volto in Effetto Arcimboldo... Pp. 303, 308, 311.
3. Idem, p. 312, 315.
4. Ibidem, p. 316.
5. FALCHETTA, Piero. Antologia de Testi del XX Secolo in Effetto Arcimboldo... P. 226.
6. Idem, p. 228.
7. OKABE, Aomi. Kao all’Alba della Modernitá in Effetto Arcimboldo... P. 237.
8. FABBRI, Paolo. Le Passioni del Volto in Effetto Arcimboldo... Pp. 259-60.
9. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Tradução Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1996, vol.3. P. 56.
10. FABBRI, Paolo. Op. Cit., p. 271.

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